QUEM NÃO DANÇA, DANÇA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A EXCITAÇÃO E O DECORO PARLAMENTAR*

 

Thiago Passos**

  

Se ela dança, eu danço
Se ela dança, eu danço
Se ela dança, eu danço... falei com o DJ
Pra fazer diferente
Botar chapa quente pra gente dançar

(MC Leozinho)

 

1. Mensalão, Caixa 2, dinheiro não contabilizado

 

         Notícias sobre corrupção envolvendo membros dos diversos Poderes – Executivo, Legislativo ou Judiciário – independente do nível de atuação – municipal, estadual ou federal - não são novidades na história da República Brasileira. Porém, desde as denúncias, realizadas pelo então deputado federal Roberto Jefferson [1] , sobre uma suposta “mesada” de 30 mil reais por mês recebida por parlamentares em troca de apoio na aprovação de projetos de interesse do Palácio do Planalto, popularizada pela imprensa como esquema da compra de votos, ou simplesmente “mensalão [2] ”, assistimos o envolvimento do Partido dos Trabalhadores em uma crise de proporções inéditas desde sua fundação, manchando uma das suas principais bandeiras, ser o Partido da Ética [3] .

          Tais denúncias desencadearam uma verdadeira batalha entre deputados da base aliada ao governo e da oposição, com recíprocas acusações de corrupção, caixa 2 [4] nas contas de campanha e irregularidade nas trocas entre legendas, no período pós-eleições de 2002. Permeando todo esse debate sempre estiveram presentes ameaças de indiciamento – devido a possíveis envolvidos em irregularidades – na comissão de ética, o que possibilitaria um eventual impeachment e com isso um período de inelegibilidade.

          O presente artigo versa sobre um episódio ocorrido durante a votação do pedido de cassação do mandato do deputado João Magno (PT-MG), cujo resultado foi por sua absolvição, onde uma parlamentar começa a figurar nas primeiras páginas dos jornais, a deputada federal Ângela Guadagnin (PT-SP).

          Com uma atuação discreta como membro do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, sendo retratada pela imprensa somente em pequenas notas, quando pedia vistas [5] nos processos de deputados ameaçados de sofrerem pedidos de cassação, passa a figurar em todos os noticiários quando, ao ver um deputado de seu partido absolvido, dançou em pleno plenário. Sendo este ato conhecido como a “dança da pizza” que, segundo a oposição, simbolizaria a comemoração da impunidade.

          Através desse evento, um tanto inusitado, viso tecer algumas considerações sobre a excitação e o decoro parlamentar. Para tanto, utilizo como base teórica as contribuições de Nobert Elias e Eric Dunning em seus estudos sobre a busca da excitação, além de buscar relacioná-las com o código de ética que rege a atuação dos parlamentares e em quais medidas tal ato pode ser caracterizado como quebra de decoro.

  

2. Quem mesmo?

 

         A carioca Ângela Moraes Guadagnin [6] , atualmente em seu segundo mandato como deputada federal pelo estado de São Paulo, é médica e tem filiação no Partido dos Trabalhadores desde o ano de 1986, tendo disputado sua primeira eleição no ano de 1988, concorrendo ao cargo de vice-prefeita na cidade de São José dos Campos (SP). Concorreu também a uma vaga como deputada estadual no ano de 1990, sendo finalmente eleita para a prefeitura da mesma cidade 1992.

          Desde 1998 ocupa uma cadeira na Câmara dos Deputados, sendo reeleita para a atual legislatura com um total de 153.931 votos. Integrante do Conselho de Ética da Câmara, tem como principais bandeiras de atuação a defesa dos direitos das crianças e mulheres e alguns projetos polêmicos, tais como o projeto de lei 2479/2003, que institui o “Dia do Saci”, comemorado no dia 31 de outubro, visando a valorização da cultura nacional.

 

3. A Dança

 

         A deputada Ângela Guadagnin já havia, através de um pedido de vistas no processo adiado por duas sessões a votação, no Conselho de Ética, do relatório – produzido pelo deputado Jairo Carneiro (PFL – BA) - o qual recomendava ao plenário da Câmara a cassação de João Magno devido à quebra do decoro parlamentar em decorrência de um suposto recebimento da quantia de R$ 426 mil reais de um esquema de corrupção organizado pelo empresário Marcos Valério, esquema que ficou conhecido como “valerioduto”, e não ter prestado contas de tais recursos a Justiça Eleitoral.

          Finalmente quando o processo foi votado no Conselho de Ética, a deputada apresentou voto em separado, no qual propunha uma pena alternativa: ao invés da perda do mandato, apenas deveria ser imputada ao deputado uma suspensão temporária, por tempo a ser definido pelo próprio Conselho. Tal penalidade deveria ser outorgada devido à “circunstâncias do caso e da transparência com que atuou Magno” [7] .

          Ao ser levado para a votação, o Plenário decidiu pela absolvição do deputado – sendo 207 votos contrários a cassação, 201 favoráveis, 10 abstenções, 5 votos em branco e 3 nulos, totalizando 426 votos. O ato de maior repercussão foi a atitude da deputada Ângela Guadagnin que, ainda durante o processo de apuração dos votos, dirigiu-se ao deputado, já absolvido pelos votos até então apurados, com leves gestões de uma dança.

          As votações que decidiam pela perda ou não dos mandatos dos arrolados neste escândalo de corrupção vinham sendo acompanhados com muito interesse por parte da imprensa, com espaços diários nos principais telejornais, gerando inclusive recordes de audiência para a TV Câmara.

          Como de costume, o resultado da votação gerou polêmica, mas não conseguindo alcançar a repercussão da dança da pizza. Esta veio a produzir comentários, por parte da oposição e de setores da imprensa, classificando tal ato como uma comemoração da impunidade, capaz de macular a imagem de todos os parlamentares.

  

4. A excitante dança

 

         Após ver as imagens de sua dança ilustrando todas as matérias jornalísticas, a deputada Guadagnin argumenta, em sua defesa, no Jornal O Estado de S.Paulo, na edição de 25/03/2006:  “Que me perdoe quem encarou como deboche. Foi um ato humano, diante da situação de um amigo. Eu sou humana, agi espontaneamente com o coração.”

          Essa situação me levou a recordar os ensinamentos de Elias e Dunning  (1992)  quando discutem a excitação nas sociedades industriais avançadas, pois segundo os citados pesquisadores  tais sociedades encontram-se menos abertas para grandes demonstrações de excitação de seus membros. Isso ocorre devido a um maior e eficaz controle das pulsões, capaz de coibir excitações apaixonadas em público – e até mesmo na esfera da vida privada – através de uma rígida organização social para o controle de tais expressões de sentimentos.

          Inicialmente, faz-se necessário traçar parâmetros capazes de tornar compreensível a exploração do conceito de excitação proposto no presente artigo, segundo minha leitura de Elias e Dunning, entendo-a como elemento fundamental, quiçá distintivo, da satisfação durante os divertimentos. Mas, buscando superar a velha dicotomia trabalho X lazer, centro-me nas bases da busca pela excitação, segundo as quais, as mesmas emoções que sempre se fizeram presentes em nossas vidas, tornaram-se cada vez mais cerceadas com o advento das sociedades atuais.

          Ainda segundo os autores:

 

“Só as crianças saltam e dançam com excitação [8] , apenas estas não são censuradas de imediato como descontroladas ou anormais, se choram e soluçam publicamente, em lágrimas desencadeadas pelos seus sofrimentos súbitos, se entram em pânico num medo selvagem, ou se cerram os punhos com firmeza e batem ou mordem o odiado inimigo, num total abandono quando se excitam.” (Elias e Dunning, 1992, p. 102)

 

         Com isso, “ver homens e mulheres adultos agitarem-se em lágrimas e abandonarem-se às suas amargas tristezas em público, ou entrarem em pânico dominados por um medo selvagem, ou a baterem-se uns aos outros de forma selvagem debaixo do impacte da sua excitação violenta, deixou de ser encarado como normal.” (idem).

          Assim, tais demonstrações de excitação em público, invariavelmente são percebidas como vexatórias, provocando determinado constrangimento tanto para quem assiste como para quem produz tal cena.    

          Pois, como nos recorda Elias e Dunning.

 

Habitualmente é motivo de embaraço para quem assiste e, com freqüência, motivo de vergonha ou arrependimento para aqueles que se permitiram ser dominados pela excitação. Para serem considerados normais, espera-se que os adultos vivendo nas nossas sociedades controlem, a tempo, a sua excitação. Em geral, aprenderam a não se expor demasiado. Com grande freqüência já não são capazes de revelar mesmo nada de si próprios. O controle que exercem sobre si tornou-se, de certo modo, automático. O controle – em parte – já não se encontra sob o seu domínio. Tornou-se um aspecto da estrutura profunda da sua personalidade”. (idem, p. 103).

 

         Esse constrangimento parece que se abateu sobre a deputada petista, pois, segundo afirma ao jornal O Estado de S.Paulo, edição de 29/03/2006: “a mídia quis me vilipendiar, ao me mostrar como a dançarina da pizza ou a sacerdotisa da imoralidade”.

          Tal afirmação pode servir de indício revelador das restrições emocionais vigentes nas sociedades modernas, ou seja, não somente trata-se da comemoração de uma amiga pela salvação do mandato de um réu confesso de crimes eleitorais, mas principalmente por este caso se desenrolar num dos principais centros de poder da República.

          É sempre salutar recordar que tais restrições não se restringem a esfera da vida pública, imbricando sempre com a vida privada de quem pratica tais atos, pois, como presenciamos na mesma entrevista do dia 29/03/2006, visando diminuir os efeitos desse ato em sua biografia, Guadagnin apela para um misto de currículo político e características individuais, “vinte segundos apagaram mais de 30 anos de vida política. Posso ser gorda, não pinto os meus cabelos brancos, sou do PT”.

  

5. O decoro parlamentar

 

            O artigo quinto do regulamento do Conselho de Ética define claramente o que seria a quebra do decoro parlamentar. Em seu inciso primeiro afirma: “perturbar a ordem das sessões da Câmara ou das reuniões da comissão” e, no inciso segundo, completa “praticar atos que infrinjam as regras de boa conduta nas dependências da Casa”.

          Tais artigos permitem claramente caracterizar a dança da pizza como quebra de decoro por parte da deputada Guadagnin. Assim, o Partido Popular Socialista (PPS), apresentou uma representação ao próprio Conselho de Ética, segundo a qual a deputada, com sua atitude no Plenário, feriu a imagem da Câmara perante a sociedade. Segundo tal representação, o corregedor-geral da Câmara – cargo então ocupado pelo deputado Ciro Nogueira (PP-PI) – ao analisar tal recurso propôs como punição, prontamente acolhida por unanimidade pelos membros da Mesa Diretora da Câmara, uma censura verbal à deputada.

          A punição foi lida no Plenário da Câmara, mesmo palco da dança, com base nos artigos acima citados, sem a presença da mesma para pessoalmente tomar conhecimento da sua punição.

          A defesa da deputada baseou-se no princípio constitucional que assegura a todo cidadão a liberdade de expressão de opinião e de pensamento, mas tais argumentos, se evitaram uma punição mais severa, não impediram de caracterizá-la como uma parlamentar que desrespeitou as normas de “boa conduta nas dependências da Casa.”

          Tal punição pode atrapalhar uma possível tentativa da parlamentar em obter o terceiro mandato; pois, como argumentei em um artigo recente (Passos & Ferreira, 2004), é durante as campanhas que os candidatos se relacionam com uma gama de possíveis eleitores e nesse momento as identidades estão postas à prova, incluindo aí o reforço e atualização de alguns símbolos construídos durante a própria campanha e possíveis mandatos anteriores para identificar o político. Com isso, tais eventos são sempre mencionados em campanhas posteriores.

         Assim, os símbolos também estão em disputa no jogo político, numa disputa de (re) significação servindo para sustentar a imagem de um político.

 

 Finalizando a dança

 

         Finalizando essas breves notas sobre a excitação nas sociedades modernas e o decoro parlamentar, este artigo se encerra na expectativa que a esperança não seja derrotada pela descrença e apatia política.

          Esperando assim que episódios similares não sejam naturalizados como fontes de anedotas, esperamos que a dança da pizza seja o último exemplo da comemoração de um ato de irregularidade seguida de mera advertância. Ansiando por futuro próximo no qual as notícias e artigos sobre a Câmara, assim como sobre os demais representantes do Povo, tratem de uma legislação em defesa desse próprio povo e não somente sobre um corporativismo em defesa de um determinado conjunto (ou seria melhor camarilha?) político.

  

A saideira

 

            O presente capítulo, quase um anexo catártico, revela a utilização desse tragicômico episódio pela Agência3, empresa do ramo da publicidade que aproveitou a repercussão para criar a mais recente propaganda de um de seus clientes, a marca de cachaça Magnífica.

          A campanha, segundo a revista de publicidade Meio & Mensagem, tem como título “Senhoras deputadas: bebam com moderação”, e como slogan “Vai bem com tudo, menos com pizza”.        

         Esperamos que tal produto não seja utilizado para brindar a impunidade. 

NOTAS

 

[1] Roberto Jefferson Monteiro Francisco, petropolitano, ingressou em 1971 no MDB, desde 1980 é filiado ao PTB, legenda pela qual ocupou sucessivos mandatos de deputado federal de 1983 até ser cassado em setembro de 2005.

 

[2] Esse termo alcançou proporção nacional ao ser cunhado numa reportagem realizada pelo jornal Folha de S. Paulo, na edição do dia seis de junho de 2005.

 

[3] Para melhor compreensão das mudanças ocorridas recentemente no Partido dos trabalhadores recomendo a leitura do texto O “Professor Florestan” e as lições que o PT esqueceu (OLIVEIRA, Marcos. 2005) disponível em www.achegas.net .

 

[4] Por caixa 2 entendo a omissão de receita, com uma declaração menor do que o valor arrecadado para fins eleitorais, numa quebra da Lei 8.137/1990, sendo ao desviante a possibilidade de pena de reclusão de dois a quatro anos, e multa.

 

[5] O pedido de vistas em um processo consiste no ato de adiar a sua votação para a apreciação de um Explicar o que é o pedido de vistas num processo.

[6] As principais fontes pesquisadas para a elaboração desse trecho foram o website pessoal da deputada, <http://www.angelaguadagnin.net/> e o site da câmara dos deputados federais <http://www2.camara.gov.br/>.

[7] Informação obtida no site do Partido Comunista do Brasil, acessado no dia 16 de fevereiro de 2006. <http://www.vermelho.org.br/diario/2006/0217/0217_consetica.asp>.

[8] Grifo meu.

 

BIBLIOGRAFIA

 

ELIAS, N. & DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.

FOLHA DE S.PAULO, 25/03/2006.

________________, 29/03/2006.

MIGUEL, Luis Felipe. Apresentação. Rev. Sociol. Polit. [online]. June 2004, no.22 [cited 30 April 2006], p.7-12. Available from World Wide Web: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782004000100002&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0104-4478.

OLIVEIRA, Marcos. “O ‘professor Florestan’ e as lições que o PT esqueceu”. www.achegas.net . Março/abril 2005, no 22. ISSN 1677-8855.

PASSOS, Thiago & FERREIRA, Isabel. “As rosas não falam?”: notas sobre um rito de comensalidade ocorrido no encerramento da campanha de Rosinha Matheus. www.achegas.net , Julho/agosto 2004, no 18.

 

Sites:

 

www.angelaguadagnin.net

www.camara.gov.br

www.vermelho.org.br/diario/2006/0217/0217_consetica.asp

  

RESUMO: O artigo aborda episódio ocorrido durante a votação do pedido de cassação do mandato do deputado João Magno (PT-MG); episódio protagonizado pela deputada federal Ângela Guadagnin (PT-SP), conhecido como a “dança da pizza”, através do qual teço algumas considerações sobre a excitação e decoro parlamentar.

 

PALAVRAS-CHAVE: Excitação, decoro parlamentar e dança da pizza.

 

* Agradeço as palavras de incentivo e carinho de Isabel Ferreira (MN/UFRJ) durantes os nossos “cafés antropológicos” sem os quais o presente texto não existiria.

 

** Bacharel em Ciências Sociais pelo IFCS/UFRJ. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos, desenvolvendo atualmente a dissertação intitulada "Jogo Invertido: moderno e tradicional no futebol brasileiro. Um estudo sobre o papel simbólico dos clubes 'pequenos', o caso do America Football Club", com financiamento da Fapesp e orientação do professor doutor Luiz Henrique de Toledo. thiagopassos@gmail.com

Fechar