O BRASIL NÃO CONHECE O BRASIL

 

Gisálio Cerqueira Filho*

 

Para Josué de Castro

 in memorian

 

Carta de D. Sebastião de Aviz (1554/1578), rei de Portugal,

ao pintor Francisco Goya (1746/1828)

 

- segundo construção literária ficcional de Antonio Tabucchi, in “Os Voláteis do Beato Angélico”, Quetzal Editores, Lisboa, 1989 -

 

          “ (...) Da nossa península, a vossa terra tem uma virtude quintessencial, nas linhas, na fé, na fúria: a partir delas escolherei algumas figuras do símbolo que, como signo heráldico de um país único, poreis como sigla na margem do quadro que vos encomendo.

                      Fareis à direita o Sagrado Coração de Nosso Senhor; e há-de ser gotejante e envolto em espinhos como nas imagens que os cegos e os feirantes vendem nos adros das nossas igrejas. Mas deverá ser uma reprodução fiel da anatomia do homem, porque para padecer na cruz Nosso Senhor se fez homem e o seu coração sangrou humanamente e foi trespassado enquanto músculo de carne. Assim o fareis, muscular e latejante, túrgido de sangue e dor: com o desenho das veias, as artérias retalhadas e a minuciosa textura da membrana que o envolve, aberta como a casca de um fruto. Deveis cravar-lhe no coração a lança que o transpassou: a sua lâmina terá a forma de um gancho, de forma a produzir um rasgão do qual o sangue jorrará, copioso.

          Na outra margem do quadro, a meia altura, de forma a que necessariamente se situe no limiar do horizonte, pintareis um pequeno touro. Fá-lo-eis agachado sobre as patas posteriores e com as anteriores graciosamente estendidas para a frente, como um cão doméstico; e os seus cornos serão diabólicos, e o seu aspecto ameaçador. Na fisionomia do monstro exercitareis com profusão a arte desses caprichos em que sois exímio, e, assim, o seu focinho será percorrido por um riso escarninho: mas os olhos serão ingênuos e quase pueris. O tempo será brumoso e a hora a do crepúsculo. Uma sombra de fim de tarde, piedosa e lânguida, virá já caindo e velando a cena. Por terra haverá cadáveres, muitíssimos cadáveres, numa nuvem densa como de moscas.     Assim os fareis, como só vós sabeis fazê-los, incongruentes e inocentes como são os mortos. E junto deles, e por entre os braços deles, pintareis as violas e as guitarras que levaram por companhia para a morte.

                      No meio do quadro e bem acima, entre céu e nuvens, fareis uma nau. Não será uma reprodução do real, mas algo como um sonho, uma aparição ou uma quimera. Porque será ao mesmo tempo todas as naus que levaram a minha gente por mares nunca dantes navegados em direção a costas longínquas, mergulhando-as nos abismos infinitos dos oceanos; e também todos os sonhos que a minha gente sonhou das falésias do meu país voltado para o mar; e os monstros que ela criou em seu imaginar, e as fábulas, os peixes, os pássaros deslumbrantes, os lutos e as miragens. E será ainda os meus próprios sonhos, que herdei dos meus antepassados, e a minha silenciosa loucura. Ornando a proa desta nau, que terá feições humanas, fareis um semblante vivo que faça vagamente lembrar meu rosto. Sobre ele poderá perpassar um sorriso, mas que seja incerto ou um tanto inefável, como a saudade irremediável e sutil de quem sabe que tudo é vão e que os ventos que fazem inchar as velas dos sonhos mais não são do que ar, ar, ar (...) ”.

 

 

                             

                  Esta citação do escritor Antonio Tabuchi será tomada como peça discursiva singular para realçar breve análise dos aspectos identitários mais profundos que marcam a formação social brasileira.

                   Por que Antonio Tabuchi? Nascido na Itália, em 1943, escritor e professor catedrático de Literaratura Portuguesa em Pisa, trabalhou na editoração italiana da obra de Fernando Pessoa, sobre a qual escreveu inúmeros artigos, ensaios e críticas, além de ter trabalhado na tradução da poesia de Carlos Drummond de Andrade em “Sentimento do Mundo”. Entre muitos livros, publicou “Réquiem” (Lisboa, 1991) e, já em 1987, ganhara, na França, o premio Médicis para livro estrangeiro. O autor, escritor consagrado e articulista em diversos jornais da comunidade européia, é considerado profundo conhecedor da “alma” portuguesa.  Preferimos este olhar europeu sobre os lusitanos e, por extensão, sobre o que no Brasil se fará em termos de projeto político, do que qualquer outro a partir da península ou antigos prolongamentos de ultramar.

                   A peça discursiva de Antonio Tabuchi, uma carta ficcional do rei D. Sebastião de Aviz encomendando um quadro ao pintor Francisco Goya, (de resto impossível de ser escrita porque envolve temporalidades muito distantes), permite conjugar os registros da tríade Real/Simbólico/Imaginário inscrita no famoso Seminário de Jacques Lacan para evocar o nosso atual (des)conhecimento do Brasil. 

                               O enigma interpretativo alude à composição “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso), conhecida mundo afora, mas também e sobretudo às “Querelas do Brasil” (Maurício Tapajós e Aldir Blanc), uma outra composição musical, esta última interpretada por Elis Regina. Para não falar das querelas propriamente ditas no âmbito do pensamento social no Brasil. Na aludida música, Elis repete, poeticamente e como num sintoma, o refrão “o Brasil não conhece o Brasil”.

                   Conheçamo-lo pois a partir de uma aproximação estética onde imagens, estilos, idéias, fantasias, associam-se num delírio de mando na demanda de um suposto signo heráldico que permita captar o conjunto de virtudes que o define. Aqui, na nossa interpretação, o Brasil não se distingue propriamente de Portugal; antes o resume e o assume nos seus traços mais marcantes, íntegros e profundos, capazes de esculpir a alma brasileira.

                    Se por um lado, a memória cultural embaralha a distância geográfica; por outro lado, a memória geográfica embaralha a distância cultural, permitindo ambos os embaralhamentos a busca do fio de Ariadne capaz de nos conduzir à identidade nossa de brasileiros. Realçamos assim as implicações éticas e estéticas da onipresença do simbólico em nossas vidas mas cravejado de fantasmas e impulsos fantasísticos que se oferecem à nossa imaginação delirante num esforço inaudito de preenchimento dos espaço vazios do desejo.

      

            

 

 

                              

                     Parodiando o bordão de Goethe, Hier ist der Hund bergraben (é aí que está o mistério, o “X” do problema, a essência da coisa)[1], queremos tomar este fragmento imaginativo de Antonio Tabuchi para, utilizando a metodologia indiciária de Carlo Ginzburg (Occhiacci di legno: nove riflessione sulla distanza, 1998, Feltrinelli, Milano), propor uma interpretação para o que somos enquanto brasileiros.

                     Aqui, neste exercício de utilização do indiciarismo, a ideologia inscrita na contemporaneidade remete à memória da cultura que, superando a distância geográfica, embaralha os tempos históricos e nos oferece a possibilidade de nos observarmos a nós mesmos como sujeitos históricos determinados, mas em constante transformação. Já em José Saramago (“A jangada de pedra”, Lisboa), distância, perspectiva e temporalidade são esteticamente e ficcionalmente tematizadas.           

                     Agora valemo-nos deste outro fragmento estético e discursivo para nos debruçarmos sobre o profundo de nós mesmos.             

              Fé e fúria são as motivações essenciais identificadas na península ibérica como um todo e, na Espanha, em particular, já que Francisco Goya, sendo espanhol, seria capaz de sentir a virtude tanto na fé revelada, quanto no arrojo de um projeto político em ação. Mais que virtude, uma e outra formariam a quintessência, isto é, corresponderiam à depuração purificada das qualidades maiores dos celtíberos. Portugal vê-se refletido no espelho hispânico.

            O primeiro símbolo a ser interpretado é, sem dúvida, o Sagrado Coração de Jesus, signo da fé no redentor ao qual o projeto colonizador é associado. Redenção em Cristo que aponta para a justificação e racionalização de um projeto “civilizacional” que se auto-intitula redentor com relação aos nativos não-cristãos.

           Embora sagrado, o coração deve ser representado como órgão humano para destacar a humanidade do Cristo. Ele deve vir adjetivado pelo sofrimento; daí envolvido por espinhos e gotejante de sangue. Mas por que a comparação com os quadros do Sagrado Coração vendidos por feirantes e cegos tanto nas feiras quanto nos adros das igrejas? A cegueira dos muitos comerciantes que oferecem estes pequenos quadros sugere a relação entre a visão e o olhar nos termos proposto por Antônio Quinet.[2] Talvez o importante aqui seja aquilo que não se , mas sustenta aquilo que se vê. Paradoxalmente, embora, a pintura seja destinada aos sentidos e especialmente à visão, o mais significativo a destacar é o quanto o coração sofredor sustenta a fantasia do sacrifício, do sofrimento, da dor. O olhar é ainda o personagem central no mito de Édipo[3] e preponderante na sociedade contemporânea (tele)guiada pela razão paranóica.

            Enquanto músculo de carne, ele deve ser representado “muscular e latejante, túrgido de sangue ... com o desenho das veias, as artérias retalhadas e a minuciosa textura da membrana que o envolve, aberta como a casca de um fruto”. A dor estará associada à lança que  transpassa o coração e a lâmina terá a forma de um gancho, de maneira tal que teremos a conotação de um jorro copioso de sangue. A expressão central que queremos aqui analisar é a palavra gancho.

           Gancho é expressão de múltiplas implicações: não apenas relacionada à extremidade da lança, mas à própria forma que assume o coração sagrado, no qual todos devemos estar pendurados num preito de dívida e gratidão. Gancho não deixará de estar associado também à parede nua na qual o suposto quadro do sagrado coração poderá ser pendurado, hábito tão comum nos lares portugueses e onde mais o projeto de colonização ibérica alcançou.

           A lança que, em forma de gancho, gancha o sagrado coração do Cristo transforma-se em coração na forma de um gancho; coração-gancho oferecido para que nele se pendure alguma coisa. O que exatamente? Os sacrifícios todos, o sofrimento do mundo, a dor e sobretudo o sentimento de culpa que carregamos conosco desde a origem traumática ... 

                       O que se impõe de imediato é a dimensão trágica do signo heráldico. Pendurando no gancho alguma coisa, qualquer coisa, quebra-se a nudez simbólica da parede imaginária, mas ao mesmo tempo elimina-se o vazio dela já que esse vazio vai ser preenchido pelo que acabou sendo pendurado para se destacar dele. Todavia, a metáfora do gancho pode ser interpretada por outro ângulo: algo foi tirado do gancho e a parede ficou seminua, só com o gancho a nos interrogar e demandar por sofrer. O gancho sintetiza assim uma perspectiva para o passado (o coração ferido do Cristo que nos salva para redimir de toda culpa originária) e uma prospectiva para o futuro (o sagrado coração que sangra pelas culpas do porvir). Há alguma coisa de insondável e ao mesmo tempo revelador neste gancho que paira sobre nossas cabeças como espada de Dâmocles.

            A outra imagem que temos presente é a do touro ameaçador e de “cornos diabólicos” para expressar vigor, força e temor. Sentimentos esses que devem ser apenas insinuados não chegando a ameaçar o observador, antes inspirando-lhe reverência. Daí porque a tauromaquia é evocada e convocada a constar na pintura. Ainda assim, o touro deverá ser pequeno e terá aparência de “animal doméstico, cujo focinho será percorrido por um riso escarninho, sendo os olhos ingênuos e quase pueris”. Aqui está presente um certo culto á morte, ao inevitável da morte, que não deve ser temida; antes, associada à música das  violas e guitarras. A morte no que tem de imobilidade deve ser percebida como índice de submissão e obediência.[4] Recorde-se o lema inaciano da Companhia de Jesus: perinde ac cadaver (obediente como um cadáver). Há também um forte componente de hierarquia e de caráter missionário na representação da política. A política como missão, jamais como arte (no sentido maquiavélico).

            Os muitos cadáveres remetem também aos avatares da pilhagem e da pirataria, expressos na “Canção do Grande Pirata”:

 

                                            Fifteen Men on Dead Man’s Chest

                                         Yo – Ho – Ho and a bottle of run[5]         

  

          Por fim, a nau, ela própria uma aparição ou uma quimera, expressará na instância do sonho e do imaginário, o impossível do real. A nau é índice de fantasia no qual o gozo é reeditado na demanda constante do “pedaço do real” contingente em que o desejo fica prisioneiro[6].

           A partir do cais precipita-se o alvoroço, pois “todo cais é (já) uma saudade de pedra”[7]. A nau sintetiza o projeto de navegação português, mas, para muito além dele, um gozo (in)alcançável.

 

                                “... O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança,

                                E como um ruído algo de arruaça acentua-se                    

                   O giro vivo do volante

                                Ó clamoroso chamamento

                   A cujo calor, a cuja fúria, fervem em mim

                   Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos ...”[8]

 

           As caravelas em alto mar trazem para si um projeto de poder – essencialmente tomista (Santo Tomás de Aquino) – calcado na vanglória de mandar. Parodiando, ao revés, o que sucedia na Roma Imperial, quando generais vitoriosos em lendárias batalhas tinham a saudá-lo, na entrada da cidade, vozes altissonantes que ecoavam “Sois homem!” “Sois Homem!”; aqui nas grandes navegações dos portuguêses, qualquer marítimo que arremete-se contra os insondáveis mistérios das viagens transoceânicas e das novas terras, parece ser saudado por uma voz interior que brada “Sois Rei!”, “Sois Rei!”. “São os portugueses atirados de Sagres para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Imponderável”[9].

           Ainda a nau, que deve ser pintada com feições humanas, terá na proa o semblante do próprio rei, como uma carranca que, todavia, trará um sorriso inefável a exprimir a grande lição do poder: assim como os ventos, que fazem inchar as velas dos barcos, as velas dos sonhos, as velas da fantasia, as velas da vanglória de mandar, mais não são que ar, ar, ar ...

           Por isso é vã a glória de mandar ...

 

                          Forum Ciência e Cultura da UFRJ

Rio de Janeiro, 29 de Outubro de 2002

 

 



[1] A referência em alemão ao pé da letra, ao “cão enterrado” é evidentemente metafórica. Sobre o cão, como metáfora que atravessa a história contemporânea alemã, ver Gunter Grass, “HUNDERJAHRE”, Herman Luchterhand, 1963, traduzido para o português sob o título “Anos de Cão”, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1989. 

 

[2] Antonio Quinet, “Um olhar a mais: ver e ser visto na Psicanálise”, Jorge Zahar, Rio, 2002.

[3] Gisálio Cerqueira, “Édipo e Excesso: reflexões sobre lei e política, Sergio Fabris, Porto Alegre, 2002.

 

[4] Gizlene Neder, “Iluminismo Jurídico-Penal Luso-Brasileiro: obediência e submissão”, Freitas Bastos, Rio, 2000, Coleção Pensamento Criminológico, n.4.

 

[5] Fernando Pessoa, “Ode Marítima de Álvaro de Campos”, primeira edição de 1995, Editorial Presença, Lisboa, pág. 33.

 

[6] Gisálio Cerqueira Filho e Gizlene Neder, “Emoção e Política: (a)ventura e imaginação sociológica para o século XXI”, Sérgio Fabris Editor, Porto Alegre, 1997, pág. 27.

 

[7] Idem, pág. 10

 

[8] Idem, págs. 18/19.

 

[9] Idem, pág. 21.



* Doutor em Ciência Política, docente e pesquisador Senior na UFF. Professor Titular de Sociologia. E-mail: gisalio@antares.com.br


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