RAYMUNDO FAORO: O EMBAIXADOR DA CIDADANIA
Paulo Bahia*
Raymundo Faoro morre em um Brasil que se
tornou capitalista não apenas em suas condições latentes, mas sobretudo nas
formas exteriores de suas culturas.
Nascido no Rio Grande do Sul em 1925, este carioca
voluntário e emérito observou com arguta atenção que entre o século XIX e os
primeiros anos do século XXI consolidou-se no Brasil um urbanismo cosmopolita
asfixiado pela oxigenação da mundialização mercantil e financeira. A vida
cotidiana, os domicílios, os transportes, as comunicações, as formas de
iluminação, a alimentação e o vestuário passaram por transformações radicais.
As demandas por direitos, trabalho, terra, saúde, educação, luxo, supérfluo,
entretenimento e lazer se generalizam e se conflituam em uma realidade
cotidiana radicalmente diferenciada pelos padrões de acumulação de pobreza para
a maioria, de iniqüidade para muitos, de riqueza para poucos e de prestígio
para pouquíssimos.
A leitura de Faoro nos faz
olhar para o fato de que as elites brasileiras contemporâneas e seu patronato
político consolidam-se como atores sociais portadores de um individualismo
anacrônico, formatado pela tradição histórica, que continuam a agir de uma
forma impertinente, arrogante e autoconfiante. Buscam, através de incontáveis e
imaginativas estratégias culturais, camuflar o vasto território das angústias,
das humildades e das pobrezas que, com seus medos e esperanças, são a base de
capital material e simbólico em que se assenta a exploração que dá origem às exterioridades
comportamentais e estéticas de nossos governantes, no passado recente e na
atualidade perplexa.
No contexto do século XX,
Raymundo Faoro é um romântico, que produz um discurso sociológico e jurídico
que manipula a idéia de cidadania clássica com uma nova contextualização de
convenções e verossimilhanças, procurando combinar princípios de uma ciência
precisa às descrições do imaginário e da luta por liberdade. Este discurso é
derivado de um humanismo militante, de uma idéia de verdade histórica calcada
no princípio da igualdade.
É este humanismo que leva Raymundo Faoro, então
presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, a, como embaixador da cidadania,
encontrar-se com o presidente da República da ditadura militar, general Ernesto
Geisel, e estabelecer a equação fundadora daquele momento civil brasileiro:
Restaure o hábeas corpus. Geisel, o general presidente da transição lenta,
gradual e segura, sob forte pressão política, assim o faz, abrindo caminho para
a anistia e a Assembléia Nacional Constituinte.
Raymundo Faoro tinha presente a noção de cidadania
de Marshall, explicitada em sua clássica obra Cidadania, Classe Social e
Status, de que, para a existência de direitos civis, é pré-condição o
hábeas corpus e a liberdade de expressão.
Entretanto, a principal fonte da concepção
sociológica e política de Raymundo Faoro sobre cidadania está na idéia do
patrimonialismo como sendo o eixo principal da cultura política brasileira. São
o patrimonialismo, a ética do favor, o clientelismo e a corrupção os responsáveis
pelas experiências políticas frustradas das gerações brasileiras de 1770 a
2002: o patrimonialismo é responsável pelo fracasso das revoluções, pelo
aniquilamento das demandas populares, pelo aborto das insurreições
democráticas. É ele, o patrimonialismo, com suas redes de amizades, de
tolerâncias, de favores e de compadrios o responsável pela permanente tomada do
poder e do governo no Brasil.
O desapontamento profundo dos democratas e a
desilusão geral vão encontrar sua mais perfeita expressão na retórica histórica
e jurídica de Raymundo Faoro e em seu caráter romântico, que procura o
objetivismo empírico das ciências rigorosas e o idílico exercício de um
humanismo solidário e ativista.
A pretensão de Raymundo Faoro de empreender uma
incursão de longo alcance às origens das elites brasileiras como formadoras de
um patronato político reproduz, guardadas as devidas contextualizações, a
aventura de Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo,
sendo exitoso seu esforço ao elaborar Os Donos do Poder, publicado pela
primeira vez em 1958, e em uma segunda edição bastante ampliada e já consagrada
em 1975, sobretudo no manejo que Raymundo Faoro faz da interação dos indivíduos
enquanto atores sociais, desde os tempos da formação do Estado ibérico
português até o Estado nacional brasileiro varguista.
No processo de construção das idéias de cidadania e
patronato político, diretamente vinculadas e manipuladas pelo processo
produtivo do mercantilismo ibérico, Raymundo Faoro pode produzir, em leitores
lineares e simplistas, a impressão de uma certa irredutibilidade do caráter
social brasileiro. Entretanto, Faoro não nos ofusca, fornece-nos um gradiente
de detalhes políticos e culturais, nos quais se apóia para enfatizar que o
individualismo ibérico estava assentado em uma base afetiva e ideológica que
tinha na aventura da conquista patrimonial sua força matriz diferenciadora.
Raymundo Faoro, manejando a idéia de patronato
político e patrimonialismo, passa a exercer uma radical crítica aos reducionismos
cognitivos que são produzidos pelo liberalismo econômico em sua cosmologia, ao
mesmo tempo em que opera a construção de um anteparo eficaz às visibilidades
redundantes geradas pelos determinismos econômicos e de uma sociologia
positivista. Ressalta as nuanças do processo social, promovendo uma
interpretação brilhante, com alguns exageros criativos de abstração, ao
introduzir a idéia de estamento como categoria de análise sociológica e
histórica da realidade brasileira.
Os Donos do Poder nos indica um rumo e uma discussão circunspecta e
profunda sobre o desejo e o imaginário na formação de práticas sociais e
instituições brasileiras. Sem cair em jurisdicismos ou em psicologismos,
abandona a idéia ingênua de se estabelecer a prevalência de um aspecto da sociedade
sobre um outro. Neste sentido, em sua postura metodológica, procura romper a
distância que se operava na época de elaboração do texto Os Donos do Poder
entre as análises ancoradas em Max Weber e Karl Marx. Raymundo Faoro sempre
rejeitou o título de weberiano, e nunca proclamou-se marxista.
Faoro, ao esquivar-se dos compartimentos
mutiladores das explicações centradas no produtivismo, esboça uma compreensão
abrangente sobre a organização social, os valores individuais e o subjetivismo
da dominação política e dos fatos econômicos a ela vinculados.
No processo de elaboração do conhecimento
empreendido pelo autor de Os Donos do Poder, Machado de Assis A
Pirâmide e o Trapézio, A Assembléia Nacional Constituinte A Legitimidade
Recuperada e Existe um Pensamento Político Brasileiro? nota-se a
marca de uma eminente dignidade sociológica, que chama atenção para uma ciência
em permanente construção. Faoro, ao substituir com ousadia e criatividade
determinados conceitos consagrados pelo positivismo jurídico e sociológico por
outros que se fizeram mais adequados ao seu propósito de observação, além de
alforriar-se enquanto pesquisador, liberta o leitor para percorrer com mais
flexibilidade a trajetória da prática social das elites brasileiras, do século
XIII em Portugal até o tempo presente. Faz a um só tempo, autor e leitor
capazes de, com novos olhares, dar abrangência a dados e fatos que antes
calcificavam as explicações, coloca a todos em outro patamar de compreensão.
A retórica histórica de Raymundo Faoro assenta-se
em uma intencionalidade expressa por uma escrita associativa e comparada, que
faz de imagens construídas um fato sociológico, estabelecendo mediações entre a
vivência existencial e um imaginário político, com o intuito de resgatar os
indivíduos de suas frustrações com a realidade.
A intencionalidade da retórica de Raymundo Faoro
constrói um texto que cria convicções emotivas e políticas no leitor,
conferindo-lhe uma ferramenta existencial para lidar com o mundo real.
A obra de Raymundo Faoro, ao interpretar o Brasil,
apresenta-se como um movimento radical democrático, que envolve e integra
passado e presente, autor e leitor.
Fontes bibliográficas:
FAORO, R. Os Donos do Poder. Porto Alegre:
Editora Globo, 1979.
_________. Machado de Assis A Pirâmide e o
Trapézio. Porto Aegre: Editora Globo, 1975.
_________. A Assembléia Nacional Constituinte A
Legitimidade Recuperada. RJ/SP: Editora Brasiliense, 1980.
_________. Existe um Pensamento Político
Brasileiro? Rio de Janeiro: Editora Ática, 1994.
FERREIRA, L. A. Morre Raymundo Faoro, Membro da
ABL e Ex-Presidente da OAB. Disponível em <www.reuters.com.br>, 15 de
maio de 2003.
MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e
Status. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1976.
* O autor é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ.