CARANDIRU: O QUE QUEREMOS DE NOSSA POLÍCIA?

 

Eurico de Lima Figueiredo *

 

         Um dos principais problemas da segurança pública no país é o grau de desconfiança que seus agentes despertam na população. Agora, dando-se crédito aos anúncios das distribuidoras, mais de quatro milhões de brasileiros que assistiram ao filme Carandiru devem estar com pavor da Polícia Militar, da paulista em particular, e em geral da instituição. Na verdade, pode-se supor, por associação e extensão, que esse sentimento deve ter tomado conta de um número maior de brasileiros, já que uma parte expressiva dos que o viram possivelmente conversaram sobre suas impressões com pessoas ligadas aos seus círculos de relações pessoais. Surge então, de tais suposições, evidente paradoxo. Por um lado, não há como deixar de admitir a primordial importância da polícia - tanto civil como militar - para a manutenção da segurança pública. Sem ela – é preciso se pensar em Thomas Hobbes - é inviável a vida social. Por outro, nessa e em outras películas recentes, a imagem dessa instituição é denegrida, exposta ao horror da crítica e ao terror dos expectadores.

Recapitule-se. Tal como na narração do livro, grande parte da projeção concentra-se nos relatos de vários prisioneiros que cumpriam sentenças no complexo de Carandiru em São Paulo. Necessariamente o roteiro deu conta dos casos que, contados ao médico Drauzio Varella, autor da obra, melhor se ajustassem à linguagem cinematográfica. E, tal como no livro, também no filme não existe propriamente uma trama que sirva como fio condutor das estórias e do roteiro. Contudo, tanto os leitores quanto os expectadores sabem que o livro e o filme culminam no episódio de invasão do presídio. É no desfecho que, em ambos os casos, chega-se ao clímax: a brutalidade policial explode nas páginas e na tela. A se julgar pelo que se lê ou se assiste, não se sabe bem como e por que ocorreu a sublevação que ganhou dimensão nacional e até mesmo internacional.  Mais ainda, não há o desenvolvimento de um processo que, em ritmo crescente, explique a eclosão da trágica revolta. Escritor e cineasta parecem querer flagrar a existência de um sistema que funciona na cadeia estadual com suas normas e “leis” próprias, assentando-se ambas em uma impiedosa ética da violência. Desse modo, quando ocorre a invasão policial, e conseqüentemente o massacre, leitor e espectador são pegos de surpresa. Ela ocorre quando o Diretor da prisão não havia ainda esgotado suas possibilidades de negociação entre a Política Militar e os amotinados. Pior: ela se inicia logo depois das futuras vitimas terem jogado suas rústicas armas de defesa no pátio do presídio, facas improvisadas, barras de ferro, objetos pontiagudos de formatação diversa. Parecendo estar sob o comando do demônio, a força policial decide invadir, instalando o inferno. Com suas armas mortíferas, coletes à prova de bala e capacetes protetores, o batalhão de ferrabrases adentra as miseráveis condições da cadeia, metralhando tudo e todos, indiscriminadamente. Mata sem piedade, fuzila sem misericórdia. Tiros, sangue, feridas à mostra. O banho de sangue maximiza a estética do martírio. O tormento toma conta da tela. O pavor é o espetáculo. O ritmo se acelera, à la Spielberg, como nos 45 minutos iniciais de O Resgate do Soldado Ryan. A elétrica cadência das seqüências – com seus requintes de crueldade e covardia - parece “citar” a bestial repressão nazista em algumas cenas de A Lista de Schindler, daquele mesmo cineasta. Números da carnificina: 111 presidiários mortos, não havendo, nos registros oficiais, referências a feridos. O viés ideológico fica claro. Ambas as narrações, a literária e a cinematográfica, focam seus interesses nos presos; apesar de seus hediondos crimes, eles são também pessoas como qualquer outra neste planeta Terra; evidenciam, no contexto de suas perversas opções de vida, complexidades inerentes à condição humana. Os policiais são máquinas de guerra. Artefatos que destroem sem alma nem coração. O impacto do filme é muito superior ao do livro, porque é muito maior o poder da imagem do que o da palavra. E muito mais extenso – e também menos qualificado na escala da instrução - o seu público.

Os norte-americanos – que já produziram uma vasta e qualificada filmografia centrada no tema da “questão penitenciária” e da “questão policial” - parecem mostrar bem como seus intelectuais orgânicos, no âmbito da produção cinematográfica, operam os mecanismos ideológicos e hegemônicos que visam capturar a lealdade e a obediência da corporação policial, subordinando-a à ordem pública vigente. Enaltecem os policiais, chamando-os, inclusive, de officers (oficiais). Humanizam-nos como em Bullit (1968, dirigido por Peter Yates e interpretado pelo carismático Steve McQueen). Denunciam suas falcatruas e suas corrupções, como em Los Angeles, Cidade Proibida (de Curtiss Hanson, 1997, com super-elenco). Exploram o tema da competição depredatória entre os específicos campos de atuação policial (as polícias estaduais, o FBI, a CIA, etc.), e também no interior deles, como em Três Dias do Condor (1975, dirigido por Sidney Pollock, estrelando Robert Redford). Exibem suas violências, suas atrocidades, seus morticínios. Em Prisioneiros do Inferno (Andersonville, 1995), tendo com um dos diretores nada menos do que John Frankheimer,  conta-se a história verídica de um campo de concentração que, com capacidade para abrigar 8.000 prisioneiros, chega a abrigar  32.000, tornando-se  palco de uma tragédia onde, em 1864, chegaram a morrer cem homens por dia. Em toda a filmografia, não importando o enfoque, a mensagem escondida é a mesma. Seja para louvar, seja para denunciar, o objetivo é fazer com que o aparelho policial esteja sob controle dos olhos da sociedade. Exaltando-o, eleva-se a auto-estima da corporação, aproximando-a da população; denunciado-o, permite-se que eles sejam retificados, ao colocar à luz do dia seus erros e desvios.

No Brasil, com freqüência indesejada, para se ater apenas a exemplos recentes, ora o sistema policial é composto por bandidos sem distintivo (como em Cidade de Deus), ora por agentes do demônio (como em Carandiru). São raros os casos em que a corporação parece como sendo integrada por pessoas tão triviais e tão dramáticas como todo mundo. Atos de heroísmo, lealdade, honestidade inexistem; e nem muito menos as complexidades a que necessariamente esses sentimentos se expõem. Parece que no gradiente que vai da direita para a esquerda - e para alegria dos estrangeiros que querem nos ver sempre como um “país exótico” - o Brasil é uma nação bestializada. A crítica gravada no celulóide não tem noção de rumo, não descortina melhor destino.

O combate à ditadura entre nós deixou seqüelas que não foram ainda superadas. A polícia – parametrizada nos tempos de chumbo pela segurança do Estado e não do cidadão – não conseguiu ser repensada no que diz respeito à imagem que lhe deve corresponder na ordem democrática, legal e legítima. Que o aparelho policial entre nós é corrupto, ineficiente, muitas vezes brutal mesmo, sabe-se. Que é preciso providenciar-se amplas e profundas mudanças em seus quadros e em seus dispositivos de operação, sabe-se também. Não se sabe, entretanto, como fazer para construir uma imagem que, tendo lastro na nossa realidade vivida e sentida, corresponda à polícia que temos e a polícia que queremos. Os intelectuais que estão no jogo deixam de fazer a sua parte, ou a fazem pela metade. Quando deixam de fazer, apenas retratam, sem emulação crítica; quando ficam no meio do caminho, é ainda pior. Assumem postura acusatória, denunciam, mas sendo “fáceis” as suas posturas, não apresentam soluções. Comportam-se como  adolescentes: a rebeldia não tem causa.

 Na verdade a questão parece ser outra. Talvez esteja na hora de se perguntar, parodiando-se a famosa pergunta do Presidente Kennedy, não o que a polícia pode fazer por nós, mas o que nós podemos fazer pela polícia.

 

Resumo: O propósito é o de - com base no filme “Carandiru”, que tem por suporte trágicos acontecimentos reais – refletir sobre as diferenças do tipo de imagem de “policial” que é construída em películas cinematográficas brasileiras e norte-americanas; assim como o papel da Polícia como instituição social.

 

Palavras-chave: Carandiru, segurança pública, polícia, cinema e realidade.    

 

* Chefe do Departamento de Ciência Política da UFF e professor anistiado político da UFRJ.

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