René Dreifuss, um dos mais brilhantes cientistas sociais brasileiros
de sua geração, faleceu ontem em sua casa. Lutando durante quase três anos
contra grave enfermidade, e tendo se submetido a duas operações no cérebro
para extirpar tumor que no final se mostrou invencível, jamais deixou de exercer
suas atividades como professor e pesquisador até pouco antes de sua morte.
Fez questão de continuar, em sua casa, sob penosas condições, dando aulas
para os alunos de Relações Internacionais da Pós-Graduação em Ciência Política
da UFF. Em dezembro último, já apresentando sérias dificuldades para se locomover
e para falar, fez questão de comparecer ao seu local de trabalho para presidir
banca de mestrado que julgava a tese de um querido estudante. Nessa oportunidade,
sua mulher, Estrela Bohadana, lia em voz alta os comentários e indagações
preparados por ele. Na intermitência
da doença, encontrou forças para viajar pelo país e para o exterior, satisfazendo
apenas alguns dos inúmeros convites feitos pelas mais prestigiadas instituições
de ensino e pesquisa que sempre estavam sobre sua mesa de trabalho. Encontrando
brechas no tempo que lhe era escasso, e vencendo o cansaço profundo - causado
pela ingestão de, ou a exposição a, drogas poderosas - descobriu suficientes
motivações para escrever, contando sempre com a ajuda inestimável de sua mulher,
seu último livro. Matrizes do Século XXI será a continuação
dos seus penetrantes estudos e reflexões sobre o mundo contemporâneo, exposto
às irrupções científicas e às explosões tecnológicas sob a égide da ordem
globalizada e que, por isso mesmo, estão a requerer a elaboração de novos
paradigmas perceptivos. Sua mulher, seus amigos e colegas da UFF e alhures
por certo se encarregarão de publicá-lo.
René teve uma vasta e sólida
formação intelectual. Nascido em 1945 em Montevidéu, Uruguai, formou-se em
História e Ciência Política pela Universidade de Haifa, Israel. Obteve, na
Grã Bretanha, sempre na área da Ciência Política, o Mestrado na Universidade
de Leeds, Inglaterra, em 1974, e seu Doutorado na Universidade de Glasgow,
Escócia, em 1980. Seu currículo exibe uma ampla e diversificada participação
em palestras, seminários, conferências, simpósios, etc, tanto no Brasil, como
no exterior. Poliglota (falava e escrevia em espanhol, português, inglês,
francês, alemão e hebraico), publicou, em revistas brasileiras e internacionais,
várias dezenas de artigos sobre assuntos políticos nacionais e latino-americanos,
forças armadas e sociedade e, nos últimos tempos, cultivando a abordagem multidisciplinar,
relações internacionais. Escreveu vários livros, sendo logo o primeiro um
best-seller, que vem merecendo sucessivas
edições, 1964: A Conquista do Estado
(Vozes, 1981). Seguiram-se a
Internacional Capitalista (Espaço-Tempo, 1986); O Jogo da Direita na Nova
República (Vozes, 1989); Política, Poder, Estado e Força - uma leitura de
Weber (Vozes, 1993); e A Época da Perplexidade (Vozes, 1996).
Entre
os diversos cargos por ele ocupados, destacam-se os de professor de Ciência
Política da UFMG (1980/1984), o de membro-fundador do Núcleo de Estudos Estratégicos
da UNICAMP, o de pesquisador-visitante na área indisciplinar de energia da
COPPE/UFRJ (1984/1986), o de assessor-técnico da Fundação Escola de Serviço
Público (FESP) do Rio de Janeiro e, até há pouco tempo, o de conselheiro ad
hoc do Ministério de Relações Exteriores da República Federativa do Brasil.
A partir de 2000 foi Coordenador do módulo “Mudanças de Paradigmas de Ciência
& Tecnologia” no Instituto Virtual Internacional de Estudos
das Mudanças Globais da COPPE/UFRJ. Desde 1986 até o seu falecimento,
foi Professor do Departamento de Ciência Política da UFF, lecionando na graduação
e na pós-graduação, onde, nos últimos anos, recebia da FAPERJ bolsa de apoio
para suas pesquisas.
O
autor dessas breves anotações foi
colega e amigo pessoal de René Armand Deifuss por 27 anos. Foi, assim, testemunha
viva do acidentado périplo cumprido pelo profissional exemplar, cultor de
notável disciplina de trabalho, mas que, antes de mais nada, foi dotado de
raro talento para o entendimento dos intrincados e tumultuosos processos que
caracterizam a existência social da vida
humana. Como homem, René viveu como veio a morrer: valorizando a dignidade
como valor central de sua conduta, democrata convicto, cientista interessado
em investigar e buscar soluções para os problemas da pobreza e da miséria,
tanto no plano nacional, como no plano da sociedade mundial. Naturalizado
brasileiro, tendo com o Brasil um caso de paixão que o fazia sofrer, mas também
se alegrar, aqui se casou por três vezes, tendo em seu primeiro matrimônio
com Áurea Fuks seu único filho, Daniel. Passou seus últimos dez anos de vida
com Estrela Bohadana, companheira que, até o instante derradeiro, esteve ao
seu lado sempre, velando-o, confortando-o, amando-o.
Pouco
depois de seu sepultamento, Bernardo Sorj, companheiro de René de todas as
horas, abraçando-me com tristeza, disse-me entre lágrimas que estávamos os
dois mais pobres. Sem conforto, vejo-me obrigado a reconhecer a justeza de
suas palavras, sem sequer poder remediar a minha dor. Estamos todos nessa
situação, seus parentes, seus amigos mais próximos e, em geral, as Ciências
Sociais no Brasil e em toda a parte.
Cuidaremos,
portanto, para que sua memória permaneça entre nós, providenciando a realização
de solenidades que façam com que, na nossa querida UFF e fora dela, seu espírito
sirva e permaneça como exemplo e guia das novas gerações.
Rio de Janeiro, 5 de maio de 2003.
* Chefe do Departamento
de Ciência Política