NOVAS FORMAS DE VER O POLÍTICO: O PARADIGMA SUBJETIVO

Miriam de Oliveira Santos *

1-  O paradigma de Maquiavel: A Secularização da política.

Maquiavel representa um marco na elaboração da moderna concepção de política.  Enquanto a política antiga e a medieval procuravam descrever o bom governo, ditando as regras do governante ideal, Maquiavel verifica como os governantes realmente agem. Por isto, sua obra mais conhecida, “O Príncipe” (1513) reflete as condições políticas da época em que foi escrito.

Na obra de Maquiavel destacam-se como pontos importantes a reforma política, o livre exame dos fatos históricos, o ataque às tradições medievais e principalmente a instituição do êxito como única medida do poder do príncipe, em suma, a ruptura do poder temporal com o poder espiritual. Segundo ele, o príncipe deverá ser capaz de compreender o jogo político efetivo nas suas circunstâncias concretas e de identificar as forças do conflito a fim de agir com eficácia.  Para essa atuação não ser vã, é necessário admitir que os valores morais que regulam as condutas individuais não se aplicam na ação política (Maquiavel, 1999).  A recusa do prevalecimento dos valores morais na ação política indica um novo conceito de ordem, impensável na filosofia política medieval.  Para Maquiavel a política requer a lógica da força e é impossível governar sem fazer uso da violência.

Resumindo podemos dizer que Maquiavel é o responsável pela autonomia do campo da ciência política, que  se desliga das preocupações filosóficas e da política normativa dos gregos, desvinculando-se também da moral cristã.

 

2- Quebrando o paradigma: a subjetividade da política

Maquiavel vai nortear toda a ciência política subseqüente, mas nossa época caracteriza-se justamente pelo desencontro entre a realidade e suas explicações, vivemos em uma época de quebra de paradigmas, em que mais do que nunca torna-se atual a frase de Marx: “Tudo que é sólido desmancha no ar[i] , não por acaso utilizada por Marshal Berman em seu livro sobre a crise dos paradigmas nas ciências sociais.

Slavoj Zizek em um texto sobre as repúblicas do leste europeu, sugere novos caminhos para pensar o político, que não passam mais pelo modelo paradigmático de Maquiavel.   À idéia de Estado-Nação ele contrapõe a de Nação-Coisa, e enquanto Maquiavel buscava a impessoalidade da política, Zizek sugere uma política mais pessoal, ligada a uma idéia de nação como “coisa nossa”, como “nosso modo de vida”.

Buscando na psicanálise as explicações que não encontra nos marcos clássicos da Ciência Política, Zizek vai trabalhar com as noções de antagonismo e divertimento, aliadas aos conceitos do real e do simbólico ideológico.

Não por acaso muitas análises sobre a Segunda Guerra do Golfo são calcadas na psicanálise, sugerindo que a obsessão de George W. Bush estaria ligada ao desejo de superar o pai (que não conseguiu depor Saddam Hussein) e assim simbolicamente matá-lo.

  

3 - Policy e politics nas sociedades contemporâneas, mudanças no paradigma político. 

        Segundo Balandier o termo “político” comporta várias acepções.  Os termos policy e politics, significariam, respectivamente, os tipos de ação que concorrem para a direção dos negócios públicos e as estratégias que resultam da competição dos indivíduos e dos grupos. (Balandier, 1967).

         Atualmente a política, no sentido de policy, pode tornar-se interna e pessoal. Do Estado-Nação, com inimigos externos, retratados no paradigma clássicos da filosofia política, passamos à Nação-Coisa de Zizek, onde os inimigos estão próximos, dentro de nosso próprio país.  Exemplos trágicos desta mudança são os ataques suicidas palestinos e o atentado às torres gêmeas no 11 de setembro. O inimigo não está mais fora, mas dentro do país, pode ser qualquer um e atacar a qualquer momento.

         Obviamente esta maneira de ver as coisas dificultou muito a imigração e integração de imigrantes e aumentou bastante a desconfiança quanto ao outro, ao diferente, aquele que não é como eu.  Atualizam-se aqui os marcos clássicos dos estudos de Simmel onde ele atenta para a similaridade entre o Estranho e o Estrangeiro. (Simmel, 1983).

Unindo-se essas acepções do termo política, à idéia de Slavoj Zizek de Nação enquanto coisa e do roubo do gozo, (?) podemos tentar compreender a obsessão norte-americana por segurança e sua relação com os mecanismos de controle.  Analisando a atual política migratória dos EUA podemos traçar paralelos  bastante claros com a idéia de Coisa nacional como “um absoluto particular que resiste à universalização”. (Zizek, 1999: 439).   Esta análise é capaz de explicar porque nestes tempos de globalização e integração econômica renasçam os regionalismos e a xenofobia. Citando textualmente Zizek: “Portanto, já que o excesso foi trazido de fora – um estrangeiro intruso -o sonho é que sua eliminação permita recuperarmos a estabilidade social que forma um corpo corporativo harmônico (...)”. (Zizek, 1999: 444).

         Acrescente-se a esta idéia de inimigo interno, a segunda acepção  que Balandier dá para o termo “político”. O termo politics, com o significado de estratégias que resultam da competição dos indivíduos e dos grupos, ou seja, da competição para que sejam implementadas, as idéias de determinado indivíduo ou grupo e não de outro. Esta é uma outra vertente da política atual, uma atuação voltada para o interno, para os interesses paroquiais, para as disputas entre caçadores e ecologistas, entre grupos pró e contra o aborto, entre os que querem a construção de uma nova refinaria de petróleo no Rio de Janeiro e aqueles que  defendem que ela seja construída no Nordeste. 

É novamente uma personalização da política, uma transferência do nacional para o pessoal, mais que a transformação do Estado-Nação em uma Nação-Coisa, a transformação em um Estado-Pessoal, com um individualismo exacerbado onde a política passa não pelos partidos, mas por grupos de interesse.

 

4. Conclusão

A objetividade e a racionalidade perseguidas por Maquiavel ao propor novas formas de pensar a política foram substituídas, no nosso século, por uma busca da subjetividade na política.  Não nos é possível compreender o mundo atual, apenas racionalmente, é necessário levar em conta o imaginário, os arquétipos, os anseios e as aspirações de cada povo.

Quando se trabalha com os conceitos de nação e etnia estes conceitos tornam-se mais e mais relevantes. O conceito de Estado-Nação, de certa forma obscureceu a importância e a relevância das etnias na formação da nacionalidade, e as explicações marxistas baseadas fundamentalmente  na economia, acabaram afastando outros tipos de análise que contemplavam outros aspectos da vida social.

Só através de estudos que contemplem questões como formação de identidades e relações com o outro é que poderemos melhor compreender fenômenos como a desintegração do Leste Europeu, a guerra da Bósnia e o conflito entre Sérvios e Kosovares.  Só este tipo de estudo pode explicar as dificuldades encontradas pelos Estados Unidos na segunda guerra do Golfo. Afinal, enquanto os americanos  viam-se como libertadores, os iraquianos, mesmo aqueles que estavam em desacordo com Saddam Hussein, viam os americanos como os outros, diferentes, estrangeiros e intrusos em uma casa e uma causa que não eram deles.

Um dos grandes desafios da ciência política atual é reconhecer que o econômico não pode explicar tudo, precisamos de novos modelos, novos métodos, novos paradigmas, novos marcos teóricos para poder dar conta destas questões.  Estes marcos teóricos podem e devem ser buscados dentro e fora da política.

No entanto não devemos perder de vista que no fim das contas  estamos de volta por outros meios ao paradigma clássico da Teoria Política, afinal trata-se de uma luta pelo poder e pela legitimidade do uso da força nos termos de Weber, e também da idéia preconizada por Maquiavel de que para o espaço político não valem os mesmos valores morais que regulam a vida do cidadão.

Falar de poder implica falar da definição de Weber: “Poder significa toda oportunidade de impor sua própria vontade, no interior de uma relação social, até mesmo contra resistências, pouco importando em que repouse tal oportunidade”. (Weber, 1971:219).

         De onde se deduz que, Max Weber entende por poder as oportunidades que um homem, ou um grupo de homens, têm de realizar sua vontade, mesmo contra a resistência de outros homens que participam da vida em sociedade.  Ter poder, portanto, é conseguir impor sua vontade sobre a vontade de outras pessoas.

         O conceito de poder está intimamente ligado à questão da dominação.  Quando se trata de poder, fala-se obrigatoriamente de Dominantes e Dominados.  Daqueles que exercem o poder e daqueles sobre quem o poder é exercido.

         Mais uma vez podemos citar o exemplo da segunda guerra do Golfo, onde George W. Bush, contra tudo e contra todos (incluindo-se aí a ONU e quase toda a opinião pública mundial), utilizou a força para fazer valer as suas vontades e convicções.

É importante ressaltar que ele não é o único, em boa parte dos países árabes o poder é exercido de maneira personalíssima, em Cuba poder e Fidel Castro são sinônimos e  também no Brasil a idéia de que governar e exercer o poder é a capacidade de impor a sua vontade é generalizada.   Nossos governantes costumam exercer o poder como uma extensão de suas vontades pessoais passando por cima de tudo e de todos.  Obviamente esta posição é sempre justificada através de discursos onde se afirma a idéia de que o governo está trabalhando pelo progresso, pelo desenvolvimento, alegando sempre que as críticas e reclamações são injustificadas porque partem daqueles que viram seus interesses prejudicados ou que perderam as eleições. 

Cristóvam Buarque, ministro da educação, professor da UNB e ex-governador de Brasília, afirma que a lógica da modernidade técnica subordina os objetivos sociais e ambientais à racionalidade econômica, ela mesma subordinada à técnica, e que neste contexto os valores éticos são ignorados. (BUARQUE, 1994) Ou seja, voltamos a Maquiavel e à idéia de que a política não pode subordinar-se à moral.

         E enfim podemos dizer que apesar da mudança de enfoque, da passagem do inimigo externo para o interno, do Estado-Nação para a Nação-Coisa, das Macropolíticas para as Micropolíticas, continuam intactos pontos fundamentais da teoria política clássica como a amoralidade do jogo político e a proximidade entre vontade individual e poder. 

O que significa não uma substituição do paradigma de Maquiavel nem a sua aplicação de maneira integral, mas sua incorporação a novos paradigmas, se de um lado é importante levar em conta as subjetividades envolvidas não há como deixar de pensar que a velha máxima de Maquiavel que afirma que o poder do príncipe é medido pela eficácia de suas ações continua valendo, e que ganhar a guerra ainda é uma estratégia eficaz para calar as críticas.

 

Referências bibliográficas

 

BALANDIER, Georges. Antropology Politique. Paris: PUF, 1967. 

BUARQUE, Cristóvam. A revolução nas prioridades: da modernidade técnica à modernidade ética. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

SIMMEL, Georg. “O Estrangeiro” In: Morais Filho, Evaristo.(org.) Georg Simmel. São Paulo: Ática, 1983.

WEBER, Max, Ensaios de Sociologia.2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar,1971.

ZIZEK, Slavoj. As Repúblicas do Leste Europeu, Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.

 

Nota

[i] A frase consta do Manifesto Comunista.

 

RESUMO:  O objetivo deste artigo é comparar as teorias políticas clássicas com as atuais que incorporam conceitos vindos da psicanálise, bem como analisar em que medida a subjetividade pode ajudar na compreensão política.


PALAVRAS CHAVE:  Secularização da política - Subjetividade da Política - Policy e politics


* Miriam de Oliveira Santos - Mestre em Ciência Política – UFRGS, Doutoranda em Antropologia Social – Museu Nacional/UFRJ, Pesquisadora Associada do NIEM-RJ.

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