A NOÇÃO DE POPULISMO NA FOLHA DE S.PAULO[1]

Roberto Bitencourt da Silva *

 

APRESENTAÇÃO

Ambigüidade e controvérsia são características marcantes do populismo enquanto noção operacionalizada pelos círculos acadêmicos. Inversamente, há uma tendência significativa à homogeneização dessa noção no discurso produzido pela mídia. Tal homogeneização se dá em torno da idéia de atraso.

Levando em conta essa premissa, o artigo tem como propósito identificar algumas nuances do deslocamento realizado no uso da noção, do meio acadêmico para o jornalístico. Ocupamo-nos da análise da apropriação da noção de populismo operada pelo discurso da Folha de S.Paulo, buscando identificar a representação simbólica construída no discurso deste jornal, no ano de 1994, que marca a primeira eleição de Fernando H.Cardoso à presidência. O combate à inflação e as reformas orientadas para o mercado são alguns dos temas que demarcam o ano eleitoral em tela. Com base nesse quadro histórico-político, visamos, essencialmente, identificar quais os tipos de fenômenos, propostas e atores políticos classificados como populistas, assim como os motivos políticos e ideológicos que possam ter contribuído para tais designações.

 

1 - DOIS MODELOS DE INTERPRETAÇÃO SOBRE O POPULISMO

A construção simbólica do populismo realizada pela Folha, ou por qualquer outra empresa e veículo de comunicação, não é obra, única e exclusiva, de uma simples invenção jornalística de significados. Partimos, pois, do pressuposto que as definições dadas por publicações científicas exercem substantiva influência na produção jornalística, conformando certos usos e aplicações interpretativas dirigidas a determinados fenômenos sociais e atores políticos[2]. Dessa forma, vale assinalar algumas idéias e conteúdos argumentativos presentes em dois modelos de interpretação sobre o populismo que foram significativamente apropriados, majoritária e naturalmente sob uma forma fragmentada e residual, pelo discurso jornalístico da Folha de S.Paulo, em 1994.

i)                    Modelo clássico - populismo e industrialização.

Por modelo clássico designamos um certo conjunto de abordagens que integram os estudos pioneiros acerca do populismo na América Latina e no Brasil, em particular. Estes estudos foram realizados a partir de meados da década de cinqüenta, pelos intelectuais argentinos Gino Germani e Torcuato Di Tella, tendo por centro a experiência peronista. Outra razão que nos leva a classificar estas formulações como clássicas é o fato de que muitas das idéias, definições e (pré)conceitos sobre o fenômeno, encontrados, freqüentemente, em trabalhos acadêmicos e no uso generalizado do senso comum, são extraídos, em grande parte de modo fragmentado, do grupo de interpretações e autores localizados nesse modelo interpretativo.

No Brasil, talvez seja legítimo inferir que os estudos desenvolvidos por Ianni (1975 e 1991) e Weffort (1989), a partir de meados da década de 1960 - relativamente influenciados pelo instrumental teórico produzido por Germani (1973) e Di Tella (1969) - representem, entre uma vastíssima literatura sobre o tema, aqueles que maior difusão atingiu no meio acadêmico e jornalístico brasileiro, assim como nas publicações de livros didáticos de História. Priorizamos, desse modo, suas reflexões acerca do fenômeno.

Para esses autores brasileiros o fenômeno populista consistiu, no país, num sistema de dominação e sustentação política que perdurou durante os anos de 1930 a 1964. É considerado uma etapa no processo de transformação da sociedade brasileira, marcado pelo incremento da urbanização e da industrialização. A industrialização substitutiva de importações, orientada pelo Estado, o nacionalismo e a oposição ao imperialismo e à oligarquia seriam alguns dos traços mais expressivos do populismo e dos populistas.

Localizando, portanto, o populismo num contexto histórico-estrutural determinado, formação da sociedade urbano-industrial, Ianni aponta como um dos fatores explicativos da emergência desse fenômeno a "ausência de uma classe social suficientemente forte, politicamente organizada e com visão hegemônica de si para assumir e exercer o poder sozinha. Por isso a aliança se torna necessária" (Ianni, 1991: 160). O sistema populista consistiria, assim, numa coalizão policlassista, onde os interesses da burguesia prevalecem.

Um elemento muito recorrente nessas análises clássicas é a percepção de um suposto caráter imaturo e inconsciente do proletariado urbano. Essa peculiaridade seria um fundamento objetivo para entender o apoio popular às lideranças populistas. Conforme avaliação desse modelo interpretativo, o proletariado não possuía uma socialização adequada para a criação de organizações partidárias e sindicais autênticas, concretamente representativas de seus interesses. Estaria sujeito, pois, a uma relação personalista, demagógica e emocional junto às lideranças populistas/carismáticas. Seus órgãos de representação e organização primários, os sindicatos, encontrar-se-iam atrelados aos limites impostos pelo pacto populista, submetidos à tutela do Estado.

Em síntese, o populismo era apresentado - nas abordagens de Weffort e Ianni -, como um dos fatores que estavam na base da ruptura institucional ocorrida em 1964, oferecendo aos trabalhadores, com o seu "colapso", o desnudamento da exploração capitalista e da natureza classista do Estado.

ii)                  Paradigma econômico.

         Esta abordagem sobre o populismo toma corpo e ganha expressão acadêmica nos estertores dos anos oitenta, na chamada década perdida, primando pela análise de diferentes países da América Latina. Tem no economista Bresser Pereira um de seus principais teóricos.

Como o populismo é concebido como uma das causas principais à perpetração da crise da dívida externa, da inflação galopante, da extrema desigualdade social e da instabilidade econômica - entre outros dilemas e entraves para o desenvolvimento econômico-social de nosso subcontinente -, o fio analítico que conduz esse marco interpretativo é a apresentação de razões e fatores econômicos, extraídos de diversas experiências latino-americanas classificadas como populistas, que demonstrem a inviabilidade estrutural desse tipo de estratégia política.

Adota-se, como definição dessa estratégia, a expressão populismo econômico. O que ela viria a significar? Segundo dois autores, pode ser entendida assim:

uma abordagem à economia que enfatiza o crescimento e a redistribuição de renda e desconsidera os riscos de inflação e o financiamento inflacionário do déficit, as restrições externas e a reação dos agentes econômicos a políticas agressivas que não se valham dos mecanismos de mercado (Dornbusch e Edwards, 1991: 151).

De acordo com o paradigma econômico, o terreno fértil à ascensão do populismo é a existência de uma situação recessiva, onde parte da capacidade produtiva encontra-se ociosa e o desemprego elevado. Propõe-se, com efeito, a ser um programa que estimule o crescimento. Em geral, esta meta é perseguida através do estabelecimento de um pacto entre a burguesia e o proletariado urbanos. Possui como cerne o objetivo de reduzir as desigualdades e os conflitos sociais implementando a seguinte medida: elevação dos salários. Esta é considerada uma das características nucleares que atravessam todos os episódios populistas. Contudo, segundo o paradigma econômico, a despeito de suas boas intenções, o populismo representa uma política macroeconômica fadada ao fracasso. O controle de preços, o desrespeito aos limites orçamentários, a manutenção de reduzidas taxas de juros e os constantes aumentos salariais levariam as sociedades latino-americanas ao caos econômico. Assim, irresponsabilidade fiscal, inflação, irracionalidade e demagogia seriam alguns dos componentes do populismo. Um entrave e agressão à lógica racional dos movimentos do mercado e responsável pela gestão dos negócios públicos.

Alguns casos populistas identificados por essa abordagem: no Brasil, sob Vargas, Goulart, Figueiredo (entre 1979 e 1980) e Sarney (especificamente com seu Plano Cruzado); Perón na Argentina; Chile sob Salvador Allende; Alan García no Peru, entre 1985/88; e  o governo sandinista na Nicarágua (1979/1990)[3].

A fim de retirar os países da América Latina da crítica condição em que se encontravam, é sugerida como alternativa ao populismo e, também, face ao que Bresser Pereira chama de ortodoxia neoliberal, a implementação, dentre outras, das seguintes medidas: ajuste fiscal, redução do Estado e taxas de câmbio realistas.

Independentemente de algumas especificidades encontradas no seio desses estudos, este foco que privilegia a dimensão econômica do populismo é marcado pela idéia de uma integração profunda à economia internacional, considerando-a uma iniciativa favorável ao desenvolvimento das nações latino-americanas e à superação de suas crises da dívida e do Estado.

 

2 - SOBRE A GRANDE IMPRENSA E SUAS INTERAÇÕES COM O "CAMPO INTELECTUAL"[4]

A fim de esclarecer a razão que nos levou a optar pela análise do discurso da Folha de S.Paulo, talvez não seja desnecessário assinalar algumas observações sobre o gênero de jornal o qual a Folha está inserida, a saber: os jornais da grande imprensa. Acompanhamos a sugestão conceitual proposta por Alves Filho para a classificação deste tipo de jornal:

[Jornais] que se estruturam como indústria cultural e freqüentemente são apontados pelas instituições de pesquisa entre os de maior vendagem. Posição de preferência que assumem por terem construído e consagrado, perante o mercado consumidor, a imagem de isenção e independência frente aos poderes formais do Estado e aos informais, como as classes sociais e outros "grupos de pressão". Jornais (...) que, funcionando como indústria cultural, representam-se e são representados por segmentos substantivos da população - independentemente de serem rotulados "progressistas", "conservadores", etc. - como comprometidos com o bem comum, com a informação objetiva e com a interpretação correta dos acontecimentos (Alves Filho, 2000: 106).

         Este tipo de jornal, como veículo de comunicação que atua como indústria cultural, visa atingir ao máximo diferentes setores do público, através da oferta de diversas seções e cadernos, como os destinados à mulher/família, aos esportes, cultura/eventos de lazer, etc., mas dando uma ênfase especial às seções de política e economia. Evidentemente seu público-alvo é composto por estratos sociais detentores de um poder aquisitivo alto e de um nível de escolaridade mais elevado que a média nacional. Seu público é formado, pois, por grupos mais influentes junto aos centros de tomada de decisão econômica e política.

Um requisito é indispensável para a manutenção e ampliação de consumidores e anunciantes: a credibilidade social. Segundo Alves Filho (2001), o instrumento utilizado por esses jornais para atingir tal meta é o pluralismo político-ideológico das colunas. Esse instrumento possibilitaria a criação de uma imagem isenta, independente e democrática.

Evidentemente, como argumenta Alves Filho, o pluralismo das colunas não impede a ocorrência de um fenômeno concreto: a linha ideológica (ou editorial) que se materializa nos textos dos editoriais e do noticiário cotidiano, ordenando tanto as interpretações sobre os fatos noticiados quanto o processo de seleções e combinações existentes na produção jornalística - como imagens, símbolos, estereótipos e palavras que integram seus textos. Com relação a esse processo em particular, marcado pelo uso do que Casasús (1985) denomina como "itens redacionais", vale destacar a relevância analítica sobre esses elementos que compõem um texto. Diria o autor, por exemplo, que, "no es lo mismo decir 'activista político' que 'terrorista político'" (Casasús, 1985: 85). Então, em conformidade com essa reflexão, consideramos que o estudo dos itens redacionais pode possibilitar a identificação do processo de seleção e combinação de elementos em uma estrutura redacional, revelando, de modo muito sutil, a ideologia[5] que move o seu produtor.

É nesse sentido, portanto, que pareceu-nos pertinente recorrer ao populismo como um recorte de análise, minúsculo, mas bastante sugestivo, para compreender determinados traços político-ideológicos estruturais do discurso da Folha. Uma chave valiosa para a identificação de determinada forma de pensar e interpretar a realidade, por parte de uma relevante instituição midiática.

Com base no estudo que empreendemos, analisando os textos dos editoriais, noticiário cotidiano e artigos de opinião, deparamo-nos com um interessante dado: as seções de opinião, a despeito de não representarem formalmente a opinião do jornal, possuem grande relevância para a compreensão de muitos componentes argumentativos presentes nos outros dois marcos normativos do jornal. Constituem-se, para o que nos interessa em especial, inequivocamente, numa das fontes de inspiração da representação jornalística sobre o populismo. Por serem preenchidos, com grande freqüência, por artigos produzidos por acadêmicos, tendemos a considerar que é exatamente aqui que abre-se a porta da articulação entre as produções e interpretações científicas e jornalísticas. Ou seja, independente da polêmica estabelecida entre diferentes visões de mundo que marca seções desse tipo, veremos que algumas destas visões, em particular, são apropriadas e ganham ressonância nos discursos apresentados pelos editoriais e pelo noticiário cotidiano. A análise dos artigos pode, pois, ser valiosa para a compreensão do deslocamento da noção de populismo do meio científico para o discurso do jornal. Em alguma medida, as seções e colunas oferecidas à opinião constituem-se num espaço intermediário, de interação, entre a produção dos campos intelectual e jornalístico. Levando-se em conta essa realidade, podemos sugerir que a apropriação jornalística de idéias presentes em algumas análises produzidas por acadêmicos tendem a propiciar um respaldo científico, perante o público-leitor, para a aplicação posterior da noção de populismo (entre outras noções e símbolos) nos editoriais e no noticiário. A correlação entre as fontes conceituais e interpretativas das seções de opinião com o discurso jornalístico pode, desse modo, levar à identificação das conexões entre ciência e jornalismo.

Portanto, a despeito da capa plural-democrática que envolve as seções de opinião, há uma estreita afinidade entre o conteúdo majoritário das mensagens presentes no editorial e nas matérias cotidianas face as perspectivas de alguns articulistas, eventuais ou fixos. Tal articulação poderá, pois, ser percebida nas seções que seguem abaixo.

 

3 - ATRASO: A NOÇÃO DE POPULISMO NA FOLHA DE S.PAULO

O discurso presente na maioria substantiva dos textos publicados pela Folha, em 1994, revela-nos uma apropriação, ou expressiva sintonia, com muitos dos princípios racionalizantes e modernizadores do paradigma econômico, além de revelar o uso de fragmentos de algumas idéias do modelo clássico de interpretação, para identificar ações e atores populistas no cotidiano político[6]. Os valores e crenças presentes na ideologia neoliberal, é claro, também contribuíram sobremaneira para essa identificação. Dentro disso, é relevante notar que, como qualquer ideologia, o neoliberalismo possui um certo conjunto de idéias, símbolos e jargões que orientam o olhar sobre o real. Aos fenômenos e idéias que não se encaixem nessa estrutura de pensamento, atribui-se avaliações negativas. Dentro disso, o populismo não escapou ao complexo jogo de palavras e símbolos utilizados pela ideologia neoliberal.

É, pois, essa composição entre a ideologia neoliberal e os argumentos extraídos de análises de membros do campo acadêmico que conformaram, em grande parte, a representação simbólica do populismo, assim como nortearam a definição de algumas práticas, projetos e atores políticos como populistas no discurso da Folha. 

Como dito anteriormente, o populismo fora representado como um atraso, tanto na esfera política quanto na econômica. E, é exatamente nesta última que a eloqüência no questionamento ao populismo mostrou-se expressiva no discurso do jornal. Em um cenário econômico marcado pelo aprofundamento das relações internacionais capitalistas, por uma grave crise financeira do Estado e por anos de espiral inflacionária, dizia-se que o populismo não tinha mais espaço para responder a esses dilemas e aos imperativos da modernização econômica. O estatismo, o nacionalismo, o protecionismo, a autarquização e os gastos inconseqüentes estariam ou deveriam ser superados e, com isso, o populismo não representava nada mais do que o símbolo de um mundo identificado com o passado. Ou seja, um obstáculo que deveria ser varrido das práticas e metas dos diferentes atores do espectro político-partidário, como se vê nas passagens do editorial intitulado Cassino emergente, publicado em 24/04/1994, reproduzido abaixo.

Desde o início dos anos 90, os países em desenvolvimento têm sido beneficiados por uma nova onda de entrada de capitais. Nos mercados internacionais, essa onda deu origem a uma denominação bastante estimulante: tais economias passaram a ser conhecidas como "mercados emergentes". Em muitos casos houve razões para reencontrar o otimismo. Na América Latina, os ajustes feitos pelo Chile, México e Argentina mostraram que o populismo e o protecionismo podiam ser rompidos. Liberalização comercial, privatização, ajuste fiscal e reformas monetárias bem-sucedidas, (...), acordos das dívidas externas, as evidências foram se acumulando (...). Parecia iniciar-se uma nova era (...). (Folha de S.Paulo: 1-2). (GN).

A satisfação com as mudanças que vinham ocorrendo no subcontinente latino-americano é explícita. O obstáculo à perpetuação dessas mudanças, o populismo/protecionismo, não podia deixar de ser mencionado. Agora, veja-se a correspondência entre a avaliação dos dilemas e entraves à modernidade na América Latina presente no editorial acima com a linha de interpretação de um artigo elaborado por Bresser Pereira. Publicado pela editoria Mais!, em 17/07, o economista abordava o tema das reformas estruturais.

(...) Em ambas as regiões [América Latina e Leste europeu], o ajustamento estrutural - ou seja, a muito necessária reforma do Estado - está sendo realizada. Estas reformas enfrentam obstáculos de todo tipo. Obstáculos originários de uma esquerda retrógrada,(...), e de uma direita aproveitadora, que preda o Estado (...) embora consolidado, o capitalismo latino-americano revela-se capenga, atrasado, produto de uma modernidade incompleta, marcado por desigualdade social selvagem e pelo populismo (...). (Folha de S.Paulo: 6-3). (GN).

As passagens desses dois textos da Folha - publicados em espaços normativos distintos, editorial e seção de opinião - ilustram alguns traços de afinidade interpretativa que se estabeleceu entre algumas opiniões particulares (que não consistem, formalmente, na opinião do jornal) com um certo padrão ideológico/interpretativo encontrado no discurso propriamente jornalístico - editorial e noticiário cotidiano. Ilustram, outrossim, e por outro lado, um significativo componente que marcou a construção simbólica do signo populismo, no ano de 1994, representado como uma barreira para o que se considerava a inexorável modernização, via reformas pró-mercado. A dicotomia entre o populismo/atraso e as reformas estruturais/modernização fora recorrente. O populismo consubstanciava-se numa expressão político-econômica arcaica, que se encontrava, dentro do cenário político, em uma posição antagônica às chamadas medidas racionais, responsáveis e corajosas demandadas pelo esforço de modernização nacional. Esse fora o seu significado. Falta ver a sua aplicação para alguns atores em especial.

 

 

 

4 - ATORES POLÍTICOS REPRESENTADOS

É na presente seção que o caráter desqualificatório dado ao termo apresentará sua face mais nítida, contraposto aos princípios político-ideológicos dominantes da época. Propomo-nos a apresentar o uso da noção de populismo, efetuado pela Folha, referente a três personagens políticos de relevância nacional, diretamente relacionados com a disputa ocorrida em 1994 à sucessão presidencial. Dois destes encontravam-se na posição de candidatos: Lula (PT) e Brizola (PDT). A outra figura política colocada em destaque na seção é a do, à época, presidente da República, Itamar Franco. Guardadas as diferenças existentes entre esses atores políticos - concernentes aos cargos que ocupavam, aos partidos políticos que pertenciam e às suas respectivas biografias - os aproximava a oposição às teses neoliberais (um tanto relativa no caso de Itamar Franco), oposição esta desqualificada pelo jornal como atraso populista. 

É importante destacar que independente do fato de Franco ter apoiado seu ex-ministro da Fazenda, Fernando H. Cardoso, o qual, se constituía, também, no candidato preferido da Folha[7], o então presidente fora alvo de constantes críticas desferidas por esse jornal. Suas intervenções ou declarações favoráveis à intervenção em setores econômicos específicos, assim como as concessões de aumentos salariais, motivaram o jornal a questioná-lo freqüentemente em suas páginas. Pode-se perguntar: qual a relevância em analisar as matérias relativas a Itamar, já que não era candidato e apoiava a candidatura defendida pelo jornal? Ensaiamos a seguinte resposta: suas ações e aspirações governamentais revelavam, exatamente, o perfil político indesejado pela Folha para ocupar a Presidência da República, ou seja, uma postura desfavorável aos preceitos contidos na agenda reformista. É, nesse sentido, que podemos compreender a posição política do jornal e suas críticas, abertas ou veladas, aos opositores populistas da modernidade em um marco analítico mais amplo.

Por ocupar o mais alto cargo público, evidentemente, Franco estaria sujeito a ser bastante mencionado nos textos do jornal. Entretanto, a incidência majoritária de seu nome no corpo de editoriais que operavam com a noção de populismo[8] é uma indicação de que os atos presidenciais foram fonte de preocupação e crítica, por parte da Folha. Ao longo do ano as críticas a Itamar Franco foram uma recorrência. Tendo em vista a operacionalização das estruturas redacionais aos fins deste texto, reproduzimos trechos de um editorial e de uma matéria do cotidiano.

         Em novembro de 1994, o nome de Itamar Franco fora envolvido em uma polêmica nas páginas do jornal significativamente representativa do perfil político-ideológico da empresa. A Folha dedicara alguns espaços do jornal para combater o aumento salarial concedido aos petroleiros[9]. Utilizando o dispositivo lingüístico/ideológico populismo para contestar o acordo estabelecido entre governo e petroleiros, o editorial Acordo a rever, publicado no dia 15/11, informava sobre a possibilidade de revisão deste acordo.

O governo tem uma boa oportunidade para rever o lamentável acordo fechado há pouco com os petroleiros. Itamar Franco convocou para amanhã uma reunião sobre o tema com quatro ministros e há informações de que o presidente poderia finalmente estar reconsiderando o resultado da negociação. Como se sabe,(...), o governo concedeu inoportunas vantagens adicionais a uma categoria que notoriamente já dispõe de uma série de privilégios desconhecidos do cidadão comum. São benefícios particularmente condenáveis num momento em que a estabilização atravessa águas turbulentas (...) o acordo vem mostrar claramente a força do corporativismo no âmbito do Estado e a facilidade com que o governo escorrega para o clientelismo mais populista. Isso num momento em que o país,(...), cobra sinais inequívocos de compromisso com o saneamento e a racionalização do poder público, cruciais para a estabilização (...). Pode ser fácil comprar apoio com dinheiro dos outros, mas é também flagrantemente injusto. É toda população que vai pagar pelos privilégios concedidos à corporação petroleira, (...). (Folha de S.Paulo: 1-2). (GN).

Vale destacar ao menos dois aspectos das mensagens que compõem esse editorial: primeiro. O populismo de Franco é concebido como uma prática política degenerada, irresponsável e irracional, pois não se coadunaria com a lógica racional que deve orientar a gestão dos negócios públicos, propiciando, desse modo, a criação de um ambiente político-econômico favorável ao aumento da inflação e das dificuldades financeiras do Estado. Ecos das argumentações do paradigma econômico ressoam explicitamente. Segundo. A definição da categoria dos petroleiros como uma corporação, evidentemente, denota uma construção simbólica extremamente negativa, representada como uma espécie de grupo social que possui normas, valores e objetivos alheios aos da coletividade, vitimizada no editorial.

Em uma reportagem que revelava a existência de divergências entre Franco e sua equipe econômica, a matéria intitulada Presidente quer tabelamento dos juros e atropela equipe: Planalto pede regulamentação do artigo que fixa taxas em 12% ao ano, de 11/06 (publicada na editoria Brasil), não deixava margem à dúvida sobre que lado o jornal concebia como correto.

A equipe econômica considera que está perdendo as rédeas do Plano Real. Depois de ter sido atropelada pelo presidente Itamar (...) nos aluguéis, mensalidades escolares e lei antitruste, a equipe encontra-se diante de maior ameaça, o tabelamento de juros. Itamar pediu ao deputado Benito Gama (PFL-BA) que acelere a preparação de projeto de lei que regulamenta o parágrafo 3o do artigo 192 da Constituição, pelo qual os juros reais (descontada a inflação) não podem ser superiores a 12% ao ano (...). Ocorre que o deputado havia recebido solicitação exatamente contrária do ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, isto é, que atrasasse o máximo possível a apresentação do projeto (...). Todos os integrantes da equipe econômica, sem exceção, consideram o maior absurdo a tentativa de tabelar juros. Acham que isso é teoricamente errado, inviável na prática e incorreto politicamente. Se (...) Itamar sustenta a visão populista de que os juros altos são provocados pela ganância dos bancos e a cumplicidade do Banco Central, os economistas da equipe acham que as taxas elevadas são conseqüência do estado inflacionário crônico da economia brasileira (...). Para esses economistas, não é preciso prender empresário para baixar preços. Para eles, os preços ficarão estáveis porque o déficit público está sob controle, a economia contida, sem excesso de demanda (...). (Folha de S.Paulo: 1-5). (GN).

As passagens dessa matéria e do editorial possibilitam-nos a constatação de um dado básico, presente no discurso da Folha: o descontentamento do jornal com o fato de a Presidência da República, à época, ser ocupada por um populista, ou seja, um ator político que não se enquadrava apropriadamente ao que o jornal considerava como requisitos político-ideológicos necessários para a consecução das reformas pró-mercado. Dentro disso, a polarização entre o populismo/irracionalidade, de um lado, e o saber técnico/racionalidade, de outro, salta aos olhos. É interessante observar, nesse sentido, que a matéria chegava a sugerir um antagonismo entre a irracionalidade de Franco e o saber técnico, eficiente (supostamente neutro), de sua equipe econômica. A lógica do mercado, desconsiderada por Franco, seria entendida pelos interlocutores da matéria - a equipe econômica.

No que tange a candidatura Lula, um interessante fenômeno a ser observado é a predominância da utilização do signo populismo - a esse candidato, do Partido dos Trabalhadores - em um período determinado, a saber, os meses de junho e julho. A maioria substantiva das matérias do cotidiano que assim classificaram o candidato petista localizam-se nesse espaço de tempo. Talvez não seja desnecessário lembrar que este período consiste exatamente no momento inicial, de aquecimento, da corrida eleitoral, com candidaturas já definidas. Nesse sentido, os dados levantados pelo Datafolha, em 1994, trazem oportunas informações para a reflexão: entre os meses de abril e maio - que marca o início das sondagens realizadas pelo Datafolha à eleição presidencial - Lula encontrava-se numa posição bastante folgada frente os outros candidatos. Porém, entre junho e julho, as pesquisas apresentavam uma queda vertiginosa na intenção de voto para Lula. Fernando H. Cardoso, por outro lado, crescia rapidamente nesse intervalo de tempo, a ponto de encontrar-se praticamente empatado com Lula em fins de julho[10].

Evidentemente, não queremos afirmar com isso que a designação de populista realizada nesse período tenha apresentado influência de tal magnitude nas intenções de voto. Não cabe uma hipótese desta natureza, entre outros, pelo simples fato de que o público-leitor da Folha é extremamente restrito a setores regionais e socioeconômicos específicos. Além disso, não temos instrumentos metodológicos capazes de avaliar o impacto das mensagens nesse público particular. No entanto, mesmo consideradas uma série de possíveis variáveis intervenientes, como a implantação do Plano Real (associada a uma grande difusão midiática sobre os possíveis frutos advindos desse plano econômico) pode-se argumentar que, no mínimo, essa coincidência é bastante curiosa. Pode-se sugerir, pois, que a presença do populismo no discurso da Folha configura um pequeno recorte, mas sugestivo sobre a postura de diversas empresas de comunicação. A Folha, como outras empresas, contribuiu para a divulgação tanto de uma imagem positiva do candidato que veio a se sagrar vitorioso no pleito, quanto negativa de seus adversários (Lula, em especial)[11].

 

Eleições 1994 : Evolução da intenção de voto para a Presidência da República


 

 


Fonte: Datafolha.

Transcrevemos, assim, passagens de duas matérias do cotidiano, uma que demonstra inspiração nas premissas do paradigma econômico e outra que denota o uso de uma idéia, residual, do modelo clássico.

No domingo de 03/07/1994, a Folha publicava uma reportagem onde discutia-se a polarização política estabelecida entre as candidaturas Cardoso (PSDB), de um lado, e Lula (PT), Brizola (PDT) e Quércia (PMDB), de outro. A reportagem (publicada na editoria Mais!) apresentava o seguinte título: Os dois lados da moeda - o real divide a sucessão e traz à tona o debate sobre a adesão do país ao Consenso de Washington. As consonâncias interpretativas com o paradigma econômico são grandes. Observe-se o que diz a matéria:

O real, que desde sexta-feira rege o cotidiano dos brasileiros, é o primeiro passo para estabilizar a economia e viabilizar a retomada do desenvolvimento do país, integrando a massa de miseráveis e desempregados (...) ? Ou, pelo contrário, a nova moeda é o (...) embrião de um processo de radicalização do apartheid social que divide o país em dois mundos? (...) Do lado do real está o senador (...) Cardoso (...). Do outro, estão os seus adversários, (...) Lula (...), (...) Quércia (...) e (...) Brizola (...). Une os três últimos a avaliação comum de que a nova moeda representa, mais do que a materialização de um plano eleitoreiro, algo muito mais profundo - o início da submissão do Brasil ao chamado Consenso de Washington (...). Não há entre os ideólogos de Lula, Quércia e Brizola um que não veja na figura de Fernando Henrique a encarnação do Consenso de Washington entre nós. Pior que isso. Para PT, PMDB e PDT, o resultado lógico desse caminho (...) é o aprofundamento do apartheid social no país (...). Diante de tais críticas, a resposta pelo lado do PSDB (...) "Trata-se de uma grande sacanagem", diz o economista (...) Bresser Pereira, coordenador financeiro da campanha de Fernando Henrique, "confundir o projeto do PSDB para o país com as teses chanceladas pelo Consenso de Washington". Segundo Bresser, PT, PMDB e PDT representam matizes diferenciadas de um mesmo "populismo arcaico". Todos os três estariam amarrados a uma concepção de Estado nacional-desenvolvimentista que está historicamente esgotada (...). Adotada em mais de 60 países do mundo inteiro, a bula de Washington se transformou no verdadeiro esperanto da economia contemporânea. Fugir dela, tentar escapar a esse destino (...) talvez signifique cair na rota da "africanização", da exclusão definitiva do país do quadro do capitalismo. Este é o ponto que transcende as candidaturas FHC e Lula e as reduz a tentativas ilusórias de vencer a barreira do apartheid (...) o enorme dispêndio de energia de cada um que se põe a discutir as opções entre Lula e FHC talvez não passe de um esforço vão,(...), uma ilusão necessária para driblar o desconforto causado pela idéia de que estamos apenas no início de um processo inexorável (...). (Folha de S.Paulo: 6-4). (GN).

Estas passagens da matéria são bastante expressivas. Contribuem para o elucidamento tanto do referencial analítico que a norteia, quanto da apropriação político-ideológica do signo populismo. Em primeiro lugar, o neoliberalismo - combinado com algumas teses do paradigma econômico, pois há uma menção explícita do nome de um intelectual, Bresser Pereira, que opera com essa versão do populismo - constitui-se em evidente orientação interpretativa para a análise dos dilemas brasileiros da época. Em segundo, o uso das declarações de Bresser Pereira consiste em uma espécie de narração copresente, ou seja, serve ao propósito de legitimação acadêmico-científica (técnica e racional) para as argumentações conclusivas do autor da matéria. Em terceiro lugar, o populismo aparece como um oportuno dispositivo simbólico para a desqualificação das candidaturas opostas ao Plano Real e a chamada política reformista/modernizante. Uma expressão política arcaica, esgotada. Por último, é interessante notar as afirmações finais da matéria. Argumenta-se que os problemas e soluções para o país são comuns, independente das posturas políticas dos candidatos. Sendo assim, podemos deduzir que se fosse para aplicar a receita do ajuste fiscal, supostamente inescapável a qualquer candidato, melhor que o eleitor optasse por aquele que já tinha participado de sua implementação (no caso, Fernando H. Cardoso). A "interpelação" (Althusser; 1998) dirigida ao leitor - materializada em argumentos dramáticos - é claramente operada pela matéria.

Também num domingo, 05/06, a editoria Brasil, sob a eloqüente legenda Não se deixe enganar, discorria sobre um ato de campanha do candidato do PT.

Na última terça-feira, o candidato do PT à Presidência, (...) Lula (...) prometeu asfaltar as ruas de Samambaia, cidadade-satélite de Brasília. "Tem que asfaltar, mesmo com asfalto de qualidade inferior". Asfaltamento de ruas não é atribuição imediata do governo federal, apesar de a Constituição até prever gastos da União para reduzir desigualdades regionais. Também não é possível imaginar que a Presidência possa se ocupar, administrativa ou financeiramente, das ruas de cerca de cinco mil municípios brasileiros. A promessa, pontual e localizada, tem caráter populista. Um presidente tem que criar condições de desenvolvimento e de saneamento das finanças públicas em geral para permitir que esferas descentralizadas de governo tomem decisões de caráter local. (Folha de S.Paulo: 1-7). (GN).

Uma das idéias que percorre o estereótipo de populista imputado acima a Lula é a demagogia, um dos chavões mais difundidos sobre o populismo e baseado no modelo clássico. Vale aqui destacar que a matéria não desqualifica somente a "promessa" do candidato. Observe-se a argumentação conclusiva do jornal, que não só informa as atribuições de um presidente, como também, sugere, como implicação direta, que Lula não possuía conhecimento (quem sabe preparo?) sobre o papel a ser cumprido pelo mais alto magistrado da nação.

         Por fim, com relação ao candidato do Partido Democrático Trabalhista - PDT, Leonel Brizola, o dado mais relevante a ser destacado no emprego do dispositivo simbólico populismo para qualificar sua postura e idéias políticas, foi a primazia de uma representação simbólica baseada na apropriação de premissas concernentes ao modelo clássico de interpretação. Em caráter relativamente secundário, operou-se a construção do populismo brizolista fundada em algumas idéias do paradigma econômico. Dessa forma, o conjunto de idéias que percorrem as diferentes estruturas redacionais do jornal - editorial, noticiário cotidiano e artigos de opinião -, na representação desse ator político, pode ser assim salientado: debilidade organizacional dos partidos; prevalência do líder sobre as regras e normas internas ao partido; demagogia; nacionalismo; e modelo de desenvolvimento historicamente marcado (anos 50) e, com efeito, superado. De qualquer modo, e genericamente, imputava-se um caráter atrasado a esse candidato presidencial. Considerado ultrapassado no âmbito econômico, devido ao fato de Brizola se opor aos preceitos hegemônicos privatizantes, e no campo político, onde é assinalada sua desconsideração à democracia partidária interna. Como a idéia de atraso pode perpassar tanto as interpretações tipificadas pelas teses das abordagens do modelo clássico quanto as do paradigma econômico, tendemos a considerar que, com regra, também a ideologia dominante, neoliberal, presente no discurso jornalístico, contribuiu substantivamente para tal designação.

Reproduzimos, portanto, passagens de uma matéria do cotidiano político e de dois artigos de opinião.        

         Em 03/07/1994, publicava-se uma entrevista, pela editoria Mais!, com Mangabeira Unger, então membro da campanha de Brizola à presidência. Vejamos as notas introdutórias à entrevista - intitulada O ideólogo da terceira via: Mangabeira Unger, do PDT, expõe projeto alternativo a Lula e FHC - para percebermos como o jornalista, através de uma difusa (e difundida) construção simbólica externa ao jornal, concebia a figura de Brizola.

"A ladainha brizolista das perdas internacionais nunca foi tão atual, justamente agora que saiu de moda". Quem fala é o cientista político Roberto Mangabeira Unger (...). Correndo por fora no debate sobre a sucessão presidencial, Mangabeira continua sendo o maior ideólogo do candidato Leonel Brizola e o consultor preferido do presidenciável do PDT. Na entrevista que segue,(...), Mangabeira (...) diz que Brizola é o presidenciável "menos suscetível de conformar-se ao Consenso de Washington", que ele vê representado na figura de Fernando Henrique (...). Brizola, apesar de ser considerado à esquerda e à direita um representante do velho populismo que a história atropelou (...).  (Folha de S.Paulo: 6-5). (GN).

Constituindo-se num tipo freqüente de análise sobre Brizola nas páginas do jornal, notadamente nas seções de opinião, remetendo o leitor à idéia clássica de demagogia, o artigo de Hélio Jaguaribe, intitulado O Rio dominado pelo crime, questionava a gestão de Brizola à frente do governo do Estado do Rio de Janeiro. Publicado em 01/11, na editoria Painel, o artigo afirmava, entre outros, que:

(...) A mais inequívoca e ostensiva característica do Grande Rio de Janeiro, presentemente, é o fato de se encontrar sob o domínio do crime organizado (...). O crime regula a vida da cidade, impondo, a seu arbítrio, interdições no uso de determinadas áreas. Tiroteios se tornaram parte da rotina urbana, não somente nas favelas, mas no próprio centro urbano, em Ipanema, nos túneis, na Linha Vermelha. Crescem em escala geométrica os assaltos, seqüestros e assassinatos (...). Nenhuma cidade com pretensões à condição civilizada,(...), esteve submetida, tão ampla e impunemente, como o Rio, ao domínio dos bandidos. Como se pode chegar a tal situação? Como sair dela? O domínio do Rio pelo crime, como todos os fenômenos sociais mais complexos, decorre da conjugação de muitos fatores e requer, para sua análise, que se diferenciem distintas camadas de profundidade (...). (Folha de S.Paulo, seção Tendência/debates: 1-3). (GN).

Após discorrer sobre algumas razões para tal fenômeno, o articulista argumenta que:

Mencione-se, finalmente, o fenômeno do brizolismo, que tem, direta ou indiretamente, controlado a política do Estado nos últimos 12 anos, o qual, independentemente das boas intenções sociais de seu líder, resultou num populismo das massas marginais, no âmbito das quais opera o crime organizado, gerando, assim, situações em que a repressão a este suscita naquelas efeitos negativos (...). (Folha de S.Paulo: idem). (GN).

Alguns meses antes, em 10/07, inserido no contexto das campanhas à presidência, Bresser Pereira questionava a concepção político-econômica dos opositores do candidato do PSDB, Fernando H. Cardoso. Publicado na editoria Painel, seu artigo Consenso do atraso apresentava argumentações nitidamente afins ao paradigma econômico:

Transformou-se em moda, entre certos intelectuais que apóiam Lula, Brizola e até Quércia, afirmar-se que a candidatura Fernando Henrique representaria o Consenso de Washington no Brasil (...). Nesta Folha, no caderno Mais!, esta perspectiva foi apresentada com grande estardalhaço. Não apenas (...) Cardoso seria um conservador neoliberal, mas seu plano de estabilização - o Plano Real - também seria uma manifestação daquele consenso. Minha primeira reação, quando li tais sandices, foi ignorá-las. Revelam um tal desconhecimento do que seja o neoliberalismo e indicam um tal apego a idéias arcaicas, a um nacional-desenvolvimentismo esquerdista dos anos 50, que não pude evitar a sensação de estar diante de um consenso do atraso. Atraso misturado a razões eleitorais. Entretanto, é preciso admitir que a identificação que esse tipo de esquerda, populista e fora do tempo, vem fazendo de políticas e reformas econômicas sensatas,(...), com o neoliberalismo, é um fenômeno generalizado. Transformou-se,(...), em uma estratégia retórica dessa visão nacionalista, para a qual tudo o que não estiver de acordo com seu velho figurino é neoliberal (...). Neoliberalismo não é ser a favor de disciplina econômica e reformas orientadas para o mercado, mas acreditar que o mercado possa ser o único coordenador da economia (...). O Brasil jamais se deixou levar por semelhante dogmatismo de direita, mas não pode (...) continuar vítima de um nacional-populismo tacanho e arcaico, que quer condenar o Brasil ao atraso (...). (Folha de S.Paulo, seção Tendências/debates: 1-3). (GN).

 

CONCLUSÃO

Considerando que a representação do fenômeno populista não podia ser obra, única e exclusiva, de uma invenção da mídia impressa, recorremos à análise das seções de opinião e debate oferecidas pela Folha à publicação de textos produzidos, entre outros, por indivíduos ligados aos círculos acadêmicos; além, evidentemente, do noticiário e dos editoriais. As seções de opinião são valiosas para o estudo do discurso jornalístico, pois tendem a constituir-se num espaço de interação entre as produções científicas e jornalísticas. Nesse sentido, talvez seja possível argumentar que esse espaço constituiu-se numa fonte analítica aberta à identificação do deslocamento da noção de populismo do "campo intelectual" para o jornalístico. Por mais plural que sejam essas seções de opinião, interpretações e definições particulares dadas por alguns articulistas alcançaram uma grande ressonância nos discursos dos editoriais e do noticiário cotidiano.

         Se tratarmos o estudo realizado por esse artigo, também, como um recorte de análise da posição do jornal na campanha presidencial de 1994, podemos afirmar que ele apresentava uma postura abertamente favorável à candidatura de Fernando H. Cardoso. Esta seria considerada, em última instância, representantiva da necessária modernização[12]. Aos atores e candidatos que se distanciavam desse figurino restavam a desqualificação - a pecha de populismo, entre outros rótulos e estereótipos.

         O discurso da Folha evidenciava uma representação da noção de populismo pautada, essencialmente, pelas seguintes idéias: atraso, estatismo, instabilidade, irresponsabilidade e irrealismo. Um contraponto e entrave à modernidade, à flexibilidade produtivo-econômica, à estabilidade, à responsabilidade e ao pragmatismo, requeridos, segundo o jornal, pela sociedade brasileira. Requerido, como se sabe, também, ou principalmente, pelo capital financeiro internacional.

De uma categoria trabalhada no "campo intelectual", com fins de análise científica de fenômenos presentes nas sociedades e nos sistemas políticos latino-americanos, o populismo metamorfoseou-se no discurso da Folha de S.Paulo em um instrumento ideológico importante e generalizante para a desqualificação de projetos e atores políticos que, em 1994, buscavam alternativas aos cânones neoliberais[13].



[1] O presente artigo constitui-se numa versão de minha dissertação de mestrado intitulada O populismo como arcaísmo e estatismo, na Folha de S.Paulo e no Jornal do Brasil, defendida no PPGCP/UFRJ.

[2] Tratamos sobre a interação existente entre as produções acadêmicas e jornalísticas na próxima seção.

[3] São ressaltadas algumas particularidades da experiência sandinista, tais como: (i) quando da tomada do poder do Estado, a economia era significativamente fundada no setor rural; (ii) a industrialização por substituição de importações não constou na proposta programática; (iii) os esforços governamentais foram bastante dirigidos à expansão de redes de abastecimento de água, de postos de saúde e escolas. O que leva à sua inclusão na categoria (expondo motivos que, em verdade, nos deixa perplexos) é o fato desse governo ter desconsiderado os limites orçamentários, destinando vultosos recursos à guerra civil frente os contras, assim como devido a instabilidade causada pela incerteza acerca dos direitos de propriedade. Como resultados, a ocorrência de graves prejuízos econômicos e a explosão inflacionária. Ver CARDOSO, Eliana e HELWEGE, Ann. "Populismo, gastança e redistribuição" : 201/232.

[4] Muito esquematicamente, pode-se dizer que  o "campo intelectual" é um espaço de alta especialização, detentor de regras e procedimentos particulares, marcado, entre outros, por embates teóricos pela obtenção de sinais e visões de mundo específicos que venham a hegemonizá-lo. Ver BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico.

[5] Por ideologia basta dizermos que seguimos a definição dada por Althusser, ou seja, entende-se como um complexo de representações, valores e crenças que se materializam em ações objetivas, a partir daquilo que o autor chama de "interpelação", ou apelo, ao indivíduo, chamando-o a posicionar-se em conformidade com os rituais e normas que compõem uma dada ideologia. Um fenômeno socialmente derivado, em última instância, da luta de classes, que se origina na esfera infra-estrutural - nas relações sociais de exploração e produção. Ver ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado.

[6] Com relação ao modelo clássico, especificamente, é mais adequado, concretamente, afirmar que houve uma apropriação fragmentada de algumas de suas teses, pois, esta apropriação distancia-se, em muito, do centro de argumentação dos estudos de Ianni e Weffort, que concebiam o socialismo como meta de organização social. Em linguagem marxista, seus estudos interpretariam o populismo como uma espécie de reformismo, enquanto a apropriação jornalística da Folha é caracterizada por um tipo de interpretação crítica sobre o populismo marcadamente conservadora.

[7] Como se poderá perceber no curso do artigo, à partir da reprodução de um e outro texto jornalístico.

[8] Em um conjunto de 27 editoriais da Folha que utilizaram a noção de populismo para interpretar algum fato cotidiano, 11 foram destinados ao presidente Itamar Franco. Nesse conjunto de editoriais prevaleceram as abordagens afins ao paradigma econômico.

[9] O editorial de 12/11 apresentava uma argumentação recheada de símbolos e estereótipos desqualificatórios: "O acordo entre o governo e os petroleiros atropelou a direção da Petrobrás (...). O desfecho das negociações mostrou claramente uma tendência à acomodação de interesses, se não ao populismo mesmo, por parte do governo. Foi um passo exatamente na direção contrária à das reformas que se esperam para o setor público. Para estabilizar o país é necessário sanear o Estado e, para tanto, combater o corporativismo, privilégios, gastos fisiológicos e clientelistas". Ver Folha de S.Paulo: editorial. Papai Noel irresponsável : 1-2. 12/11/1994.

[10] Ver quadro que segue abaixo.

[11] A análise realizada por Albuquerque traz à luz fecundas informações sobre a postura da Rede Globo relativa à eleição presidencial, entre os meses de março e maio. Ver ALBUQUERQUE, Afonso de. "A campanha presidencial no 'Jornal Nacional': observações preliminares".

[12] Vale acrescentar que essa preferência não foi, evidentemente, uma marca apenas da campanha de 1994, nem uma exclusividade da Folha. Durante anos de governo Cardoso os mais diversos recursos argumentativos e técnicas de redação foram disponibilizados pela grande imprensa para a defesa das políticas implementadas por seu governo. Ver BIONDI, Aloysio. Mentira e cara-durismo (ou : a imprensa no reinado FHC).

[13] Nossa análise do discurso da Folha contempla exclusivamente o ano de 1994. Mas não é desnecessário lembrar que o símbolo populismo é ainda demasiado candente, bastando um momento propício para ser retirado da gaveta. Nesse sentido, o dia 12 de abril de 2002 foi exemplar. Refiro-me à tentativa de golpe na Venezuela, sobre o presidente Hugo Chávez. A Folha de S.Paulo assim o caracterizou: "falante, sonhador, populista, nacionalista" (...) (Folha Online: Saiba mais sobre o ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez. 12/04/2002).        

Há de se convir que a combinação de adjetivos não é das mais favoráveis ao então deposto presidente. No mínimo, seu populismo é representado como uma manifestação de irracionalidade e irrealismo ("falante" e "sonhador"). A seqüência da matéria não dá margem à dúvida: entre outras razões mencionadas, "a insatisfação contra Chávez cresceu devido (...), à agenda de esquerda" (Folha Online: idem). O posicionamento político-ideológico do jornal é evidente, como também a mensagem: metas e atores populistas/esquerdistas são uma péssima opção política, causam "insatisfação popular" e o caos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

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BIONDI, Aloysio. Mentira e cara-durismo (ou: a imprensa no reinado FHC). Página eletrônica da Faculdade Cásper Líbero. 1999. Disponível na INTERNET via http://www.fcasper.com.br/jo/anuario/1999/biondi.htm

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CARDOSO, Eliana e HELWEGE, Ann. "Populismo, gastança e redistribuição". In: BRESSER PEREIRA, L. C. Populismo econômico: ortodoxia, desenvolvimentismo e populismo na América Latina. Ed. Nobel: São Paulo. 1991. P. 201-232.

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Resumo: O propósito do artigo é identificar algumas nuances do deslocamento operado no uso da noção de populismo, dos meios acadêmicos para o discurso jornalístico.

 

Palavras-chave: populismo, grande imprensa, eleições presidenciais de 1994 e ideologia.

 

* Mestre em Ciência Política pelo PPGCP/UFRJ e professor de Sociologia do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

E-mail: betobitencourt@hotmail.com