UM ACAMPAMENTO DO MST NA REGIÃO METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO: RELATÓRIO DE PESQUISA *


Mundo em Rabisco

Rafael de Amaral Maia **

1. Introdução.

            A proposta deste trabalho é analisar a organização de um acampamento localizado numa área urbana, observando as relações estabelecidas entre os sem-terra, os lideres do movimento, a população local e os donos de terra da região. Trata-se de uma análise sociológica que busca compreender as dinâmicas estabelecidas pelos diversos atores envolvidos na questão agrária do oeste fluminense. Esta pesquisa de campo foi realizada entre o dia 28 de março e 11 de abril de 2004.

         O acampamento foi dividido em duas partes distintas, onde a metade dos acampados reside na parte da frente e à outra na parte de trás. Para dar maior praticidade as defini como área I - a parte da frente - e área II - a parte de trás.

          As questões pertinentes a educação, a saúde e a violência, também serão abordadas neste relatório, dada as peculiaridades encontradas nesses serviços de utilidade pública dentro de um acampamento situado no meio urbano. A religião e os hábitos culturais também se constituem como outro fator de singularidade, a medida que os rituais religiosos seguem a nova tendência, principalmente do Estado do Rio de Janeiro, da expansão da religião evangélica, e que os acampados vivem a cultura do meio urbano.

          A própria estrutura do acampamento mostrou-se complexa, pois, como se não bastasse essa divisão em área I e área II, o acampamento tinha estruturas fixas distintas, uma vez que a área II (que é a mais antiga, ou seja, por onde se iniciou a ocupação) ainda é de lona, enquanto que a área I é de alvenaria. Isso, em verdade, deu-se graças ao aproveitamento da antiga estrutura existente na área, que nos anos da ditadura abrigava um reformatório para rapazes infratores.

Contudo, quando uso o termo "acampamento", não se deve ter em mente uma terra ociosa, parada. Pois, o credenciamento que faço de acampamento é tão somente pelo fato dessas terras ainda não terem sido reformadas pelo INCRA, logo que a terra cumpre (nas mãos dos sem-terra) a sua função social de produzir, mesmo com todas as dificuldades técnicas e organizacionais que existem neste acampamento, ou melhor, neste pré-assentamento.

         As principais variedades produzidas são da família das leguminosas, como: aipim e quiabo (são os principais cultivos), abóbora, milho e feijão; sendo a terra dividida, em média, em três alqueires por família.

2. Metodologia.

Neste trabalho adotei como padrão de pesquisa a análise participativa. Para tal, optei pela vivência de duas semanas do que simplesmente trazer a campo questões exteriores, como, por exemplo, perguntas pré-formuladas ou câmera fotográfica, como se estivesse diante de algo exógeno. Esta tentativa de interferir sem suprimir o outro a um simples objeto de estudo mostrou-se ser bem eficaz na medida em que a própria família que me acolheu disse (uma semana após minha vinda) "estamos cansados desses estudantes que vêm pra cá fazendo perguntas e tirando fotos". A motivação para minhas perguntas foram as próprias questões que os acampados colocavam, como a violência (de fora para dentro do acampamento), a união interna do acampamento, o problema do manejo da terra, entre outras que serão abordadas neste trabalho.

          O maior acerto dessa metodologia foi ter conseguido extrair interpretações próprias de algumas questões sem precisar passar pela ótica de outros indivíduos. A observação direta permitiu uma análise das relações de poder estabelecidas no interior do acampamento e a existência de grupos com interesses distintos. Dessa forma, observamos as múltiplas visões que são construídas pelos indivíduos do acampamento sobre a questão agrária e a luta pela terra na região metropolitana do RJ. Um exemplo, é um suposto conflito entre a maioria dos sem-terra e um grupo de médios fazendeiros denominados de "Japoneses". Pude perceber que o preconceito de muitos acampados em relação a esse grupo não era manifestado por todos.

         A pesquisa foi elaborada segundo os relatos e as observações de campo. Contudo, baseando-se no estudo de comunidade, tal qual foi feito por Antônio Cândido, a localização específica do acampamento e os nomes reais dos indivíduos desta localidade serão velados.

         Outra questão era realizar ou não uma reunião para me apresentar. Este tipo de apresentação é comum no acampamento e foi proposta logo que cheguei por um dos coordenadores de grupo. Decidi não optar pela reunião, preferindo observar como os acampados reagiam inicialmente a um observador estranho ao acampamento, ou seja, que tipo de conceito fariam de mim.

No entanto, nunca poderia esperar que a primeira resposta a esse meu estímulo viesse tão rápido, pois, na primeira tarde que passei no acampamento - ao dar meu primeiro "passeio" para conhecer melhor a estrutura física do acampamento -, fui logo interpelado por um senhor de 60 anos dizendo ser militante pela terra há 26 anos (ou seja, antes mesmo da criação oficial do MST, que comemora neste ano de 2004 vinte anos de luta na busca pela terra), dizendo: "quem é você garoto?", "Você veio pelo estágio?", "Por quê?". Assim que pude melhor estruturar as perguntas que me havia feito, fiz um breve discurso da minha presença ali. Foi aí que tive as respostas mais fantásticas sobre o sentido de "posse" que o acampamento possuía para ele (e tantos outros que tive contato posteriormente). Pois, ele me disse: "Agora sim garoto! Você se explicando fica tudo mais fácil. Imagine se eu chegasse na sua casa sem me apresentar, sem ti dizer nada, que figura você faria de mim?!".

Depois disso, até a notícia tornar-se "velha", ainda perdurou por uns quatro dias a distorção que faziam sobre a minha função, chegando ao ponto de pensarem que eu era filho da "Dona Fernanda" (a dona da casa que me acolheu), quando era sabido que seu único filho é morto; outros nutriam a desconfiança de que era filho do fazendeiro ao lado do acampamento, rival ao movimento.

3. O Problema do Tráfico.

         O acampamento por não ser isolado está exposto aos mesmos condicionantes locais que as demais localidades, ou seja, existe uma inter-relação entre os acampados e os habitantes locais. Os acampados estão sujeitos aos problemas de toda a região, como, por exemplo, o do tráfico de drogas, que por vezes extrapola o espaço físico da rua invadindo os limites do acampamento.

         O problema do tráfico ficou explicito, em parte, logo que cheguei ao acampamento. Um dos coordenadores de grupo (da área II), veio logo me precaver para não ficar andando sozinho pelas trilhas do acampamento, para não ter "problemas com garotos de fora que entram para fumar" - mas, até então não fazia idéia do tamanho da gravidade dessa relação que parecia constrangê-lo.

         O segundo contato que tive no acampamento foi com um dos acampados da área I, que foi quem me levou por uma das trilhas para esta parte do acampamento e detalhou um pouco mais sobre essa proximidade da violência local, dizendo: "não ande por aqui sozinho, porque tem uns garotos que ficam aqui no mato fumando cigarro proibido". Perguntei se tinham garotos do acampamento que faziam isso, mas ele disse não existir consumo de drogas entre os acampados. Então, perguntei: "por que deveria ter medo se eram só garotos fazendo besteira?", ele respondeu-me: "Eles já são grandes, e andam armados por aí", - eu - "Armados?". Ele: "sim, eles são tudo lá da favela que tem do outro lado da rua". Questionei se eram traficantes, mas ele relutou timidamente, dizendo: "é melhor agora a gente ficar um pouco quieto porque é por aqui que eles gostam de ficar".

         Tive relatos bem abertos sobre essa questão com um dos coordenadores de grupo (da área I - onde fiquei até a minha saída), que adorava conversar entre um gole e outro de café na cozinha coletiva. Discorremos sobre os mais diversos assuntos, desde a ditadura até o governo FHC e Lula. Inseri dentro da nossa "prosa amigável" que tinha ouvido por alto recomendações pra não andar sozinho no acampamento porque existia problemas com pessoas de fora. Contou que "tem desde moleques que entram no meio da plantação pra fumar" até "traficante que vai lá pra dentro da restinga se esconder da polícia". Perguntei como era a relação dos acampados com os traficantes e se a polícia já havia invadido o acampamento, ele respondeu: "olha, um dia eu estava lá pra baixo perto de umas árvores voltando com a lenha, aí vi dos garotos com uma mochila em uma das mesas perto do acampamento (das casas do acampamento) em baixo das árvores. Fui lá e perguntei o que eles queriam fazer ali e vi a mochila cheia de cocaína, eles disseram que só iriam ficar ali até a ameaça de chuva passar, porque se eles molhassem o produto iam morrer. Então fui embora e depois quando voltei eles já tinham ido". Ele também relatou que os traficantes usam uma ponte dentro do acampamento para a "dolagem de cocaína" (pesar e dividir a droga em saquinhos para a venda). Continuou dizendo: "um dia tava voltando da reunião (de coordenadores, que por ocasião ocorreu na área II do acampamento), quando olho pra ponte, cheio de traficante, tinha mais de vinte, tudo garoto novo armado com fuzil e pistola, quando eles me viram ficaram todos nervosos, mas aí eu disse que era do acampamento e eles liberaram a passagem. Mas não é bom ficar contando com a sorte por aqui, porque sabe como é: eles, nessas horas já tão tudo de cabeça feita (drogados)".

         Em relação a polícia, ele revela que já ocorreram casos de policiais à paisana entrarem no acampamento. Perguntei como sabia que eram policiais, ele, primeiro respondeu de forma irônica: "policial tem cara de policial", mas depois, respondeu que é muito estranho chegar uma pessoa do nada no acampamento e começar a fazer perguntas sobre drogas, mortes. Questionei-o: "mortes?"; ele, "sim, esse rio que corta o acampamento é usado quase toda a semana pra desova desses garotos que eles matam". Eu: e a polícia, o que faz? "Aqui eles não podem fazer nada, porque isso aqui é área federal".

Esse relato e outros que recolhi com a família que me abrigou ilustra a dificuldade dos acampados com a questão do tráfico. Os traficantes utilizam o acampamento, por ser área de intervenção exclusiva do poder federal, para fazerem suas operações de risco, como a de "dolar cocaína". Eu mesmo presenciei a existência de traficantes no acampamento.

O discurso de apatia do coordenador sobre a questão do tráfico ao dizer: "não é bom ficar contando com a sorte por aqui" e "aqui eles não podem fazer nada, porque isso aqui é área federal", ressalta a presença constante e ameaçadora dos traficantes. Essas frases mostram um descontentamento quase "natural" de quem tem que conviver com a violência nessa área. Soma-se à violência, a incredulidade dos acampados em relação as organizações governamentais. A falta de oportunidades é o maior questionamento daquela população, que espera do Estado a solução para a escassez de emprego, educação e saúde.

4. Relação Entre Acampados e Moradores Locais:

A relação entre os acampados e os moradores locais é ambígua, parte dos moradores nutre um preconceito velado e outros estabelecem laços de amizades através do comércio dos produtos (aipim, quiabo, etc.).

         O comércio gera laços de amizade entre acampados e moradores locais. Esses moradores compram produtos agrícolas mais baratos que nas feiras livres e sacolões locais, entrando dentro do acampamento, aproximando-se do cotidiano dos sem-terra. Não que essa relação aparentemente de familiarização seja perfeita ou que a identificação se dê entre todos os que freqüentam o acampamento - pois, como veremos adiante, alguns entram no acampamento com o único objetivo de furtar alimentos ainda no pé -, mas é evidente que entre aqueles que compram diretamente dos acampados o respeito é maior do que aqueles indivíduos que não têm nenhum tipo de relação com os acampados.

         O furto de alimentos é uma constante questão de tensão entre algumas famílias acampadas (principalmente as que tem parte de suas roças na frente do acampamento) e moradores locais. Pude, durante a segunda semana em que estive acampado, presenciar uma briga dentro do lote do irmão da "Dona Fernanda", ocorrida entre  Juliana (de 26 anos, filha da Dona Fernanda) e um homem de fora que entrava no acampamento, inicialmente, com o pretexto de catar latas. Porém, com o passar do tempo e a proximidade da colheita, o objeto de interesse dele havia mudado para o aipim, pois, dias anteriores à briga, já apareciam os primeiros pés de mandioca arrancados. Perguntei, por ocasião, se poderiam ser indivíduos do próprio acampamento, mas, ao mostrarem as plantas arrancadas ficou claro que não poderia ser um sem-terra, dado a imperícia de quem havia arrancado, deixando boa parte do aipim quebrado dentro do solo. E essa suspeita foi confirmada pelo flagra do roubo. O mais interessante foi ver não somente o senso de justiça feito por ela (Juliana), que prometeu dar-lhe uma "coça" caso ele voltasse a roubar, mas, também, o papel conciliador que os mais velhos da família tiveram nessa pendência. Dona Fernanda disse para não dar tanta importância ao caso, dizendo: "deixa isso pra lá, tem mais aipim do que ele pode arrancar, ele deve ser um pobre diabo necessitado pra ficar precisando arrancar aipim dos outros", o tio dela pareceu não ter dado muita importância ao caso, mesmo tendo ficado irritado quando soube do roubo. Contudo, o que mais parecia chateá-la era o fato dele (o catador de latas) não ter pedido, o que estaria a contento se fosse esse o caso.

         A idéia de autoridade parece estar bem representada nesse caso, pois, o motivo pelo qual Juliana estava irritada era pelo não consentimento para a retirada do aipim, e não por ele ter arrancado algumas dezenas do produto. Para ela, a desautorização para a prática de tal ato passa necessariamente por uma ofensa pessoal.

         Outra forma de preconceito muito praticada pelos moradores da região é de ignorar pequenos favores ou gentilezas aos sem-terras, como, por exemplo, a que sofri ao tentar encher em um borracheiro - distinto dos que os acampados vão, por ocasião fortuita - o pneu da bicicleta, juntamente com outros dois sem-terra. A desculpa mais dada para não deixarem usar a bomba de ar era a de que não enchiam pneus de bicicleta, nem sob pagamento (cerca de trinta centavos, que é mais ou menos o cobrado pelos borracheiros locais para deixar encher o pneu de bicicletas). Isso mostrou que, mesmo sabendo que eu não era sem-terra, o fato de estar junto aos integrantes do acampamento me excluía de certos espaços coletivos.

5. A Religião.

         A religião predominante no acampamento, diferentemente das regiões tradicionalmente rurais - onde o predomínio é católico -, segue a tendência da região metropolitana do Rio de Janeiro, que é o do crescimento das igrejas evangélicas. Em especial a Igreja Universal do Reino de Deus que é a única atuante dentro do acampamento, realizando seus cultos dominicais, a partir das dezessete horas.

         Percebi com o passar da semana que o próprio horário de realização do culto não era por acaso, o que demonstra a peculiaridade da inserção da igreja na vida cotidiana do acampamento. Os cultos são realizados às dezessete horas, já que as manhãs são destinadas aos afazeres cotidianos do acampamento. Fui convidado várias vezes para participar do culto. Ao assistir um deles, percebi que os cultos não são puramente carismáticos, mas celebrações que possuem um forte caráter progressista. O discurso produzido pelos cânticos sugere palavras de incentivo à "luta", como nesta passagem: "Deus nos fez fortes para lutarmos!". Isso demonstra que, não por acaso, essa crença tenha ganhado espaço entre os acampados. Os fiéis são essencialmente homens e mulheres de trinta à cinqüenta anos de idade, com uma média de quarenta pessoas por culto dominical.

         Durante os dias que antecedem os cultos há uma reafirmação da fé, já que os fiéis perguntavam uns aos outros se iriam comparecer no culto desta semana: "Você vai no culto desse Domingo? Vou, o sermão do pastor foi muito bom, reforçando assim o compromisso com a igreja cada dia mais". Em geral, parece haver um desprendimento de qualquer tipo de "religião oficial" ou unânime dentro do acampamento; mas, o fato é que, segundo relatos dos acampados (da igreja), os organizadores dos cultos estão procurando uma área coberta, maior que a utilizada atualmente (com mais conforto), para realizar as congregações.  

6. Contendas Entre: Sem-Terras e Fazendeiros

         Primeiramente, faz-se necessário explicitar o teor da palavra "fazendeiros" (empregada no título deste capítulo), dado há existência de dois grupos distintos definidos por este termo ("fazendeiro"). O primeiro, não pode ser tido como um grupo em si, pois, trata-se de um único fazendeiro - médio produtor de leite -, que faz divisa com o acampamento; já o segundo, que de fato constituí-se como um grupo, são os "japoneses" que diferentemente do primeiro não fazem divisa de terras com os sem-terra.

A rixa existente entre os sem-terra, o fazendeiro de gado e os japoneses, tem origem na ocupação (que segundo relatos não precisos ocorreu entre o período de 1999 e 2000); contudo, os motivos de tais rixas são distintos. No caso do fazendeiro de gado o problema ocorre devido ao fato deste fazendeiro utilizar essas terras - que antes eram da União e hoje estão sob o domínio do MST - para servirem de pasto para o seu rebanho. A chegada dos sem-terra tem gerado constantes conflitos, uma vez que o fazendeiro solta o seu gado para pastar na área do acampamento (geralmente no período noturno), danificando o cultivo da lavoura de aipim e quiabo. Essas constantes tesões já ocasionou um "caso de polícia", pois, em uma dessas discussões sobre o problema das invasões de gado, o coordenador geral do acampamento foi ameaçado de morte pelo fazendeiro. Durante o período em que estive acampado constatei uma dessas invasões de gado às plantações do acampamento, embora, desta vez, não houvesse choques diretos entre os acampados e o fazendeiro.

Entre os sem-terra e o segundo grupo (dos japoneses), parece existir um clima de discórdia mais ameno, tanto no tom das discussões (que quase não existe) quanto no da não aceitação da convivência com os acampados. O problema principal, e talvez possa afirmar ser o único, foi que muito antes da formação do acampamento (por volta de três décadas atrás) os japoneses eram os detentores daquelas terras [i] e, com a ocupação do MST, os japoneses acharam-se no legítimo direito de reivindicarem uma parte das terras para si. Apelo este que não foi atendido pelo movimento que desconsiderou esse fato, já que não tiveram participação nenhuma nas terras ocupadas. A partir daí gerou-se esse clima de desconfiança, mais por parte de alguns coordenadores do movimento do que pelos próprios sem-terra.

A rivalidade existente com o fazendeiro de gado ocorre de forma muito mais acintosa, não somente por ele fazer divisa com as terras do acampamento ou pertencer ao setor agropecuário, mas pela forma como ele intervém na vida cotidiana. As invasões de gado não fazem parte de alguns poucos casos acidentais, mas de uma prática onde o principal motivo é demonstrar força frente ao acampamento, que ocupa uma área que era de uso exclusivo deste fazendeiro.

Em contrapartida, os japoneses, que um dia também foram detentores destas mesmas terras (só que num passado muito mais distante que o fazendeiro de gado), conseguem estabelecer laços bem mais cordiais que o primeiro. É claro que a distância física entre as terras dos japoneses e a área do acampamento também colabora para uma boa vizinhança, já que seria improvável uma disputa de terras através de derrubadas de cerca (como ocorre por vezes entre os acampados e o fazendeiro vizinho); mas nada obrigaria um fazendeiro japonês a oferecer gratuitamente um caminhão [ii] (literalmente) de ramas de aipim para a plantação da família sem-terra.

7. Organização interna do acampamento

Passada essa exposição das relações de vizinhança, pretendo relatar como se formam as relações de coesão e fazer as respectivas desconstruções de uma unidade hierárquica rigidamente verticalizada que possa existir como "senso comum". Para tanto, faz-se necessário expor a ossatura pela qual é regida a organização do acampamento.

A organização interna do acampamento é subdividida em seis núcleos, onde cada núcleo possui em média dezesseis famílias e um coordenador de grupo, que se remete ao coordenador geral do acampamento. Três núcleos estão situados na área I do acampamento e os outros três na área II. O principal motivo para essa divisão social foi, a princípio, para ocupar de forma mais homogênea o acampamento, garantindo uma maior segurança para todo o acampamento.

A questão da segurança era tarefa de todos, assim como a da cozinha coletiva. Essa estrutura funcionava sobre uma base muito simples, onde o rodízio era utilizado, tanto para fazer a segurança quanto para o preparo dos alimentos. A segurança sob rodízio dos homens adultos do acampamento e a cozinha coletiva para as mulheres. Contudo, com o passar de dois, três anos essas tarefas começaram a ser questionadas de forma muito acintosa pelos indivíduos que moram na área I do acampamento que não viam mais motivos para continuarem a fazer a segurança e era desejo de quase todos fazerem sua própria comida (a não ser pelos solteiros, que ainda hoje mantêm a cozinha em funcionamento), e para evitar um desgaste os coordenadores decidiram atender essas reivindicações.

O curioso nisto tudo é que o pouco tempo em que estive na área II do acampamento - em conversas com alguns coordenadores - percebi, através do modo como se referiam às pessoas da outra área do acampamento, como essas quebras de deveres ainda repercutiam de forma negativa entre os demais acampados que mantiveram essas responsabilidades. Pois, diziam: "você não se preocupe rapaz, porque eles lá podem parecer meio selvagens, mas são, no fundo, tudo gente boa". Perguntei-os então por que "selvagens"?, responderam-me que: "são meio rebeldes, não gostam muito de seguir regras, vivem da forma que querem". Enquanto que as pessoas da área I diziam que não sabiam como "eles" (referindo-se aos moradores da outra área) agüentavam Marcelo (um dos coordenadores de grupo), "com aquelas regras todas". Pude perceber que, mesmo existindo uma relação de amizade entre quase todos os acampados e estarem aparentemente ligados por um bem comum (a terra), existe pontos de tensão não explícitos.

8. O Caso das "Andorinhas" e a Perda de Identidade do Movimento. 

            As "andorinhas" são assim chamados pelos próprios acampados como sendo indivíduos que trabalham em seus lotes de terras durante a semana, mas que constituem família fora do acampamento, ou seja, são aquelas pessoas que só possuem um vínculo puramente de trabalho com o acampamento, a medida que vêem no movimento uma saída para o desemprego e não uma nova forma de vida e a prova disso é que suas famílias não vivem o cotidiano do acampamento. Em alguns casos que me foram relatados - por uma própria "andorinha" -, dizia que sua esposa não gostava que ele perdesse a sua semana de trabalho com a terra, porque "a terra não dá condições de vida para ninguém". Então, perguntava por que, mesmo com essa falta de apoio, passava a semana trabalhando na roça? Ele respondeu que, a princípio, foi por falta de opção (porque não conseguia emprego), e depois porque começou a "tomar gosto pela terra", mesmo enfrentando muitas dificuldades pela inexperiência com a terra.

         Essa inexperiência não é uma peculiaridade somente das "andorinhas", pois, a maioria das pessoas, com quem mantive contato direto durante o período em que estive lá, relataram não possuir grandes conhecimentos em relação ao manejo da terra. Isso se deve ao fato deles terem migrado há muitos anos de suas terras, entre casos que variam de cinco, dez, até vinte anos de vida longe da prática rural.

Um exemplo disso são as práticas cotidianas adotadas por estas famílias, que se diferenciam de uma realidade tradicionalmente rural, como a hora em que costumam acordar (geralmente por volta dás 08:00) ou a música ouvida pelos jovens, quase sempre funk. Desde que cheguei ao acampamento surpreendi-me com as formas antagônicas de conduta social dos mais jovens (numa faixa etária dos 18 até os 25) em relação aos mais velhos. O dado que me chamou mais a atenção foi o de não haver uma sintonia entre eles. Pois, se os mais velhos ainda possuíam uma identidade com a terra, fruto de uma raiz ainda viva de sua vida passada no campo; os mais jovens, por não terem tido essa experiência, não compartilhavam da mesma visão. As jovens vêem no casamento com rapazes de fora do acampamento a grande chance de saírem do acampamento e os homens que não conseguiam trabalho fora do acampamento detinham-se em  ajudar na roça de sua família.

O problema da identidade não se restringe somente aos hábitos culturais, mas à própria concepção que fazem do Movimento Sem-Terra. Apesar de fazerem parte dele, de serem integrantes ativos, não só no sentido de mobilizarem-se quando preciso para ajudar na formação de novos acampamentos, mas por fortalecerem o movimento a medida que fixam moradia e fazem a terra ocupada produzir. Mesmo assim não se consideram como parte do movimento. Uma denominação corrente entre os acampados é chamar os militantes do MST de "o pessoal do movimento", referindo-se a estes como parte destacada, colocando-os num patamar de importância maior que os de si próprios. Isso não ocorre, por exemplo, quando se referem a seus coordenadores de grupo ou ao coordenador geral do acampamento, talvez por serem pessoas mais próximas, de trato cotidiano; enquanto que os militantes aparecem como um "enviado" (ou seja, alguém que vem de fora) do MST para discutir diretrizes de base.

Outro ponto que merece destaque é a falta de um posto de saúde e de uma escola dentro do acampamento, diferindo do modelo tradicional de acampamento do MST. Aparentemente isso seria fruto de uma falta de estrutura do próprio acampamento, contudo, foi uma escolha quase que involuntária, a medida que existem escolas públicas muito próximas ao acampamento, assim como o Hospital Público. Essa proximidade do meio urbano, ao mesmo tempo que dá uma certa praticidade à estrutura do acampamento, pois não é preciso gastos na manutenção desses serviços, torna prejudicial as relações interpessoais do "movimento" (como eles mesmo chamam) com o acampamento. A existência de uma escola específica do movimento seria um excelente veículo ideológico a serviço não só do movimento, como para reforçar os laços entre os acampados.

9. A Produtividade do Acampamento.

         A divisão de terras foi estabelecida por família, onde cada uma tem direito a três hectares. Contudo, o que se observou foi que nem todas tinham condições financeiras ou técnicas para cultivar toda a área. Existem famílias que conseguem cultivar somente um hectare e outras que, por não possuírem recursos para arcar com os custos, ainda se encontram em uma situação de dependência de trabalhos externos para investir na lavoura.

          No entanto, essa não é a realidade da maioria dos acampados que produzem, pois, grande parte deles conseguem produzir com relativo êxito em suas lavouras, nos três hectares demarcados pela coordenação do acampamento.

          Os principais mercados escoadores da produção do acampamento são os diversos "sacolões" espalhados pelo bairro, ou então, destina-se ao CEASA. Isto quando conseguem se organizar para fugirem dos atravessadores, que conseguem negociar abaixo do preço de mercado, dado a dificuldade de obterem carga suficiente para fretar um caminhão.

          A falta de cooperação entre os diversos produtores do acampamento é a principal barreira na hora de escoar as mercadorias, pois, não há um comum acordo para fixarem taxa de preços, nem um mutirão para organizarem a venda dos produtos em lotes, a fim de conseguirem melhores preços. Por vezes presenciei tentativas dos acampados de pressionarem o aumento do preços do aipim, fixando a taxa de preço, mas na hora de negociar sempre algum produtor acabava vendendo mais barato, por não ter sido comunicado.

 Mesmo assim a produção tem se mostrado, se não um negócio muito rentável, pelo menos sustentável. A renda obtida com a colheita tem servido para cobrir os próprios gastos com a plantação e para começar a investir na próxima. É preciso também frisar que este é apenas o terceiro ano que este acampamento produz seus próprios alimentos e que o manejo tende a melhorar cada vez mais, já que a técnica, assim como o maquinário - na qual um grupo de acampados já pensa em adquirir futuramente um trator, para não perder dias a espera de um trator alugado - tende a se modernizar com maiores investimentos advindos destes recursos gerados pela produção.



NOTAS

[i] Os japoneses foram desapropriados pelo governo para o projeto de Angra 3, que nunca saíra do papel, e que, posteriormente, foi usado pela ditadura como uma espécie de reformatório para rapazes (onde ao completarem a maioridade eram encaminhados diretamente para o serviço militar).

[ii] Isso ocorreu por ocasião da perda de quase todas as ramas (mudas) de aipim que esta família possuía para começar o plantio.

BIBLIOGRAFIA

CÂNDIDO, Antônio. Parceiros do Rio Bonito.

CASTRO, E. G. Entre o Rural e o Urbano: Dimensões Culturais dos Assentamentos Rurais no Estado do Rio de Janeiro. Tese de Mestrado, PPGS/IFCS/UFRJ, 1995.

GRZYBOWSKI, C. Caminhos e Descaminhos de Movimentos Sociais no Campo. Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 1987.

LINHARES, Elizabeth, MEDEIROS, Leonilde, PADRÃO, Alentejano. Conhecendo Assentamentos Rurais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ, 2002.

RESUMO: Trata-se de uma observação participante realizada em um acampamento sem-terra objetivando investigar as relações internas e externas dos acampados e assim levantar alguns dados sobre sua visão de mundo.

Palavras-Chaves: Observação participante, movimento sem-terra, relações sociais

*  A pesquisa foi organizada pelo DCE da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e realizada nos meses de  março e abril de 2004.

** O autor é acadêmico de  Ciências Sociais, do IFCS / UFRJ.

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