OS IMPASSES DA GLOBALIZAÇÃO - HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA (vol.1). Coordenação: Theotonio dos Santos. Organização: Carlos Eduardo Martins, Fernando e Mônica Bruckmann. Editora PUC-Rio, Edições Loyola, co-edição: REGGEN (Cátedra e Rede Unesco/ONU em Economia Global e Desenvolvimento Sustentável), pp. 252, 2003.

RESENHA de Carlos Alberto Araujo de Almeida*

          O livro, primeiro volume de uma série prevista de três, reúne trabalhos apresentados no Seminário Internacional Hegemonia e Contra-hegemonia: os impasses da globalização e os processos de regionalização, iniciativa da Cátedra e Rede em Economia Global e Desenvolvimento Sustentável da UNESCO e da Universidade das Nações Unidas (REGGEN), organizado no Colégio do Brasil, sob a direção do Prof. Theotonio dos Santos.

          O Seminário, realizado em 2003, contou com o apoio de diversas instituições: Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Universidade de São Paulo (USP), Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ), Colégio do Brasil, Instituto de Lógica e Teoria da Ciência Dóris Aragão (ILTC) e Coordenadoria de Relações Internacionais do Rio de Janeiro.

          Os trabalhos incluídos nesse primeiro volume apresentam uma interessante discussão sobre as transformações no cenário mundial e constituem uma ótima oportunidade para uma reflexão sobre o papel que cabe ao nosso país nesse cenário tão complexo. Inserção internacional subordinada ao paradigma neoliberal e, portanto aos interesses hegemônicos das potências dominantes, ou buscar a definição de uma política calcada nas especificidades da realidade nacional e, portanto, nas nossas necessidades, ao mesmo tempo respeitando os nossos parceiros? A leitura dos artigos deixa bastante evidente a trama de relações complexas que caracterizam as relações internacionais contemporâneas. Ressalte-se a riqueza de informações e a expertise com que os temas são tratados pelos autores. Dentre os nove artigos que compõem o livro, destacamos para esta resenha os de Theotonio dos Santos, Andre Gunder Frank e Samir Amin.

          O artigo de Theotonio dos Santos, Unipolaridade ou hegemonia compartilhada”, discute as conseqüências que a emergência de um novo paradigma científico-tecnológico, associado ao fim de uma fase depressiva (fase “B”) e ao início de uma nova fase expansiva (fase “A”) dos ciclos longos de Kondratiev, exerce sobre a economia mundial, sobre as relações entre os estados nacionais e sobre a constituição de hegemonia e de instituições internacionais. Após um período de inconteste hegemonia norte-americana, pós-Segunda Guerra Mundial, em que a estrutura institucional do sistema mundial esteve calcada nessa hegemonia, descortina-se um cenário em que a mesma não é capaz de manter-se intacta, e um novo sistema de alianças deverá ser construído, face às transformações verificadas em escala planetária. A perda da capacidade hegemônica norte-americana está especialmente relacionada ao declínio do seu poderio econômico e militar. Os déficits fiscal e externo e a conseqüente pressão para a desvalorização do dólar são manifestações da posição frágil dos Estados Unidos. Nesse contexto de crise da hegemonia americana, o autor aponta para um cenário em que os Estados Unidos manterão uma hegemonia compartilhada com outros possíveis poderes centrais: a Europa integrada, sob a liderança franco-alemã, o sistema japonês-Ásia-Pacífico, no qual a China desponta como novo poder econômico e militar, e a antiga União Soviética, hoje CEI (Comunidade dos Estados Independentes), sob o comando da Rússia. Os Estados Unidos ainda mantêm um elevado poder relativo, mas nenhum dos atores citados tem condições de isoladamente exercer a hegemonia mundial, embora seja lícito esperar um maior peso dos novos atores daqui para frente, na definição das questões mundiais.

          Com relação ao chamado Terceiro Mundo, o autor chama a atenção para a prevalência de uma situação mundial desigual, na qual os países do Terceiro Mundo são excluídos do progresso material obtido pelos países desenvolvidos, na qual as políticas econômicas adotadas pela nação hegemônica afetam negativamente aqueles países e a política dos países desenvolvidos busca conter as aspirações deles nas decisões mundiais.  Uma situação como esta gera efeitos disruptivos e constitui-se em ameaça à construção de estabilidade e paz mundiais.

          As instituições internacionais construídas sob a égide da hegemonia americana no pós-guerra tornaram-se obsoletas. Não mais dão conta da complexidade do mundo atual, caracterizada por uma conjuntura diferente e pelo surgimento de novos atores econômicos, políticos, sociais e culturais. Dado o acúmulo de poder econômico, político, diplomático e/ou militar obtido por esses novos atores, não é mais viável excluí-los dos centros de decisão mundial. Por outro lado, a necessidade de aprofundamento da regulação da vida econômica em nível mundial e a busca de ampliação da participação nos centros decisórios por parte dos novos atores mencionados conflitam com a posição hegemônica dos Estados Unidos, cuja atuação externa, em diversos casos, voltou-se para o esvaziamento ou controle de foros e agências internacionais.

          Outra dimensão do problema da necessidade de reestruturação mundial está na obsolescência do sistema de alianças militares do pós-guerra e pós-Guerra Fria, concebido como meio de contenção da expansão da ex-União Soviética. Esta questão põe na agenda internacional a tarefa da redefinição de um novo sistema de segurança.

          No âmbito do Terceiro Mundo, o autor identifica uma tendência ao fortalecimento das organizações regionais, que se insere numa tendência geral de reforçar a integração regional como estratégia principal de transição para a globalização da economia mundial.

          O artigo de Andre Gunder Frank, “Tigre de papel, dragão de fogo”, traz a idéia de que os dois pilares sob os quais se sustenta o poder mundial dos Estados, o dólar e o Pentágono, são, ao mesmo tempo, seus calcanhares de Aquiles. O dólar financia o poder militar americano que, por sua vez, reforça o poder do dólar, mas ao mesmo tempo os gastos militares são os principais responsáveis pelos déficits fiscal e comercial do país. O dólar é o tigre de papel, pois sua força reside na aceitação e na confiança internacional de que desfruta e que pode ser abalada a qualquer momento. Uma forte desvalorização do dólar traria reduções no consumo e investimentos norte-americanos, assim como na riqueza denominada naquela moeda, e comprometeria também a capacidade dos Estados Unidos de manter e ampliar o seu aparato militar. Inversamente, um fracasso militar afetaria a confiança no valor da moeda norte-americana.

          A possibilidade de cunhar dólares está na raiz da manutenção da posição dos Estados Unidos na economia mundial. A emissão de dólares permite adquirir mercadorias a preços deflacionados dos outros países, dólares esses que retornam ao país sob a forma de aplicações em Wall Street e/ou títulos do Tesouro americano, o que permite o financiamento dos déficits fiscal e comercial.

          A crescente dificuldade para manter esses déficits atua contra a sustentabilidade da posição da moeda norte-americana. Um fator adicional que pode concorrer para o debilitamento do dólar é a possibilidade de que determinados países, grandes exportadores de petróleo, passem a utilizar o euro, em lugar do dólar, nas exportações da commodity.

          Ocorrendo a débacle do pilar dólar ficaria difícil sustentar a posição militar americana e, portanto, impor a sua ordem, em escala mundial.

          Como contraponto à crise americana, Gunder Frank analisa a situação da China, o dragão de fogo. A crise asiática de 1997 levou muitos a por em dúvida a força e a capacidade econômica da Ásia Oriental, em particular a da China, mas essa perspectiva, na visão do autor, é prematura e padece de erros de interpretação da evidência contemporânea.

          A abordagem de Gunder Frank nos remete para um tema crucial, o dos modelos institucionais seguidos pelos diferentes países, o que inclui as relações entre Estado, finanças e organizações produtivas e de mercado. O autor chama a atenção para o fato de que os países asiáticos que alcançaram sucesso econômico, quer no passado, quer no período mais recente, não mimetisaram o modelo ocidental. A opção foi por formatos que atendessem às necessidades reais desses países e não por modelos ditados pelos cânones ocidentais. Na verdade não há modelos de aplicação universal e que, portanto, devam ser privilegiados; mesmo entre os países asiáticos há diferenças nas formas institucionais e nas políticas adotadas.

          Em relação à crise econômica asiática de 1997, é observado que a recessão foi exacerbada pelas políticas impostas pelo FMI aos governos asiáticos e menos severa nos países que, ao contrário das recomendações do Fundo, mantiveram controle sobre o fluxo externo de capitais.

          A experiência recente com as políticas das instituições comerciais e financeiras mundiais está engendrando esforços de países da Ásia Oriental voltados para o fortalecimento do sistema financeiro e bancário da região e para a remodelação daquelas instituições, hoje dominadas pelo Ocidente.

          Samir Amin, em seu artigo Refundar a solidariedade dos povos do Sul”, questiona a idéia de que a solidariedade dos países do hemisfério sul, que no passado adquiriu expressão na arena internacional, não encontre mais possibilidades de sustentação, face à inexistência de interesses coletivos entre os diversos países. Para Amin, uma renovação possível do não-alinhamento poderia se dar como não-alinhamento em relação à globalização liberal e em relação à hegemonia dos Estados Unidos, na linha da última cúpula dos não-alinhados realizada em Kuala Lumpur, em 2003, na qual foi refutado o unilateralismo das ações dos Estados Unidos no mundo.

          As diretrizes para uma possível renovação de uma frente dos países do Sul seriam, no plano político, a condenação do novo princípio da política dos Estados Unidos (“a guerra preventiva”) e a exigência da retirada de todas as bases militares estrangeiras na Ásia, África e América Latina. Na esfera econômica, as questões passam pelo controle das transferências internacionais de capitais, pela regulação dos investimentos estrangeiros, por uma política nacional de desenvolvimento agrícola e pela maneira como tratar a dívida externa, questionando-se a sua legitimidade e estimulando o fortalecimento de um direito internacional da dívida.

          Não menos importante é o papel dos governos dos países do Sul na defesa dos interesses nacionais. Não há garantia por si só de que os governos dos países do Sul evitem o alinhamento ao paradigma neoliberal dominante e aos interesses estrangeiros, ao invés de defender os interesses da maioria da população, já que em muitos desses países prevalecem regimes autoritários e submissos ao capital internacional. Para lidar com esse problema, o autor defende a democratização desses regimes, abrindo-os à participação de seus respectivos povos, a fim de viabilizar a reconstrução de uma frente sólida das nações do hemisfério sul.

*Economista e mestrando em ciência política do IFCS/UFRJ.

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