DISCURSO DE POSSE DO PROF. JORGE DA SILVA COMO SECRETÁRIO DE ESTADO DE DIREITOS HUMANOS, EM 3 DE FEVEREIRO DE 2004.

 

1.      Introdução

 

Embora não seja de meu feitio falar de experiências pessoais em público, sinto-me compelido a fazê-lo tendo em vista o motivo que nos reúne aqui nesta manhã. Gostaria de me referir inicialmente a fatos acontecidos em dois momentos e que, de certa forma, me fizeram compreender algumas peculiaridades da sociedade brasileira e ajudaram a moldar a minha concepção sobre os Direitos Humanos. 

 

Em 1968, como capitão, participei de uma seleção interna na PM para fazer um curso de polícia nos Estados Unidos. Eram duas vagas, e os oficiais interessados no curso foram submetidos a provas de conhecimentos gerais e de domínio do inglês. Obtive a primeira vaga, porém, qual não foi minha surpresa quando soube que o comandante geral da PM estava sendo “aconselhado” por alguns oficiais superiores a mandar um outro oficial no meu lugar, com a alegação de que eu poderia sofrer com os problemas raciais existentes naquele país. Não fosse a intervenção pronta do representante do governo americano (que ironia!), é possível que eles tivessem conseguido o seu intento. Viajei. Em lá chegando, ao contrário do que diziam aqueles conselheiros de ocasião, fui muito bem tratado e não tive qualquer problema durante os quase cinco meses do curso. Mas um fato me chamou a atenção, na comparação com o Brasil. Desde criança, eu aprendera na escola e nos livros didáticos que o Brasil era uma democracia racial. Eu até me orgulhava disso, de viver num país sem os problemas que, coitados, viviam os negros dos Estados Unidos. Descobri então que não era bem assim; que os negros norte-americanos, ou seja, os norte-americanos de ascendência africana não passavam de 12% da população total, e que, no geral, desempenhavam os mesmos papéis sociais que os seus correspondentes brasileiros (pelos padrões americanos, muito mais do que 50% da população). E mais: que, em termos de segregação espacial, não havia grandes diferenças, pelo menos se tomadas as cidades de Washington, Nova Iorque e Rio de Janeiro. Em suma, senhoras e senhores, descobri, nos Estados Unidos, que o racismo era uma marca forte de nossa sociedade, e que o discurso da democracia racial era uma construção mítica, conveniente, da intelectualidade nacional.  

             

A segunda experiência aconteceu em 1983, quando integrava uma delegação de oficiais superiores da Polícia Militar em viagem de estudo a instituições policiais européias. Certo dia, caminhando com dois colegas pelas ruas da cidade de Colônia, na Alemanha, deparamo-nos com uma manifestação pública, em que os participantes gritavam palavras de ordem e ostentavam cartazes. Como não entendíamos nada de alemão, não tivemos na hora idéia do objetivo dos manifestantes. Mas, para nossa surpresa, um dado estava claro: a manifestação contava com a proteção da polícia. Ora, na cabeça de um policial brasileiro, a polícia existia para acabar com manifestações, e não para protegê-las. Tínhamos aprendido nas escolas da Polícia Militar que manifestação era sinônimo de desordem, algo intolerável, coisa de comunista e de subversivos. À noite, um policial alemão que falava inglês nos informou que aquela era uma manifestação dos verdes, militantes do movimento ecológico. 

 

Devo confessar a minha ignorância. Há 21 anos, aquilo para mim era novidade. “Verdes?!...” Mas uma outra coisa ficou então clara para mim: enquanto lá, as pessoas se mobilizavam para lutar pela qualidade do ar que respiravam (Direitos Humanos de 4a. geração), e a polícia protegia passeatas, no Rio de Janeiro grandes contingentes populacionais viviam em meio a valas de esgoto e em lixões, e pobres e negros estavam submetidos às chamadas “prisões para averiguações”.             

 

2.      Contexto

 

Sra Governadora, resolvi trazer à baila essas duas experiências porque um dado extremamente importante na luta pelos Direitos Humanos, mas quase sempre descartado, refere-se ao contexto em que a luta se trava. Os Direitos Humanos são uma conquista da humanidade, bastando para usufruí-los ou pleiteá-los que o indivíduo pertença à espécie humana, independentemente do lugar do mundo onde tenha nascido ou de outros componentes da sua identidade. Porém é preciso que se tenha clareza que lutar pelos Direitos Humanos num país como o Brasil é diferente de lutar por esses direitos num país como a Inglaterra do Bill of Rights de 1215, ou da França, dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Na verdade, os europeus impuseram a opressão aos povos da periferia, da África, da Ásia e da América Latina, no exato momento em tinham os direitos dos seus cidadãos ampliados. Este dado é relevante porque às vezes falamos do Rio de Janeiro esquecendo-nos de que se trata de uma cidade do Brasil, e que o Brasil é um país da América Latina, região que foi palco das atrocidades do colonialismo europeu cometidas contra os autóctones e os da cor do ébano trazidos da África. Falamos do Rio de Janeiro esquecendo-nos de como este Estado e esta Cidade foram formados historicamente. Falamos do Brasil esquecendo-nos de que a forma homogênea e arrumada como a Nação brasileira tem sido narrada pelo establishment não corresponde à realidade vivida pela maioria do povo. Fala-se de um país harmonioso, cordial; de uma sociedade sem preconceitos, em que todos são iguais, como se estivéssemos falando de um conto de fadas, ou, como melhor diria o antropólogo Robeto da Matta, da “fábula das três raças”.

 

Que sociedade é essa, sem conflitos de interesses entre os diferentes grupos populacionais que a compõem? Que sociedade é essa em que o indivíduo não pode ostentar a sua identidade particular, só estando autorizando a apresentar-se como “brasileiro” ou “brasileira”? Não podendo apresentar-se como negro ou negra, como indígena, como homossexual? E em que não pode ostentar uma identidade múltipla? Que sociedade é essa em que qualquer tentativa de afirmar a igualdade social é rechaçada com a célebre frase: “Você sabe com quem está falando?

 

Enfim, não nos damos conta do ridículo de insistirmos em falar de uma sociedade pacífica e fraterna em meio ao tiroteio, em meio à matança que se verifica em nossas cidades. Aliás, das maiores matanças do mundo. E ai de quem falar de um outro Brasil, este sim, constituído da maioria do povo: um país fragmentado, hierárquico, dividido socialmente, que experimenta níveis de violência e criminalidade que extrapolam a normalidade criminal sustentada por Émile Durkheim. Ora, o melhor caminho para não resolver um problema é fingir que ele não existe. 

 

Na verdade, numa sociedade cuja ordem tem os referenciais da hierarquia social, do preconceito e do elitismo, manter a ordem, vale dizer, manter a injustiça, implica exercitar a intolerância contra aqueles que pugnam pela igualdade e pelo direito de serem “diferentes”. 

 

3. Direitos Humanos. Concepções

 

As duas experiências referidas por mim inicialmente mostram que o desfrute dos direitos humanos é também condicionado por fatores sócio-culturais e históricos. É talvez por esta razão que, num país como o Brasil, o discurso sobre os Direitos Humanos se circunscreva ao questionamento da violação dos direitos civis (direitos de 1a. geração), relativos à liberdade do indivíduo em relação ao Estado. Sobre o direito à liberdade, há consenso. Entretanto, no que se refere aos Direitos Humanos de 2a. Geração (Direitos Sociais e Econômicos, à saúde, à educação, ao saneamento etc), e aos Direitos Humanos de 3a. Geração (Direitos Coletivos e Difusos, sobretudo de grupos especialmente discriminados, como negros, indígenas, mulheres, homossexuais) o consenso se dissipa, aparecendo a sua defesa apenas em alguns discursos politicamente corretos.

 

         E ficam os conservadores, sejam eles declarados ou fingindo-se de progressistas, em posição muito confortável. Se se trata de Direitos Humanos de 1a geração, ao mesmo tempo em que podem ostentar o discurso raivoso incentivador da truculência policial, podem vociferar contra a essa truculência quando lhes é conveniente, sem qualquer constrangimento de defender a excrescência da prisão especial. Quanto aos Direitos Humanos de 2a. geração, ao mesmo tempo em que podem bradar que é preciso melhorar a educação pública, combatem qualquer tentativa de se oferecer escolas públicas de tempo integral, com alimentação, biblioteca etc. Dizem que é inexeqüível. Quanto aos Direitos Humanos de 3a. geração, ao mesmo tempo em que falam de igualdade racial, utilizam a mesma racionalidade universalista para desqualificar programas de ação afirmativa, como as cotas para estudantes pobres e negros estabelecidas nas universidades do Estado do Rio pelo então Governador Anthony Garotinho.  Em suma, quando se trata de igualdade, a culpa da miséria é comodamente atribuída aos miseráveis. 

 

4. O que fazer diante desse quadro?

 

A política do governo do Estado é clara, na defesa dos Direitos Humanos em todas as suas dimensões. O governo não tolera a tortura, a violência policial e o desrespeito aos cidadãos. Puniu e punirá todo aquele agente público que praticar atos como o acontecido na Delegacia de Cabo Frio. O Estado é responsável por qualquer pessoa que esteja sob sua custódia. Independentemente do que tenha acontecido em Cabo Frio no caso Rômulo, o estado teria a obrigação de entregar o rapaz à sua família com vida. Mas continuaremos colocando ênfase na defesa e promoção dos Direitos Humanos de 2ª geração e de 3ª geração. (Senhora governadora, tenho uma intuição. Acho que deveríamos convidar o Ministério Público para acompanhar as investigações desse caso.)

 

         Preocupamo-nos com o maltrato a idosos, em qualquer lugar, sobretudo em clínicas para acolhimento dos mesmos. A assistência a crianças e adolescentes. Vamos estar atentos à eventualidade de ocorrência de trabalho escravo em nosso Estado, à exploração sexual de crianças e adolescentes. Envidaremos todos os esforços para democratizar o sistema de ensino, não só no Estado, mas em nível nacional, o mesmo ocorrendo com o sistema de saúde. Vamos nos engajar no esforço de estender a justiça aos mais necessitados.  

 

         Além dos projetos que certamente a senhora governadora Rosinha vai anunciar, queremos propor a Vossa excelência alguns outros programas e projetos, alguns dos quais em articulação com outras secretarias e com a sociedade civil:

  

a.      Criação da Ouvidoria dos Direitos Humanos

b.      Ampliação do programa de Proteção a Testemunhas e Vítimas Ameaçadas.

c.      Reforço da Ouvidoria da Polícia e da Corregedoria Geral Unificada, externa.

d.      Programa de Assistência a Policiais Paraplégicos e portadores de outras deficiências

e.      Programa para Órfãos e Viúvas de Policiais

f.       Programa de Educação em Direitos Humanos:

- Concurso de redação sobre tema relacionado aos Direitos Humanos, em

parceria com a Secretaria de Educação, para estudantes da rede pública.

- Concurso de redação para servidores públicos do Estado, em parceria com a Fundação Escola do Serviço Público.

g.      Programa de bolsas de pesquisas induzidas para pesquisadores das universidades e entidades de pesquisa públicas e privadas situadas no Estado do Rio de Janeiro, em parceria com a FAPERJ e Secretaria de Ciência e Tecnologia.

 

Conclusão

 

Senhora Governadora, minhas senhoras e meus senhores, o contexto de ontem não é muito diferente do de hoje, se compararmos os dias que correm com os dois momentos de minha experiência, mencionados no início de minha fala. Por alguma razão insondável, contudo, ainda se fala da violência, da educação, da saúde, abstraindo da discussão o contexto, ou melhor, as raízes desses problemas.

 

Mas gostaria, para finalizar, de fazer um apelo aos que lutam pelos Direitos Humanos: vamos lutar também, mais e mais, pelos direitos de 2a. geração e de 3a. geração em benefício da grande massa de excluídos do Brasil, do nosso Estado e de nossa cidade.

Obrigado.

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