“CRUCIFICAI-OS, CRUCIFICAI-OS...

 

 Siro Darlan de Oliveira*

 

No ano 33 de nossa era o povo clamava unanimemente, conduzido pelas lideranças que representavam as elites da época, sacerdotes, escribas, cobradores de impostos, administradores públicos, pedindo a exclusão total pela morte de um inocente, gritando “Crucifica-o, crucifica-o!”. A turba era conduzida como carneiros enraivecidos e emocionalmente comprometidos, sem o necessário raciocínio isento e conhecimento das razões de tanta ira e contra quem tanto ódio se dirige.

          Em nossos dias a cena se repete quase que com os mesmos personagens. Conduzidos por razões puramente emocionais, habilmente manipuladas pelas mãos daqueles que sendo produtores da miséria que gera a violência, se antecipam e criam a chamada opinião pública, cuja primeira providência é tornar a turba cega e surda, capaz apenas de repetir aquelas palavras de ordem que colocam através dos modernos e ricos meios de comunicação social na boca do povo. E o povo limita-se a repetir: “prisão perpétua”, “pena de morte”, “prisão a mais precoce possível, 16 anos, não, 14, quem sabe 12 anos?”, que tal “prisão-berçário?”.

Coincidentemente o povo é conduzido a assim pensar por representantes eclesiásticos, um ilustre Cardeal, quase papável a pregar a exclusão precoce dos jovens socialmente excluídos, um rabino cuja função religiosa deveria ser a defesa da vida reivindicando a pena de morte, o governador do Estado mais rico da federação pleiteando mais tempo de prisão, 10 anos, do que o tempo legalmente considerado adolescência, 6 anos, e uma mídia comprometida com os interesses das classes dominantes que desejam a manutenção do processo de exclusão social em desrespeito às normas constitucionais que determinam a prioridade absoluta na elaboração e execução das políticas públicas que atendam aos interesses superiores das crianças e adolescentes. Afirma-se até que uma pesquisa aponta que 70% dos magistrados brasileiros desejam a redução da responsabilidade penal. Outras pesquisas chegam a 90% dos pesquisados com igual pretensão.

          Felizmente ainda há pessoas lúcidas que não se deixaram conduzir pelo impacto emocional e o clamor punitivo existente na atualidade, como o presidente Miguel Pachá, que em seu discurso comemorativo do Dia da Justiça, assim se pronunciou:

 

“Não pode o Judiciário se omitir do debate que vem sendo travado sobre a redução da maioridade penal, resultado da violência que se entranhou no tecido social e foi gerada pelas diferenças sociais cada vez maiores e pela redução da capilaridade do Estado junto ao tecido social. Desde os tempos das tragédias gregas se sabe que se pode aprender com a dor, mas na dor não se deve ensinar”.

 

          Em que país vive o Cardeal que não se pronunciou contra os desmandos dos governantes que não respeitam a Constituição do país e não cumprem o dever de assegurar creches para as crianças, escola e alimentação para todos, emprego e moradia para seus pais? Em que Estado vive o Governador que não cumpre as regras do Estatuto da Criança e do Adolescente que determina que os adolescentes cumpram as medidas sócio-educativas em equipamentos que não existem em seu Estado? Se existissem os adolescentes amontoados na FEBEM não estariam diariamente reproduzindo a violência que os vitimiza dentro e fora das unidades oficias. Em que mundo vivem os magistrados que desconhecem as causas que levam as crianças para as ruas e de lá para as garras do narcotráfico e outras formas de criminalidade?

Antes de cobrar a redução da responsabilidade penal há que se perguntar por que as famílias empobrecidas não dispõem de creches para deixar seus filhos enquanto trabalham, quando há trabalho? Por que não há escola pública para todos e de qualidade para os filhos dos trabalhadores? Que culpa têm as crianças que crescem sem família, sem escola, sem emprego, sem habitação, sem a necessária noção do certo ou do errado? São os jovens responsáveis pelo domínio do narcotráfico que leva a violência para o seu cotidiano, que coloca drogas e armas em suas mãos no mesmo cenário de miséria e abandono e leva, para o espaço onde vivem, a fome, a doença, crimes e mortes são imagens de sua realidade, onde o poder público se ausenta e o poder paralelo da criminalidade se impõe? São esses jovens que querem levar precocemente para a cadeia sem ouvi-los, sem lhes dar oportunidade de vida digna e respeitosa.

O episódio da família Staheli ilustra de forma paradigmática a forma covarde como temos tratado as crianças em nosso país. Os pais foram barbaramente assassinados e logo apontamos as suspeitas para a empregada (é mais fácil e cômodo apontar o dedo para os mais humildes), o mordomo é sempre o culpado, ensina a literatura. Superada essa suspeita, passemos ao motorista, ainda no segmento dos mais humildes, novo fracasso. Finalmente, as crianças, por serem indefesas e ingênuas, quem sabe mataram os próprios pais? Tal como fazemos com nossas crianças excluídas que ocupam os logradouros públicos fugindo da violência doméstica e do processo de exclusão social que lhes nega respeito e dignidade, escola e alimentação, família e carinho, apontamos o dedo ameaçador afirmando que são elas as responsáveis por toda forma de violência e logo surgem as soluções “mágicas” e mais fáceis: responsabilizá-las pela violência e aprisioná-las o mais precocemente possível.

          É e será sempre mais cômodo apontar o dedo contra indefesas criaturas, vítimas da negligência do poder público que lhes nega acesso aos direitos e serviços de cidadania do que buscar a responsabilização dos adultos incompetentes que manipulam as riquezas e os serviços públicos sem priorizar o respeito às crianças. Assim fizeram com a jovem Staheli, impedida de sair do país por decisão de policiais e uma ordem judicial emitida por autoridade judicial responsável pela aplicação de medidas a infratores. Foi a vítima equiparada a uma delinqüente. Constrangida e desrespeitada na sua condição de vítima, chegou-se a afirmar que era suspeita de haver assassinado os próprios pais.

          Alguém deve ser responsabilizado por esse quadro de violência e

desrespeito às crianças. Voltemos à razão para analisar quem não está

cumprindo o seu papel no pacto social ditado pela Carta Magna que dita que, com prioridade absoluta, devem ser assegurados os direitos fundamentais de crianças e adolescentes brasileiros. Essa norma constitucional não está sendo respeitada. Vamos exigir que seja cumprida e veremos como a violência cederá sua vez ao respeito e a dignidade. Se a referência de nossa juventude for a de respeito às leis, eles saberão respeitar as regras de convivência social.

Depois de crucificado, Ele ressuscitou e deixou-nos lições que devemos refletir para aplicar nas possíveis soluções como “Há mais alegria nos céus por um pecador que se justifica que noventa e nove que já são justificados”. Que tal garantir os direitos fundamentais das crianças antes de apostar num cruel e covarde processo de exclusão social cada vez mais precoce?

 

* Juiz da Primeira Vara da Infância e da Juventude.

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