DROGAS, FUZIS, GRANADAS, MINAS E GUERRAS DE QUADRILHAS,

OU “ENXUGANDO GELO” * 

                                  

Anthony Garotinho **

                                                                                                  

Em ritmo frenético, ano a ano o mercado de drogas ilícitas vem incorporando milhares de novos consumidores, para felicidade dos traficantes e de todos aqueles que se beneficiam desse nefando comércio. Mercado promissor, movimentando milhões e milhões de reais, atrai a cobiça de muitos, numa cadeia de interesses que se estende da miséria das favelas ao luxo de mansões e hotéis brasileiros e de outras partes do mundo. Na ponta, em disputa sangrenta pelo controle dos espaços de venda no varejo, quadrilhas rivais promovem uma guerra particular, para felicidade dos comerciantes de armas, legais e ilegais, nacionais e estrangeiros, e para desespero da população ordeira, favelada ou não.

 

Em meio a tudo isso, uma constatação: muito mais do que as drogas, o grande problema que enfrentamos são as poderosas armas de fogo e os artefatos apreendidos todo dia pela polícia; é o poderio dos traficantes, evidenciado pelas disputas armadas nas tentativas de invasão de redutos de uma facção pela outra. Como se sabe, invasões desse tipo, consumadas ou não, já se verificaram em diferentes favelas da periferia, como, no caso do Rio de Janeiro, no Morro do Dendê, na Ilha do Governador; no Complexo do Alemão, em Ramos; e no Complexo da Maré. E aconteceu na Rocinha, favela encravada numa das zonas mais ricas da cidade, contígua a São Conrado. Aliás, a Rocinha é considerada o maior empório distribuidor varejista de drogas, sendo, por esse motivo e por sua localização, a mais disputada, como exemplifica o episódio acontecido na sexta-feira da Paixão de Cristo, quando uma quadrilha, liderada pelo traficante conhecido por Dudu, tentou invadir a favela para arrebatar o controle do comércio de drogas do bando rival, chefiado pelo bandido conhecido por Lulu. Este episódio, não bastasse a sua inegável gravidade, despertou grande atenção também pelas luzes que recebeu, motivo pelo qual é preciso chamar a atenção para pontos que ficaram fora de foco e passaram ao largo da discussão.

 

Na Secretaria de Segurança tínhamos informação de que o tal Dudu tentaria a empreitada, razão pela qual a polícia conseguiu evitar que as conseqüências da ação fossem muito piores do que realmente foram. Poderia ter ocorrido a morte de dezenas de traficantes e pessoas inocentes da comunidade. Ainda assim, os traficantes mataram uma empresária numa falsa bllitz, um tenente e um soldado do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da PM, um skatista, uma babá e um pedreiro; e seis traficantes morreram, incluído o tal Lulu, dias depois.          

 

Sobre o episódio produzem-se análises, a maioria buscando apontar culpados. Esquecidos do que aconteceu de finais de 1994 a inícios de 1995, quando as Forcas Armadas foram empregadas inutilmente, alguns passaram a falar de novo no emprego das mesmas. Salvo raras exceções, as análises não conseguem ir além da superfície. Vou apenas tocar num dos pontos que ficaram fora da discussão, a partir do relato de um fato acontecido em 2000.   

 

Em meados de 2000, na condição de governador do Estado do Rio de Janeiro, preocupado com a imensa quantidade de armas de fogo, artefatos, munição e cocaína que vínhamos apreendendo, e com o grande número de traficantes que vinham sendo presos, sem que o quadro se alterasse significativamente, levei ao então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, o Plano de Segurança Pública do Governo do Estado. Queria mostrar ao senhor presidente que, na verdade, mantidas as condições em que o Governo Federal se colocava diante da questão da segurança (as autoridades federais afirmavam taxativamente que o problema da segurança era dos estados), o que estes faziam nada mais era do que uma espécie de “enxugar gelo”, pois as fontes de reabastecimento de armas, munição e drogas eram, e continuam sendo, inesgotáveis, problema que os estados não poderiam  e não podem resolver.

 

Numa reunião no Palácio da Alvorada, entreguei um exemplar do plano também aos então ministros José Gregori, da Justiça, e general Alberto Cardoso, do Gabinete de Segurança Institucional. Acompanhava-me o então coordenador de Segurança, coronel Jorge da Silva, que ajudara a elaborar o Plano. Depois de dar algumas explicações gerais sobre o documento, chamei a atenção do presidente e dos demais para a parte final, em que eram apresentadas algumas sugestões de medidas que, se adotadas pela União, em muito facilitariam o trabalho dos Estados e, com toda certeza, poriam fim ao poderio armado dos traficantes. São 11 sugestões, das quais cito apenas três, exatamente aquelas em que coloquei maior ênfase na conversa com o presidente e os ministros citados. Melhor transcrever alguns trechos dessa parte do plano (Cf. Política Pública para a Segurança, Justiça e Cidadania: Plano Estadual. Rio de Janeiro: Governo do Estado, 2000):           

 

“Mais importante do que o Governo Federal saber o que os Estados estão fazendo, é saber se tem um Plano em que estejam estabelecidos os objetivos e as articulações de suas próprias instituições e agências: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Secretaria Nacional Antidrogas, Secretaria Nacional de Segurança Pública, Secretaria Nacional de Justiça, Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Forças Armadas (controle de armas de fogo), Receita Federal etc.; é saber se estas instituições e agências constituem um sistema integrado, e quem o coordena e controla; é saber se suas ações estão dirigidas efetivamente para enfrentar os fatores que tenham a ver com as responsabilidades e encargos do ente federal.”   [...]

 

Sugestões:

 

·         “Criar uma Guarda de Fronteiras”

 

“Justificativa. Forças Armadas não são polícia, e seria temerário empregá-las como tal, como muitos têm sugerido ultimamente. Ocorre que, se a Polícia Federal tem efetivos irrisórios (praticamente a metade dos 10 mil policiais da Polícia Civil só no Rio de Janeiro); se as Forças Armadas não devem ser empregadas como polícia, o problema do Governo Federal permanece: quem vai fazer o policiamento de nossas fronteiras?

 

·         “Proibir a comercialização de armas de fogo”

 

“Justificativa. A participação de revólveres e pistolas no total de homicídios dolosos no Rio de Janeiro é de cerca de 73%. A maioria dessas armas é de fabricação nacional. Ou seja, estamos fabricando armas para nos matarmos. Pior: por mais que a polícia apreenda armas de fogo, mais os bandidos estão armados, o que demonstra que a fonte de abastecimento é inesgotável. Para começar, é necessário vedar a comercialização de armas de fogo para civis e criminalizar, com penas duras, o porte, a posse e o transporte desse tipo de arma. Quanto às armas estrangeiras, desenvolver ações, particularmente junto aos Estados Unidos, no sentido de uma mobilização internacional contra a produção e comercialização de armas de fogo, na igual medida do empenho daquele país contra as drogas.” 

 

·         “Construir presídios federais nos Estados”

 

“Justificativa. O Governo Federal pretende criar osistema prisional federal”, como consta do Plano Nacional de Segurança Pública, começando com a construção de um presídio em Brasília.”

 

“Estados onde a quantidade de presos ‘federais’ seja muito grande, como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, deveriam ter prioridade na implementação desse programa. Principalmente contra o narcotráfico, o contrabando de armas e outros crimes graves, a construção desses presídios, além de significar, ainda que simbolicamente, um duro golpe na criminalidade organizada, contribuiria para aliviar em muito a carga do Estado com a administração desses presos.”    

 

Voltando ao episódio da Favela da Rocinha. A verdade é que a polícia continua a apreender milhares de armas de fogo por ano (foram 15.615 em 2003; e mais de 106 mil de 1991 a 2003 só pela Polícia Militar), incluindo fuzis e metralhadoras de procedência estrangeira, sem contar artefatos como as poderosas granadas (e agora até minas antipessoais, como as apreendidas recentemente num paiol do tráfico na Favela da Coréia, em Bangu, junto com 30 mil munições para fuzil). Fuzis, metralhadoras e granadas que vêm sendo apreendidos há anos, também na Rocinha, sem que o poderio armado dos traficantes seja abalado. 

 

Como se vê, o que aconteceu na Rocinha (e já aconteceu em outros lugares, como vimos, e acontecerá em outros se não se estancar o fluxo regular de reabastecimento de armas, munição e artefatos às quadrilhas) pode ter outras explicações. Tudo sem contar que, enquanto isso acontece, a juventude deleita-se consumindo mais e mais cocaína e maconha; e o desemprego campeia, estreitando ainda mais os horizontes dos jovens favelados.

 

Hoje, passados quase quatro anos da reunião com o presidente Fernando Henrique, pergunto: o que o Governo Federal fez?  E lá vou eu de novo a Brasília, agora na condição de secretário de Segurança, fazendo os mesmos apelos: patrulhem os pontos de nossas fronteiras por onde, sabidamente, entram drogas e armas de grosso calibre; patrulhem os portos e aeroportos, sobretudo os clandestinos; patrulhem as baías e a costa (no caso do Rio de Janeiro, as baías de Angra dos Reis, Guanabara e Sepetiba); patrulhem as rodovias federais, por onde, sabidamente, entram drogas e armas no Estado e por onde circulam traficantes e quadrilhas de roubo de carga; construam presídios federais para os presos federais, sobretudo os grandes traficantes. Se tanto se fala no emprego das Forcas Armadas como polícia, não seria mais coerente e eficaz empregá-las nas fronteiras, portos e aeroportos para impedir a entrada no País de drogas e dos fuzis norte-americanos e europeus tão apreciados pelos traficantes? Que se aumentem os efetivos da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. Ora, para policiar o minúsculo Estado do Rio de Janeiro contamos hoje com 50 mil policiais civis e militares, sem falar dos 3 mil e seiscentos agentes do sistema penitenciário. A Polícia Federal, para o Brasil inteiro, não passa de 7 mil integrantes, e a Polícia Rodoviária Federal não chega a 8 mil. Para se ter idéia do quadro de despoliciamento, basta dizer que, para patrulhar as rodovias federais que cruzam o Estado do Rio, por exemplo, a Polícia Rodoviária Federal possui pouco mais de 400 integrantes, diluídos em turnos. E o pior: se realizamos alguma operação contra traficantes ou ladrões de carga numa rodovia federal, ainda temos que lidar com os melindres de autoridades federais. Em suma: deixar que as coisas permaneçam como estão constitui-se, no mínimo, numa irresponsabilidade. Mais: indiferença não só para com os policiais que vêm tombando às centenas nesse trabalho de Sísifo, como também com os inocentes mortos, sejam eles favelados ou não.           

 

Às vezes me pergunto: será que estou fora da realidade e o que me parece tão óbvio não passa de ilusão? Será que as sugestões que temos feito não têm sentido? Ou será que há muita gente mal intencionada ou alienada? Se assim for, talvez seja melhor também fingir alienação, repisando lugares-comuns ou participando da enquête para saber quem é melhor ou pior: se Lulu ou Dudu. 

 

O problema é muito mais complexo e grave do que pessoas de boa fé imaginam, e como fingem desconhecer os que, de má fé, simplificam-no grosseiramente por interesses pessoais, partidários ou por oportunismo, não perdendo a ocasião para apresentar receitas fáceis, como se estivessem fazendo um bolo. Não se pejam de partidarizar um problema que afeta a vida de todos, e que deveria ser tratado com isenção e de forma suprapartidária.    

       

Apesar de tudo isso, continuaremos no incessante trabalho de “enxugar gelo”, esperando que haja uma mobilização nacional contra esse estado de coisas, principalmente para sustar o reabastecimento de armas, munição e artefatos aos traficantes, e para cuidar do fato de os jovens estarem aderindo com tanta sofreguidão às drogas; esperando que a União Federal (não me refiro apenas ao Governo Federal) assuma as suas responsabilidades constitucionais da forma como toda a Nação espera. Continuaremos a prender traficantes e mais traficantes, a desbaratar quadrilhas e mais quadrilhas, a ver nossos jovens se drogando, a apreender centenas e centenas de fuzis e metralhadoras das facções criminosas; a ver nossos policiais sucumbirem. E começar tudo de novo. E de novo... 

 

* Texto  apresentado  na  Subcomissão  de Segurança Púbica do Senado em 26/04/04.

** Ex-Governador e atual Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro.

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