MALANDRO, CERVEJA, ÉTICA PROTESTANTE E ESPÍRITO DO CAPITALISMO

 

João Batista Damasceno*

 

Mundo em Rabisco

 

Zeca Pagodinho é um intérprete e compositor que canta e encanta na medida em que o seu estilo e suas canções, ao atuarem sobre o imaginário coletivo, possibilitam a reconstrução e o reviver da nostalgia do Rio Antigo, nas primeiras décadas do século XX, ocasião na qual o malandro – enquanto “personagem”- é uma figura típica. Zeca nos remete ao tempo em que o malandro que lesava o “otário” ou o fazia com bons argumentos, contando com a distração daquele ou no máximo com o uso de uma navalha.

A figura-tipo vivenciada por Zeca Pagodinho  é a do bom malandro. Ele nos recorda o malandro que só usa a lábia para conseguir sobreviver, que “leva vantagem” sem precisar apelar para arma branca ou qualquer forma de violência física, mas que ao mesmo tempo tem compaixão pelo sofrimento alheio. A identidade social que constrói é a do  malandro que ganha do otário, porque otário existe pra dar boa vida para malandro. Na ética da malandragem a culpa não é do malandro, mas do otário que deu mole. Quem mandou ser otário?

No Brasil da pessoalidade e da sensualidade é que o tipo Zeca Pagodinho se criou. Zeca tem a cordialidade que nos caracteriza. Tem a ginga brasileira. E, por isso, o público se identifica com ele, se encanta com ele. Foi a ética do malandro carioca vivida pelo artista Zeca Pagodinho, com imenso talento, que o transformou no símbolo que é. Suas músicas retratam a boemia, a sedução, a conversa mole do malandro para “ganhar” a  mulher desejada ou ainda a superioridade do esperto diante do “mané".

E foi pela credibilidade obtida pela imagem que Zeca Pagodinho construiu que uma marca de cerveja o contratou. O “verdadeiro” malandro é alguém capaz de dar o aval a uma marca de cerveja, ajudando-a a torná-la mais vendável. Ao contrário, quem quer  fazer seu comercial voltado para conquistar um público tradicional, procura contratar um homem que desfruta do prestígio de ser metódico e disciplinado como, por exemplo, um pastor protestante. O malandro encanta porque nos remete ao mundo lúdico da felicidade. O malandro não tem compromisso, mesmo quando é visto experimentando, jura que não é mais disso, que não perde uma noite à toa e que não trai e nem troca sua patroa.

Dentro deste contexto o malandro experimentou. O malandro “vestiu uma camisa listada e saiu por aí” (1). Mas, malandro que é malandro, pode ter um amor de verão ou de carnaval, mas pede perdão e volta pra casa arrependido. Este é o contexto da malandragem. É para o arrependimento que existe a quarta-feira de cinzas e toda a quaresma para a penitência.

Mas a publicidade se destina ao consumidor e trata de imaginário. Diversamente do contrato celebrado entre as partes envolvidas (empresa, publicitários, garoto-propaganda). A ética do Direito, regente das relações contratuais, é diferente da ética do malandro.

No Direito não há amor de verão nem de carnaval. O que existe é cumprimento ou descumprimento de contrato. Não há quarta-feira de cinzas para o arrependimento, mas responsabilidade pelos danos causados em decorrência do descumprimento do dever contratual. Não há quaresma para a penitência, mas dever de reparação.

A ética do contrato é a ética do capitalismo. Vige o princípio e o rigor da forma. Vale o que está escrito. Se o “malandro” manifestou a vontade, pela colocação de sua assinatura no contrato, não há como querer reviver o amor antigo. Está vinculado, por prazo certo, ao dever de não se referir ao antigo amor.

A ética da publicidade, que busca por processos emocionais a intromissão no imaginário, se revela incompatível com a racionalidade da ética do Direito no qual foi estabelecida. Na publicidade o personagem se confunde com a pessoa, mas dela tem que viver separada.

A ética do contrato de publicidade é a ética do capitalismo, onde o profissional não se confunde com o profissional contratado; o jurista não se confunde com o advogado; o jornalista não se confunde com o profissional do jornalismo; o bebedor de uma antiga cerveja, que dá dor de cabeça, não se confunde com o propagandista de uma nova cerveja, que mudou sua fórmula. Mesmo que sejam no real a mesma pessoa. Isto porque, como atores sociais, representam diferentes papéis.

Um notável médico-cirurgião, que não paga impostos, pode continuar a ser um notável profissional. Um Juiz de Direito que tenha igual comportamento, por mais qualificado que seja, não deveria exercer a judicatura. Porque há funções nas quais, mais do que a preparação, se exige ética para seu desempenho. De um boêmio a ética que se exige é que seja boêmio. Se mudar perde a morena.

A contratação da capacidade trabalho, por tempo certo, sem que o trabalhador saiba o que vai fazer, implica hoje, também, na possibilidade de contratação da opinião, igualmente, por tempo certo.

Mas, como querer que o malandro se comporte como um pastor protestante, ou ainda, de acordo com a ética do capitalismo? Se fosse e pensasse como um pastor protestante ele seria contratado para alavancar a venda da cerveja? Que público a cervejaria queria conquistar: um público composto por exemplares donos e donas de casa, cumpridores de suas obrigações contratuais, ou um público boêmio? Como querer julgar o malandro por ele ser aquilo que o levou a ser contratado?

O mundo real foi absorvido pelo imaginário. O real é um vírus que ataca o virtual, tal como no filme Matrix.

O malandro foi pego na armadilha da sociedade do espetáculo; no paradoxo na contemporaneidade. É celebridade porque é malandro. Mas, porque é malandro querem condená-lo a deixar de ser célebre.

Zeca, bem vindo ao deserto do real.

 

Nota:

1 – Verso da música Camisa Listrada, de Assis Valente. “Vestiu uma camisa listrada e saiu por ai / Em vez de tomar chá com torradas / Ele bebeu parati”. O samba se tornou conhecido através da gravação feita por Carmem Miranda, no selo Odeon, em 1937. (MPB/14: 1970, contracapa).

 

Bibliografia:

Música Popular Brasileira n. 14. Assis Valente. Abril Cultural, 1970.

WEBER, Max. A ética protestante o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2002. 

 

Resumo:

Trata-se de uma breve reflexão que tem por tema questão estampada nas primeiras páginas da mídia no mês de março de 2004 e por inspiração o conhecido livro de Max Weber.  

 

* João Batista Damasceno é Professor da Faculdade de  Direito da UERJ e  Mestrando de Ciência Política da UFRJ. Ocupa o cargo de Juiz de Direito no TJ/RJ.

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