A ESQUERDA BRASILEIRA EM TEMPOS NEOLIBERAIS

 

Marcel de Almeida Freitas *

 

1. Introdução

 

Vivemos hoje sob a hegemonia do sistema capitalista e num mundo em que as possibilidades de transformação da ordem sócio-política se mostram bastante reduzidas e para muitos não há mais meios para se fazer qualquer transformação. Nesta perspectiva, a palavra transformação é, nos nossos dias, incompatível com o contexto sócio-político que experimentamos. O capitalismo se apresenta como a única alternativa viável para qualquer sociedade e para qualquer povo. A sociedade burguesa deve ser a base de qualquer sociedade que queira progredir, se desenvolver economicamente e, principalmente, que queira efetivar os ideais democráticos e as liberdades civis. Capitalismo passa a ser sinônimo de desenvolvimento, progresso, democracia e liberdade. Para muitos, só ele pode fazer girar tudo de forma eficiente.

Ao lado dessa hegemonia capitalista, o que percebemos é que o mundo hoje, é um mundo cheio de contradições e conflitos, principalmente contrastes de natureza social. O planeta se divide cada vez mais, em ricos e pobres, em desenvolvimento e subdesenvolvimento. Não há como negar o desenvolvimento econômico, os avanços tecnológicos, o progresso científico e a modernização de uma parte do mundo. Mas, por outro lado, não há como negar as desigualdades sociais, as injustiças, a miséria, a fome e o subdesenvolvimento que está presente numa outra parte do mundo, muito maior do que a primeira. Assim, estamos num mundo sob a égide capitalista que se caracteriza por duas esferas contrastantes. Uma esfera é a da modernização e do desenvolvimento, a outra é da desigualdade e do subdesenvolvimento, que é a esfera onde está a maioria da população.

É importante ressaltar a origem dessa conjuntura sócio-política e o que foi responsável por essa hegemonia do capitalismo nos dias atuais. Sem dúvida, o desmoronamento da ex-URSS e a derrocada dos regimes socialistas do Leste Europeu foram os principais fatores que determinaram para que o mundo chegasse à atual conjuntura. É evidente que o capitalismo não chegaria à posição que chegou hoje se o socialismo não tivesse dado a sua contribuição de forma decisiva. Não nos cabe aqui discutir quais os fatores que levaram a essa derrocada, nem se esses erros e defeitos foram do socialismo em si, enquanto doutrina, ou se foram dos governos comunistas que dirigiram tais sistemas. O importante é percebermos que essa derrocada e esse desmoronamento foram primordiais para a ascensão capitalista hoje.

É dentro do presente contexto, de ascensão capitalista e fracasso socialista e do desaparecimento da bipolaridade mundial, que surge uma grande e importante questão, que pode ser colocada da seguinte maneira: será que o desmoronamento da ex-URSS e a derrocada dos regimes socialistas do Leste Europeu teriam estabelecido a impossibilidade de se propor alternativas à sociedade capitalistas? E a partir desse quadro, não haveria mais sentido falar de esquerda e direita no mundo atual já que a esquerda se propunha de certas formas, a contestar o capitalismo? Poderíamos afirmar de forma enfática, como Blackburn (1993), que esses acontecimentos implicaram no ‘fim da história’?

Todavia, uma coisa é o sentido dos termos esquerda e direita, ele se alterar em face de tais transformações, outra é esse sentido desaparecer. A ascensão capitalista e a derrocada da antiga URSS e dos regimes socialistas não são suficientes para se afirmar que os termos esquerda e direita estejam ultrapassados e não tenham mais significação. A dicotomia esquerda-direita vai além da bipolaridade capitalismo-socialismo, que orientou toda a ordem política mundial, durante anos. Não podemos dizer que o fim dessa bipolaridade represente o fim da dicotomia esquerda-direita, pois os princípios típicos de esquerda como a igualdade e a justiça social, não acabam com o fim da bipolaridade. O fim dos regimes socialistas pode representar a derrocada de uma via que possibilitava a realização desses ideais, mas não que há uma única via.

Diante disso, é mister frisar que o que define realmente a dicotomia esquerda-direita, não é tanto a antiga bipolaridade capitalismo-socialismo, mas é fundamentalmente a contraposição mercado versus justiça social. É essa contraposição o elemento primordial para pensar em esquerda e direita, principalmente nos dias de hoje, pois, atualmente essa contraposição se mostra não só presente, mas fundamental para a análise do cenário político brasileiro. Quanto a essa questão, Emir Sader escreve:

"Nessas condições, nunca como hoje a contraposição mercado x justiça social foi tão essencial. Jamais esta contradição cruzou tanto nossas sociedades desde os 30 milhões de desempregados do próprio hemisfério norte, junto à discriminação e segregação de suas dezenas de milhões de imigrantes, até as grandes maiorias do hemisfério sul, vivendo em sociedades cada vez mais apartadas" (Sader, 1995:17).

 

É dentro desse contexto sócio-político que compreendemos a dicotomia esquerda-direita no Brasil, procurando ressaltar o novo sentido que essa dicotomia tem atualmente. Para isso, é necessário atualizar a contraposição mercado versus justiça social e conseqüentemente, fazendo isso, estaremos atualizando o próprio sentido dos termos esquerda e direita. Por fim, ao reciclar o significado dos termos esquerda e direita, apontaremos para a possibilidade de surgimento de uma nova esquerda.

2. Conceitos de Esquerda e Direita

Para fazer uma sólida análise da dicotomia esquerda-direita e para que se possa entender bem o sentido destes conceitos hoje, se faz necessário conceituar, minimamente, os próprios termos esquerda e direita, verificando o significado político que tiveram e, principalmente, averiguando como estes termos estiveram presentes em grandes acontecimentos históricos.

Os dois termos simbolizam localizações geográficas que se opõem uma a outra. Os termos ganharam significado estritamente político, inicialmente, na Revolução Francesa. Durante a Assembléia Constituinte, aqueles que apoiavam e que estavam a favor do antigo regime ficavam originalmente, do lado direito, por outro lado, aqueles que defendiam a nova ordem social e política se sentavam do lado esquerdo. Isso significa que os conservadores, que pretendiam manter o regime anterior, se agrupavam à direita no parlamento, os defensores da mudança se agrupavam à esquerda.

A partir dessa distinção básica, as concepções esquerda e direita adquirem significado fundamentalmente político. Esquerda passou a designar aquele conjunto de forças que luta, essencialmente, por transformações numa determinada ordem social e política, transformações que resultem na instauração de uma nova ordem, ou transformações que resultem na reformulação da ordem vigente. Mesmo que o teor e o grau das mudanças possam variar, de acordo com uma esquerda mais ou menos ‘radical’, o que está presente em qualquer esquerda é o caráter contestatório assumido.

A direita já seria o contrário disso. Direita passou a designar, no âmbito político, aquelas forças favoráveis à manutenção de uma ordem social e política. A direita se preocupa, basicamente, em conservar e não alterar um sistema que está dado. Isso pelo fato de que a manutenção de um sistema, tal como ele foi instaurado e tal como ele se apresenta, é amplamente favorável aos interesses econômicos, sociais e políticos daqueles que compõem as forças de direita. Para a direita não é vantagem alterar o sistema, mas sim preservá-lo.

Analisando as noções ‘esquerda’ e ‘direita’ poderíamos identificar a direita com aquele conjunto de forças políticas interessadas em manter o sistema atual vigente, que é o capitalista. A esquerda seria identificada com aqueles que se propõem a lutar por mudanças no sistema capitalista, seja no sentido de reformulá-lo ou seja no sentido de superá-lo e instituir um outro sistema. Dessa forma, as pessoas ou partidos que lutam para implementar mudanças e até pela superação do sistema capitalista, constituem a esquerda. Quanto a essa diferenciação, podemos colocar que

"Assim, hoje a direita se compõe dos conservadores daqueles que se interessam pela reprodução e manutenção do sistema vigente, o capitalismo, e a esquerda se caracteriza por integrar aqueles que desejam a evolução e a superação de tal sistema" (Sader, 1995:21).

 

A contraposição mercado versus justiça social que é fundamental para entendermos a díade esquerda-direita no Brasil, e que sempre faz parte dos cenários políticos em todo o mundo, principalmente no tocante às lutas políticas entre esquerda e direita, tem o ponto de origem na própria Revolução Francesa. Isso pelo fato de propor a implementação de ideais que se mostravam bastante contraditórios, o que permitiu uma série de críticas à efetivação dos ideais por completo. Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade se mostravam contraditórios porque a efetivação de um, implicaria a negação do outro, de modo que não haveria como esses planos se concretizarem conjuntamente. Garantir a liberdade significa garantir o direito de propriedade e a liberdade de mercado, instituindo relações econômicas de mercado, o que por sua vez, entrava em choque com a realização da plena igualdade.

Essa contradição existente entre os ideais da Revolução Francesa proporcionou críticas quanto ao rumo que o processo revolucionário estava tomando, e essas críticas eram dirigidas, principalmente, por parte daqueles que colocavam a igualdade em primeiro lugar. Os críticos da Revolução Francesa começavam a delinear o que seria a esquerda e o que ela representaria posteriormente como força política. Além disso, a contraposição mercado versus justiça social emergia no cenário político mundial como um divisor de águas no que se refere à divisão entre as várias forças políticas e a luta que elas passariam a travar a partir da Revolução Francesa. Tal contraposição seria o ponto de referência para o posterior enfrentamento entre as forças de esquerda e de direita.

Na verdade, todas as críticas à Revolução Francesa e seus ideais tinham fundamento, pois a realização da liberdade tal como era entendida, em especial a econômica, resultava na não realização da igualdade. Rousseau, muito antes, já ressaltava essa visão. Segundo ele, a propriedade privada era a base da desigualdade entre os indivíduos, visto que a partir do momento em que alguns passam a donos, proprietários e outros não, os indivíduos se tornam também desiguais. Emir Sader deixa claro esse pensamento de Rousseau, quando destaca:

"A tradição de esquerda partiu justamente dessa crítica: antes mesmo da Revolução Francesa, um de seus fomentadores ideológicos, Rousseau afirmava que a desigualdade humana tinha suas origens na propriedade privada, ao dividir os homens em proprietários e não-proprietários, isto é, em poderosos e fracos, em governantes e governados" (Sader, 1995:23).

 

A partir dessas críticas e dos antagonismos provocados pela Revolução Francesa, aquelas forças que atuaram juntas contra o antigo regime começaram a se dividir e, principalmente, começaram a optar por caminhos diferentes e antagônicos e, diríamos, um caminho mais a ‘esquerda’ e outro mais a ‘direita’. Aqueles que pretendiam seguir um caminho à direita defendiam o livre mercado, a propriedade privada, uma economia auto-regulada, enfim, a liberdade econômica estava em primeiro plano e deveria se realizar mesmo que isso afetasse a igualdade. Com esse caminho se identificavam basicamente a alta burguesia industrial e comercial e alguns setores médios da burguesia. Por outro lado, aqueles que pretendiam seguir um caminho à esquerda advogavam o interesse público, o bem coletivo e a justiça social. Para tais pessoas a igualdade estava acima da liberdade econômica. Nessa linha estavam, principalmente, a pequena burguesia varejista e os setores populares.

Ao longo do tempo o movimento político de esquerda veio se desenvolvendo e fazendo adeptos. O cenário político mundial, após a Revolução Francesa passaria por uma redefinição devido aos novos atores que estavam atuando na arena política e também em razão da nova agenda política. Simultaneamente, a esquerda ia se repartindo em vários grupos. Embora esses grupos fossem orientados por diferentes ideologias e utilizassem estratégias de luta diferentes, eles se assemelhavam num ponto básico, ou seja, eram forças de esquerda, grupos contestadores da ordem capitalista vigente.

Essas coletividades tinham uma tendência anticapitalista, mas eram orientadas por várias correntes ideológicas, principalmente as correntes anarquistas, reformistas e comunistas em suas diferentes variações. Como se sabe, a abordagem que mais se expandiu mundialmente foi a comunista. Ela não só foi importante para a evolução das várias facções de esquerda como foi o principal marco de referência para as lutas de esquerda em todo o mundo. Esta corrente entrou no cenário político em 1848 com O Manifesto Comunista de Marx e Engels (1988) e, a partir daí, foi a grande corrente ideológica de contestação do sistema capitalista. Foi nesta vertente que se aglutinaram as principais propostas de esquerda e por muito tempo representaria a principal possibilidade de superação do capitalismo.

A divisão que foi se instaurando na esquerda em nível global não dizia respeito somente às correntes ideológicas que a orientavam, desde a anarquista até a comunista. Essa divisão se estendia a outro âmbito, isto é, o âmbito da trajetória, da melhor via a ser escolhida pelos partidos de esquerda para que se pudesse efetivar a superação do capitalismo e, conseqüentemente, instaurar uma nova ordem. A escolha da via a ser percorrida provocou, então, uma divisão nos partidos e organizações de esquerda. Havia duas grandes opções: transformações graduais e contínuas do capitalismo, até se chegar a uma nova sociedade, ou ruptura total com o capitalismo e a construção imediata da nova sociedade.

A primeira via era caracterizada como de longo prazo, o sistema capitalista seria eliminado aos poucos até chegar a sua totalidade e, por outro lado, o socialismo seria implantado gradualmente. Nesse caso, o que teríamos seria uma transição reformista. Os adversários dessa via colocavam que, jamais, uma sociedade socialista poderia ser implantada dessa maneira, porque as forças conservadoras e os interesses capitalistas e burgueses não permitiriam que essas transformações graduais se efetivassem e, possivelmente, utilizariam todos os meios repressivos para impedir essas alterações. Para os adversários dessa alternativa não se destrói o sistema capitalista com reformas.

A segunda via é a revolucionária. Acredita que a implantação da sociedade socialista só é possível por meio de uma revolução, só ela consegue destruir as estruturas capitalistas e que é estritamente necessário romper com o Estado capitalista e com a sociedade burguesa para que existam condições de instaurar uma nova ordem. Para os defensores desse caminho, participar das instituições políticas burguesas e atuar dentro da legalidade democrática capitalista significaria dar apoio ao sistema capitalista.

Essas duas vias de ação, que caracterizavam dois caminhos alternativos para a construção de uma nova sociedade e para a superação do capitalismo, possibilitaram uma divisão entre as forças de esquerda em todo o mundo. Parte da esquerda optou pelo primeiro caminho e outra parte optou pelo segundo. Ao mesmo tempo em que a esquerda se dividia entre essas duas posições uma grande questão emergia: qual seria a melhor via, a mais eficaz para derrubar o capitalismo? Quanto a essa divisão, Sader (1995) frisa que grande parte dos dirigentes socialistas alemães optou pelo caminho das transformações graduais e institucionais, enquanto o nascente movimento revolucionário russo escolheu a via da insurreição.

A partir dessa divisão mundial que ia se estendendo entre as forças de esquerda, o movimento político considerado de esquerda passou a se constituir de uma série de subgrupos, de facções e ideologias que não atuavam dentro de uma mesma linha e nem seguiam uma mesma trajetória, mas que (ainda) buscavam um objetivo semelhante. Tal clivagem fez com que o movimento de esquerda fosse separado entre revolucionários e reformistas, internacionalistas e nacionalistas e entre comunistas e social- democratas.

Assim, Entender a dicotomia esquerda-direita no presente, não só no Brasil, mas em qualquer parte do mundo, requer uma avaliação do atual quadro político e social em que vivemos. Não há como analisar a divisão entre forças de esquerda e direita que prevalece em todo o mundo, se não levarmos em conta que o cenário político hoje, é novo.

Ser de esquerda ou de direita no início do milênio tem uma conotação diversa da que anteriormente caracterizava esses dois termos. Com o desmoronamento da antiga URSS e a derrocada dos regimes comunistas do Leste Europeu uma nova conjuntura sócio-política emergiu, não mais caracterizado pela bipolaridade mundial, pela divisão do mundo em dois grandes líberos, o capitalista e o socialista. Estamos hoje dentro de um contexto dominado pelo capitalismo e, que por isso, obriga-nos a pensar a dicotomia esquerda-direita de uma forma diferente, sem entretanto chegarmos ao ponto de dizer, como muitos, que não há mais sentido nem necessidade em falar de esquerda e direita.

Sublinhamos que o fim da bipolaridade mundial entre capitalismo e socialismo não significa o fim da contraposição esquerda-direita, mas significa que tal contraposição se expressa de uma forma diferente e nova. É importante entendermos que a contraposição mercado versus justiça social, que é o aspecto fundamental e elemento primordial para se analisar a dicotomia esquerda-direita, continua efetivamente presente nessa nova conjuntura sócio-política brasileira. E mais do que isso, tal contraposição se apresenta hoje, no cenário político brasileiro, de maneira extremamente forte.

A nova situação sócio-política brasileira expressa o fim da bipolaridade capitalismo-socialismo mas não o fim da contraposição mercado versus justiça social, que é o que, na verdade, sempre marcou a divisão entre esquerda e direita em todo o mundo e ao longo da história. Já na Revolução Francesa essa contraposição marcaria ou definiria toda a divisão de forças políticas. Aqueles que privilegiavam a igualdade em detrimento da liberdade (principalmente a econômica), passariam a lutar pela justiça social, já aqueles que privilegiavam a liberdade em detrimento da igualdade, tenderiam a defender o mercado.

Sem dúvida que a bipolaridade entre capitalismo e socialismo expressava a contraposição mercado versus justiça social, já que colocava em enfrentamento um sistema sócio-econômico que caracterizava a hegemonia do mercado e outro que caracterizava a hegemonia da justiça social. Mas o fato de não haver mais a hegemonia da justiça social não significa que tal contraposição tenha acabada. O que acontece é que essa contraposição, hoje, se encerra ou se apresenta de uma maneira diferente, pois, como foi dito antes, vivemos numa conjuntura sócio-política nova.

Dessa forma, para analisar a dualidade esquerda-direita, nesse novo contexto, há de ressaltar que essa recente conjuntura sócio-política é caracterizada principalmente, pela emergência e ascensão do neoliberalismo. É internamente nesse contexto de ascensão do neoliberalismo que devemos situar a bipolaridade esquerda-direita. É também, a partir do neoliberalismo que vamos conseguir atualizar o significado dos dois termos.

O neoliberalismo é o ponto chave para se entender, no atual quadro político, a divisão de forças entre esquerda e direita. É através da ascensão neoliberal que se pode perceber a redefinição da divisão de forças que hoje ocorre no país. A própria interpretação da contraposição mercado e justiça social, que é o elemento primordial que definiu historicamente e ainda define a dicotomia esquerda-direita, não pode ser desenvolvida sem que tenhamos como referência o neoliberalismo. A contraposição ou a defesa da doutrina neoliberal são os aspectos principais que hoje definem e orientam a divisão das forças políticas. Falar em esquerda e direita na atual conjuntura política requer falar em política neoliberal. Não há como analisar o pensamento político atual, seja ele no campo da esquerda ou no campo da direita, sem menção ao neoliberalismo.

A contraposição mercado versus justiça social, que ao longo da história a partir da Revolução Francesa definiu a dicotomia esquerda-direita, em qualquer lugar do mundo, se expressa, nessa nova conjuntura sócio-política, na contraposição neoliberalismo versus anti-neoliberalismo, e não mais na bipolaridade capitalismo e socialismo. O fim da bipolaridade cedeu lugar a uma nova forma de expressão da contraposição que é a base da discussão entre esquerda e direita na arena política, ou seja, a contraposição mercado versus justiça social.

Dito isso, pode-se ressaltar que o pensamento, a atuação e o discurso político de esquerda, nesse novo contexto sócio-político, se reflete ou se exprime na contraposição ao neoliberalismo. O neoliberalismo é hoje o grande divisor de águas entre forças de esquerda e de direita, e apresenta uma séria ameaça à justiça social. Essa doutrina representa o privilégio do mercado em detrimento da justiça social, apontando para um caminho de desenvolvimento econômico e de modernização capitalista que se efetiva as expensas de injustiças sociais e de grandes desigualdades.

O privilégio e a ênfase que a doutrina neoliberal fornece ao mercado em detrimento da justiça social não é algo difícil de se perceber, pois fica bastante claro nos seus próprios fundamentos que mostram as raízes do neoliberalismo, e podemos perceber que em nenhum aspecto há preocupação em se defender a distributividade social, mas pelo contrário, o objetivo é destruir qualquer idéia que se relacione à justiça social.

Presentemente o neoliberalismo é o mais novo figurino da direita mundial e, principalmente, da direita dos países do terceiro mundo. É a mais nova bandeira de oposição dos segmentos conservadores, daquela parcela reduzida que compõe a elite econômica e política da sociedade brasileira e que tenta, nesse atual contexto sócio-político, maximizar cada vez mais seus interesses econômicos, não importando se isso vai acarretar o aumento das desigualdades sociais no país. Quanto a esse novo modelo assumido pela direita brasileira, similar ao “menenmismo” argentino, ressalte-se que:

"Durante os governos Sarney, Collor e Itamar Franco, o poder foi assumindo uma nova cara no Brasil. A partir de 1989, o último ano do governo Sarney, a ideologia predominante no Brasil passou a ser o neoliberalismo. Este é um figurino novo para a direita brasileira, que já havia adotado vários modelos" (Sader, 1995:37).

 

Dessa forma, devemos entender que ao longo da história política brasileira, vários figurinos caracterizaram a ação política dos setores conservadores da nossa sociedade. Na verdade, todos esses figurinos tentavam encobrir o objetivo maior, ou seja: a manutenção da ordem social e política vigente e a hegemonia do mercado sobre a igualdade social. Em última instância, o que setores de direita pretendiam era evitar que o pólo da justiça social prevalecesse sobre o pólo de mercado.

A doutrina de segurança nacional, o figurino típico da direita brasileira nos anos 1960, acabou resultando no golpe militar de 64. Esse golpe decretava a derrubada de qualquer tentativa de se implementar as reformas de base, que seriam reformas que privilegiariam a justiça social:

"A partir da ditadura militar, a direita assumiu uma cara que estava gestando desde o final dos anos 40: a doutrina de segurança nacional, para a qual os objetivos fundamentais do país deviam estar no binômio desenvolvimento e segurança. A direita reivindicava agora o desenvolvimento industrial e até mesmo, a atividade estatal na economia, associada ao capital estrangeiro" (Sader, 1995:186).

 

Mas essa não foi a única face assumida pela direita ao longo da história. Vários outros artifícios foram colocados em cena e expressaram os interesses de toda a direita brasileira. O importante é destacar que agora o neoliberalismo representa a sua mais nova faceta. É um projeto de modernização e de desenvolvimento que se caracteriza pela hegemonia e pela ênfase no mercado e que apresenta fundamentos que desconsideram a idéia de justiça social. O neoliberalismo carrega consigo um caráter exclusivista e discriminatório. É uma via de modernização do sistema capitalista na qual as vantagens propiciadas serão exclusivas de parcelas da sociedade, principalmente dos segmentos ligados ao capital privado, financeiro e monopolista. Portanto, é uma via de modernização que se contrapõe a propostas de inclusão social e que só é possível se concretizar às custas do aumento das desigualdades sociais.

É importante ressaltar também que o próprio neoliberalismo se reveste de um certo ‘ar’ de modernização bastante específico e que é assaz criticável. É uma idéia associável ao pensamento político da direita brasileira, na medida em que negligencia qualquer dimensão social da modernização. A modernização bem como o desenvolvimento tratado na concepção neoliberal se refere, basicamente, à dimensão meramente econômica. Não que a dimensão econômica não seja importante (é importante desde que seja um desenvolvimento econômico que alcance os diversos setores da sociedade), o problema é que a modernização é vista apenas financeiramente, ou seja, é pensada distanciando-se o progresso econômico de políticas sociais. SADER ressalta bem a concepção de modernidade defendida pela doutrina neoliberal:

"... é concebida apenas na sua dimensão econômica. Mesmo que fosse assim, os países que mais se desenvolveram nas últimas décadas - Japão, Alemanha, Coréia do Sul - não o fizeram por essa via. E a verdadeira modernidade significa a superação do atraso, a implantação dos direitos de cidadania para todos, e tem assim uma inerente dimensão ética, espírito público e preocupação social" (Sader, 1995:192).

 

A passagem acima, além de mostrar a idéia de modernização inerente ao neoliberalismo, tenta também desmistificar certos pressupostos que estão inseridos no caminho neoliberal. O principal deles é o que se refere ao suposto caráter inevitável do neoliberalismo. Aqueles que o defendem, na verdade, procuram mostrar que não defendem uma alternativa possível, mas que defendem o único caminho, a única e inevitável alternativa. Seus partidários tentam mostrar que não se tem outra opção, a via neoliberal seria, hoje, a ordem natural das coisas. Mas o que podemos notar, na atual conjuntura política e social, é que existem outras saídas. Ressaltamos que países como Japão e Alemanha adotam uma via diferente do projeto neoliberal e obtêm resultados satisfatórios.

Há que se destacar que vários motivos levam a esquerda brasileira ainda a se contrapor ao neoliberalismo. Dentre estes, ressaltamos:

1º) As políticas neoliberais representam uma grande ameaça de eliminação dos direitos sociais conquistados e de liquidação das grandes conquistas coletivas que se efetivaram até hoje e que ameaçariam todos os avanços e os progressos em termos de justiça social que se concretizaram no país;

2º) Por outro lado, quando não torna impossível, o neoliberalismo torna difícil qualquer tentativa ou possibilidade de implementação de reformas sociais no sistema capitalista. Esses seriam duas grandes razões que levam a esquerda brasileira a se opor e a lutar contra o neoliberalismo, expressando seu caráter totalmente antipopular.

Antes de passar para a análise desses fundamentos urge frisar que o neoliberalismo surgiu como alternativa à crise que se verificou no chamado Estado do bem-estar social. Na verdade, o neoliberalismo representou uma reação de direita a esse Estado. O Estado de bem-estar social se caracterizou pela intervenção na economia buscando um crescimento mais prolongado, por grandes investimentos estatais no setor econômico, pela concessão de créditos e subvenções fiscais estimulando o desenvolvimento e, mormente, pela execução de políticas sociais abrangentes. Era um Estado que procurava minimizar as desigualdades sociais, assumindo uma função social e procurando consolidar um conjunto de direitos sociais primordiais no sentido de amenizar as graves conseqüências sociais provocadas pelo capitalismo. Enfim, propiciou progressos em termos de justiça social, embora tenha deixado falhas e lacunas em alguns aspectos, como por exemplo, uma pesada máquina burocrática.

Contrário a esse tipo de sistema surgiu a ideologia neoliberal, que viria propor um novo modelo de estado, alicerçado em princípios bastante diferentes. O que o neoliberalismo propõe é um Estado desvinculado de qualquer papel social, descompromissado com as questões populares, o que significa a desintegração da dimensão social da cidadania, cuja efetivação e consolidação se deu no Estado do bem-estar social. Se a dimensão social da cidadania é o que caracteriza, em grande parte, o Estado do bem-estar, o neoliberalismo enquanto reação a esse estado só pode almejar a sua deterioração.

Por mais falhas que o Estado do bem-estar social possa ter apresentado (alvo de críticas, principalmente daqueles setores conservadores e ligados ao grande capital privado), ele aumentou os níveis de conforto material das classes trabalhadoras, possibilitando grandes avanços na área social. É importante fazer tais referências históricas quanto ao processo de formação e constituição da doutrina neoliberal para entendermos porque, atualmente, a esquerda brasileira se coloca em posição de enfrentamento a esse projeto.

É mister destacar três pressupostos básicos que orientam e estruturam as políticas neoliberais. O primeiro fundamento do neoliberalismo é a desregulamentação da economia, o que é o contrário do que acontecia no Estado do bem-estar. Segundo a doutrina neoliberal, a desregulamentação permitiria a livre circulação do capital e os recursos da economia seriam repartidos pelas regras do próprio mercado de forma equilibrada para os diversos setores da sociedade. Na verdade, o que, historicamente, aconteceu foi que quanto mais a economia esteve desregulamentada, mais se produziram desequilíbrios econômicos entre os seus diversos setores.

Como é sabido, o mercado nunca se mostrou capaz de repartir os recursos de uma maneira equilibrada, que beneficie todos os setores da sociedade. Além do mais, numa economia como a brasileira, caracterizada por grandes monopólios, oligopólios, cartéis e amplamente dominada pelo grande capital privado internacionalizado, a desregulamentação da economia torna o mercado mais desigual do que ele já é e muito mais excludente. A competição ficaria fortemente ameaçada e, possivelmente, sem a intervenção estatal, o mercado seria dominado em pouco tempo pelos cartéis nacionais e estrangeiros que têm interesses convergentes.

Talvez a desregulamentação possa até gerar desenvolvimento econômico, mas isso nos remete a uma pergunta crucial: que tipo de desenvolvimento se produzirá? Será um progresso amplo, global, que trará benefícios aos diversos setores da sociedade e que favorecerá a distribuição de renda no país como seria ideal, ou será um desenvolvimento do tipo do milagre econômico nos anos 1970, restritivo, desigual, que trouxe benefícios para determinadas camadas sociais e que teve como base a concentração de renda?

Outro pilar básico do neoliberalismo são os programas de privatização. Tais estão inseridas na desregulamentação da economia e a complementam. Esses programas são importantes para diminuir, gradualmente, a presença do Estado na esfera econômica. A redução significativa do setor público é importante na doutrina neoliberal para propiciar a expansão do setor privado, que é o grande objetivo do neoliberalismo. Busca-se, também, reduzir a presença do Estado em outras áreas, com as sociais, abrindo caminho para que o grande capital privado ocupe essas esferas também. Dessa forma, fica garantida a expansão do setor privado. 

Concretamente, o objetivo maior dessas privatizações é repassar ou transferir para o setor privado, de forma gradual, as áreas tradicionalmente de atuação maciça do setor público, como as áreas de educação, saúde, habitação, telecomunicações até possibilitar amplo controle do capital privado sobre as mesmas. Embora os programas de privatizações busquem, em primeiro lugar, reduzir a atuação do setor público sobre as áreas sociais (e não só sobre essas áreas, todas as outras) e, simultaneamente, aumentar a presença do grande capital privado, a idéia central é eliminar qualquer participação ou atuação do Estado em tais áreas.

Ao se instituir, através das privatizações, esse processo de substituição da presença efetiva do Estado pelo controle do setor privado nas áreas sociais, estará possibilitada a expansão do grande capital privado e, com isso, o desenvolvimento capitalista, mas com graves conseqüências sociais. Há também que se destacar o perigo que esses programas representam para os direitos sociais, já que tais direitos dependem, diretamente, de um setor público eficiente e fortalecido.

Outro fundamento básico do neoliberalismo é o corte do déficit público. Isso significa, precisamente, a redução significativa dos gastos públicos através da execução de uma política de contenção das despesas do Estado. Essa contenção das despesas estatais se direciona, especialmente, para os gastos com pessoal, buscando uma redução na folha de pagamentos, e para as políticas sociais, o que seria altamente prejudicial para as camadas mais populares que dependem, em grande medida, dessas políticas. Para a doutrina neoliberal, os gastos com pessoal e com as políticas sociais geram inflação e descontrolam as contas públicas, logo, devem ser eliminados ou pelo menos ser drasticamente reduzidos. Portanto, podemos inferir que:

"O diagnóstico neoliberal considera que a inflação e o descontrole dos gastos estatais viriam da folha salarial do Estado e de seus gastos em educação, saúde, habitação, saneamento básico, considerados populistas. Uma parte destes seria absorvida pelo mercado, na medida em que as pessoas dispusessem de recursos para se associar a planos privados de saúde ou para colocar seus filhos em escolas particulares" (Sader, 1995:189).

 

Com essa política de contenção de gastos, ficam evidentes as conseqüências que ela acarretaria e que seriam sentidas, como já foi dito, principalmente pelos setores médios e baixos da sociedade. Além do grande desemprego que tais medidas fatalmente provocariam, iriam ferir frontalmente a democracia social ou pelo menos tudo aquilo que foi conquistado no Brasil, em termos de democracia social, na medida em que liquida com substanciais conquistas sociais.

Vale ressaltar que sem um setor público forte e sem investimentos maciços do Estado nas áreas sociais não é possível atender às demandas sociais, o que implica numa grande ameaça aos direitos humanos e às conquistas sociais. Além disso, tal política de contenção dos gastos públicos ameaça também todo o conjunto de garantias e direitos trabalhistas, já que grande parte dessas prerrogativas depende da atuação do Estado, principalmente no que se refere à questão da Previdência Social. De todos os trabalhadores que certamente seriam prejudicados com a contenção dos gastos públicos, sem dúvida, os mais afetados seriam os funcionários públicos, já que todos os benefícios e garantias que estes adquiriram dependem, diretamente, do tesouro estatal. Eles seriam os primeiros a sentir os efeitos da execução de tal política.

Uma análise bastante sucinta da via de modernização e desenvolvimento que vem sendo defendida pela esquerda brasileira mostra que esta não chega a ter um formato bem definido. Tal caminho nasce como uma alternativa neoliberal e se contrapõe aos fundamentos do neoliberalismo. Essa via vem sendo chamada pela própria esquerda e pelos seus principais partidos que a compõem como a via democrático-popular ou o projeto democrático-popular.

O caminho democrático-popular busca contestar os alicerces do neoliberalismo e propor um projeto de modernização antagônico àquele proposto pela corrente neoliberal. São projetos que culminam em objetivos finais amplamente diferentes e opostos entre si. Há que se ressaltar, como já foi lembrado em algumas passagens dessa exposição, que a própria noção de modernização defendida pela corrente democrático-popular é diferente daquela defendida pela corrente neoliberal, ou seja, a ênfase da modernização, segundo o neoliberalismo, é a dimensão econômica e não mais do que isso. E é esse aspecto que a vertente democrático-popular contesta. Para seus defensores, e aqui se coloca a esquerda brasileira, a ênfase da modernização deve ser a dimensão social.

Na verdade, o que ocorre é um problema de conceituação da palavra modernização. Não se consegue entender o que venha a ser essa tão defendida modernização segundo o neoliberalismo. O que acontece, concretamente, é a defesa de um certo padrão que não significa, necessariamente, que ele seja melhor, ou pelo menos, o melhor para a grande parte da população brasileira. O que o neoliberalismo tenta fazer é obscurecer, encobrir essas questões e mostrar que as suas propostas representam a modernização e que tudo o que se contrapõe a ela é retrógrado, arcaico, obsoleto. Isso significa atrelar a noção de modernização a uma dimensão meramente econômica.

O que o ‘projeto’ democrático-popular, que é a principal bandeira da atual esquerda brasileira, propõe é, justamente, defender a dimensão social da modernização. Isso se realiza na defesa e manutenção dos direitos sociais e de todo um conjunto de benefícios, garantias e direitos trabalhistas, na manutenção e consolidação da dimensão coletiva da cidadania e do aparato social do Estado, na consolidação e efetivação das políticas sociais, na ratificação do papel social do Estado, enfim, na reafirmação e dos importantes avanços e progressos, em termos de justiça social, que se efetivaram no país até o momento, que favoreceu o aumento significativo nos níveis de bem estar material das classes trabalhadoras e das camadas humildes.

O projeto neoliberal, ao contrário do democrático-popular, representa uma séria ameaça a tudo isso que foi colocado. Pelo fato de privilegiar a dimensão econômica da modernização e de pleitear um desenvolvimento econômico condenável, através da desregulamentação da economia. Mas é através de seus fundamentos básicos que essa ameaça se consolida. A execução desses fundamentos representa grande possibilidade de liquidação das grandes conquistas sociais, da própria extinção da dimensão social da cidadania, enfim, representa grave ameaça de destruição daquilo que foi conquistado em termos de democracia social. Se isso se concretiza, acarretaria um aumento assustador das desigualdades sociais a níveis alarmantes.

O projeto democrático-popular surge não somente para se contrapor ao neoliberalismo e defender os direitos sociais e tudo aquilo que foi conquistado no país em termos de democracia social, mas surge também como via de modernização que busca ampliar os direitos sociais, a obtenção de novas conquistas e de novos progressos em termos de justiça social, a ampliação e intensificação das políticas sociais, enfim, procura construir uma sociedade capitalista mais humana, menos desigual e menos injusta socialmente.

 

3. Uma Nova Esquerda

O fim da bipolaridade mundial entre capitalismo e socialismo provocou uma série de conseqüências no âmbito político internacional. O fenômeno da crise do socialismo e da desintegração dos regimes comunistas no Leste Europeu levou, sem dúvida nenhuma, a uma nova releitura dos termos esquerda e direita como vimos tentando demonstrar ao longo desse artigo.

No entanto, o que ressaltamos é que essa nova releitura não implicou na falta de sentido dos termos citados, não significou que a dicotomia esquerda-direita tinha desaparecido do cenário político mundial e, em especial do cenário político brasileiro. Para que isso tivesse ocorrido, seria necessário demonstrar que os discursos e os pensamentos políticos das várias correntes ideológicas estariam apontando, se não para um mesmo caminho, ao menos para um caminho semelhante. E não é isso que ocorre, hoje, no Brasil.

É claro que não se trata, no momento, de apontar uma rota alternativa ao capitalismo, ao modo de produção capitalista, até mesmo porque seria difícil convencer a sociedade brasileira que o ideal do socialismo ainda pode ter sucesso. A queda dos sistemas do Leste Europeu parece que, se não tornou impossível, pelo menos ampliou os obstáculos à realização desse ideal, obstáculos estes que já eram grandes.

A queda desses regimes do Leste Europeu e o solapamento da antiga URSS foi um fenômeno que alterou, radicalmente, a forma de expressão das lutas políticas entre esquerda e direita a nível mundial. O importante a ser considerado é que essas lutas ainda continuam se travando politicamente, embora dentro de um novo contexto, e os ideais de justiça social e de mercado é que estão sustentando tais lutas.

É dentro desse novo contexto, marcado principalmente pela emergência do neoliberalismo, que o pensamento político da esquerda brasileira está se desenvolvendo. Se não se trata, hoje, de apontar alternativas ao sistema capitalista, se trata, na atual conjuntura, de apontar um caminho de modernização para o sistema capitalista alternativo e diferente daquele proposto pelo neoliberalismo. E é exatamente isso que a esquerda brasileira, seja no âmbito de partidos políticos ou de movimentos populares, vem tentando implementar. E é também por isso que não se pode dizer que a dicotomia esquerda-direita desapareceu, que ela está extinta. O que percebemos hoje é que estão sendo apresentadas vias de modernização e de desenvolvimento para o sistema capitalista conflitantes e que se sustentam em princípios opostos.

Se não ocorre uma convergência entre as múltiplas forças políticas e se as vias de modernização e desenvolvimento apresentadas não apontam para um caminho semelhante, é porque as expressões esquerda e direita ainda continuam vigorando no cenário político brasileiro e, também, porque os ideais de justiça social e de mercado ainda permanecem. Prova disso é o fato da esquerda, se contrapor ao neoliberalismo, que representa uma saída de modernização que contempla o pólo do mercado, desconsiderando totalmente os ideais de justiça social.

O fato de ter emergido uma inovadora conjuntura sócio-política e da dicotomia esquerda-direita passar a ser expressar de uma nova forma e com ideais de justiça social e de mercado ganhando novo contorno, acarretaram um processo de reformulação e revisão do pensamento e do discurso político da esquerda nacional. A luta pelos ideais de justiça social, que sempre orientou a atuação da esquerda brasileira, não se expressa mais da mesma forma que se expressava antes da queda do socialismo. Na verdade, essa luta ganhou novo formato, o que não significa que a busca de uma sociedade mais justa e menos desigual tenha se tornado inviável. Essa busca continua por caminhos diferentes, caminhos que foram abertos com o fim da bipolaridade mundial, que deu lugar a um novo modo de expressão da contraposição mercado versus justiça social, que é a base fundante da dicotomia esquerda-direita.

Todas essas mudanças que ocorreram a nível mundial, isto é, o surgimento de uma nova conjuntura sócio-política e a nova moldura que ganhou a luta pela justiça social, acabaram implicando na formação e na emergência de uma nova esquerda brasileira. Uma esquerda que se mantém fiel aos ideais de eqüidade social, mas que adota novos percursos de luta e projetos diferentes daqueles adotados anteriormente. O caminho que se tem hoje para a implantação de uma sociedade mais humana e menos desigual é bastante diferente daquele que a esquerda brasileira acreditava antes da derrocada do comunismo.

A emergência dessa nova ordem esquerdista é um fenômeno importantíssimo para se entender, nos dias de hoje, a dicotomia esquerda-direita e resultou de um complicado processo de revisitação do pensamento político da esquerda não só no Brasil, como também em todo o mundo. O que essa revisão fez foi abrir novos horizontes para o duelo das forças políticas revitalizando o papel dessa esquerda que estava, de certa forma, confuso. Em realidade, o papel da esquerda nacional é ainda mais crucial do que em qualquer outro momento da história brasileira. Isso porque, atualmente, o mais importante não é tanto lutar para se obter direitos e progressos em termos de justiça social ou conquistar novos direitos, benefícios e garantias para as camadas mais baixas da sociedade (isso faria parte de um segundo momento). O mais importante agora é defender tudo aquilo que já foi conquistado no país, é garantir a manutenção das garantias e dos benefícios sociais e trabalhistas já adquiridos na área social, e que estão fortemente enfraquecidos pelo neoliberalismo.

Cabe a essa nova esquerda brasileira procurar atuar ativamente no cenário político e social no sentido de mobilizar a sociedade e, mormente, as camadas populares, alertando-as com relação aos objetivos pretendidos pela política neoliberal.  Para caracterizar melhor essa nova esquerda brasileira e, com isso, resumir um pouco de tudo o que foi exposto até agora nesse texto, gostaríamos de abordar três aspectos que expressam a formação e a emergência dessa nova esquerda. Esses aspectos servem também para contrapor a esquerda brasileira antes da derrocada dos regimes comunistas e a esquerda emergente após esses acontecimentos.

Um primeiro aspecto que chama atenção é o fato de que o marco de referência para a atuação, o discurso e o pensamento político das várias correntes ideológicas da miríade de segmentos sociais e organizações partidárias é o neoliberalismo e não mais o capitalismo, como acontecia antes de toda a derrocada dos regimes comunistas e da ex-URSS. Anteriormente, o que delimitava a divisão das correntes políticas entre esquerda e direita era o capitalismo. Enfim, a posição assumida por um partido ou por um grupo social era definida de acordo com sua relação com o capitalismo e esta poderia ser caracterizada pela luta em favor da consolidação do sistema capitalista ou caracterizada pela luta em favor da transformação e da superação do sistema capitalista.

Antes de passar ao segundo aspecto destacamos um ponto importante: por mais que o termo esquerda seja complexo, a idéia de esquerda que se tem nesse trabalho, antes da derrocada, é de um posicionamento que lutava para implementar transformações estruturais no sistema capitalista, transformações que culminassem na sua superação e que permitissem a instituição de uma nova ordem social e política. Dessa forma, esta conotação de esquerda não pode ser resumida à idéia de reformas sociais, embora isso tenha feito parte das lutas oposicionistas no Brasil.

O segundo aspecto que expressaria a emergência dessa nova esquerda brasileira é a maneira como ela se coloca hoje, no cenário político nacional. O comportamento da esquerda dentro dessa atual conjuntura sócio-política, se caracteriza, primeiramente, por uma postura defensiva e não ofensiva. A necessidade fundamental é defender os direitos, benefícios e garantias sócio-trabalhistas, que já se concretizavam e que se vêem amealhados, hoje, pelas políticas neoliberais. Há que se sublinhar que dentro dessa nova conjuntura toda a dimensão social da cidadania se encontra ameaçada e, dessa forma, a esquerda tem que se esforçar para garantir a sua manutenção.

Um terceiro aspecto que caracteriza essa nova esquerda brasileira é o fato de que a luta empenhada não se desenvolve nos mesmos moldes que se desenvolvia antes do fim da antiga URSS e dos governos do leste europeu. O objetivo maior de construção de uma sociedade menos desigual não é mais pensado pela esquerda brasileira da mesma maneira que era pensado quando a bipolaridade mundial era vigente. Na vigência da bipolaridade mundial havia por parte da esquerda grande aproximação com os ideais comunistas e socialistas, alguns setores e partidos de esquerda mais, outros menos. Mas, o fato é que existia tal aproximação e, de uma forma ou de outra, os ideais de justiça social estavam dentro daquele contexto, associados ao comunismo e ao socialismo.

O que fica claro antes da derrocada é que os ideais de justiça social se operacionalizaram mediante transformações estruturais no sistema capitalista, que acabariam levando à superação. Obviamente que setores, partidos e organizações que se diziam de esquerda no Brasil divergiam em relação muitos pontos. Alguns defendiam transformações processuais e de forma gradual, outros exigiam transformações radicais e imediatas, através de um processo revolucionário independente.

 

4. Considerações finais

Essa divisão que se efetivara na França, ainda naquela época, já mostrava a contraposição mercado versus eqüidade social, que é o aspecto fundamental ainda hoje, para entendermos a dicotomia esquerda-direita. De um lado, estavam aqueles que davam ênfase no mercado, do outro estavam aqueles que privilegiavam a justiça social. A partir dali, os termos esquerda e direita ganhariam solidez e passariam a fazer parte do cenário político mundial.

a nova esquerda brasileira, surgida após a derrocada da URSS, se particulariza por um relativo distanciamento em relação a esses ideais comunistas e socialistas. A aproximação que existia antes não existe mais, o que significa que os ideais de igualdade social não estão mais associados ao comunismo e ao socialismo, a não ser em alguns poucos grupos de esquerda que ainda retomam esses pilares. E é isso que peculiariza a nova esquerda brasileira.

O que se tem hoje é uma luta que não se caracteriza mais pela necessidade de destruição do sistema capitalista e de construção de uma nova sociedade. O ideal de justiça social não se expressa na implementação de transformações estruturais. Esse ideal se manifesta numa abrangente reformulação do sistema capitalista, na escolha de uma via de modernização e desenvolvimento alternativo à via neoliberal e que seja norteada pelo objetivo de construir uma sociedade capitalista mais humana e menos desigual.

O que a esquerda brasileira pretende, nessa presente conjuntura, é efetivar um amplo processo de democratização e humanização do sistema capitalista, mas tentando seguir por uma via de modernização contrária àquela proposta pelo neoliberalismo. Isso significa que a nova esquerda brasileira adota uma tendência reformista e não transformadora. Os ideais de justiça social se efetivam, na prática, através da implementação de reformas sociais do capitalismo. São reformas que passam pela consolidação de todo o aparato social do Estado, pela ratificação do papel social do Estado, pela destinação de investimentos estatais maciços nas áreas sociais, pela ampliação das políticas sociais, fazendo-o capaz de atender as grandes demandas sociais que são dirigidas a ele.

É necessário que tais reformas abarquem, também, um conjunto de medidas e políticas econômicas que busquem instaurar um desenvolvimento global, com um grande poder de abrangência, que esteja, fundamentalmente, alicerçado e baseado em um amplo processo de distribuição de renda no país e também, em um processo efetivo de reforma agrária. De forma que seja um desenvolvimento que estimule e incentive, efetivamente, o crescimento dos salários e que estimule também o aumento significativo da participação dos salários na renda nacional, acarretando, como isso, o aumento do poder aquisitivo dos trabalhadores.

 

 

Referência Bibliográfica

ARENDT, Hannah. A condição humana. 9a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

BLACKBURN, Robin. Depois da queda: o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo. 2o Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1993.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

HELD, David. Modelos de democracia. Belo Horizonte: Paidéia, 1987.

MARX, Karl; ELGELS, Friedrich. O manifesto comunista. 2a ed. São Paulo: Bontempo, 1988.

REIS, Daniel A. As esquerdas e a democracia. In: GARCIA, Marco A. (org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

SADER, Emir. O anjo torto: esquerda (e direita) no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1995.

 

Resumo

O objetivo deste breve artigo é tecer alguns comentários a respeito de certas mudanças valorativas e estruturais pelas quais passou o movimento esquerdista brasileiro nas últimas duas décadas. O texto destaca, entre outras coisas, a introdução da economia de mercado, desde que alinhada com a eqüidade social, no pensamento de grande parte da política de esquerda no país. Ademais, também são sublinhadas as alterações que os conceitos ‘direita’ e ‘esquerda’ tiveram nos anos mais recentes.

 

Palavras-chave: esquerda brasileira, justiça social, capitalismo neoliberal.

 

* MARCEL DE ALMEIDA FREITAS. Mestre Em Psicologia Social. Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG. Autor do livro: Meretrizes, Amazonas e Magas: um estudo dos arquétipos femininos nos mitos da humanidade. Belo Horizonte: edição do autor, 2001; 175 p. ISBN: 1001275902. E.mail: marleoni@Yahoo.com.br

Fechar