1964/2004: O QUE MUDOU?
Eurico
de Lima Figueiredo *
Resenha do livro de Miguel Armony, A Linha Justa
(A Faculdade Nacional de Filosofia nos Anos de 1962-1964).
Rio de Janeiro, Revan, 2002.
Hobsbawn, em seu livro autobiográfico, Tempos Interessantes, citando sua amiga, a filósofa Agnes Heller,
lembra que a história “trata do que acontece visto de fora, e as memórias
tratam do que acontece visto de dentro”. Esse livro de Miguel Armony – que não é um historiador mas geoestatístico,
hoje lecionando na UFRJ – é um depoimento, sentido e vivido, “por dentro”, a
respeito de três anos cruciais da vida republicana brasileira. Se o depoimento
passou despercebido pelo público em geral – devido não à falta de méritos do
trabalho, mas principalmente aos crônicos problemas de distribuição enfrentados
pelas nossas editoras – recebeu fartos elogios da crítica quando de seu
lançamento. Agora – quando se registram os 40 anos do Movimento de 31 de Março –
parece oportuno convidar o público leitor a procurar esse livro. Os jovens
universitários de quatro décadas atrás, e que eram de “esquerda”, encontrarão
uma excelente “matéria de memória” sobre si mesmos. E os jovens do presente
terão oportunidade, ao tomar contato com esse tempo, de avaliar bem o contraste
entre aquela época e os dias de hoje.
A
década de 60 no século passado no Brasil, foi, do ponto de vista político, – mas
não somente político!, – de tirar o fôlego. Nela o Brasil teve nove presidentes
da República e, entre 31/08/69 e 30/10/69, foi tutelado por uma junta militar.
Por um breve período, entre 08/09/61 e 23/01/63, experimentou um regime
parlamentarista de ocasião e o governo esteve nas mãos de quatro
primeiros-ministros. Em 31 de março de 1964, um levante das forças armadas,
pela primeira vez na nossa história, levou os militares diretamente ao poder,
estabelecendo uma ditadura castrense que a bibliografia especializada denominou
de “modelo tecnocrático-militar”. Em 13 de dezembro de 1968 houve o golpe
dentro do golpe e uma emenda constitucional instaurou, também pela primeira vez
em nossa história a pena de morte para crimes políticos. Na década, foi
dramática a cenografia por trás desses fatos. Estado de sítio, intervenção
armada, greves, comícios, passeatas, quebra-quebras, confrontos e guerrilhas,
prisões e torturas. É em um especial trecho desse período, – nos anos de 62, 63
e 64 –, que o livro de Miguel Armony se encaixa e se
desenrola. Nesses três anos, o Brasil reafirmou o poder conservador de suas
elites, justamente porque esteve a beira de promover profundas mudanças na sua
estrutura de poder.
Estudante
de Física na FNFi da Universidade do Brasil (atual
UFRJ) em 1962, o autor era um jovem protagonista engajado. Participante ativo,
e sequioso por novos tempos, buscava na ação política os meios para transformar
seus sonhos em realidade. De origem judaica, esteve em Israel onde residiu e
estudou por seis anos. Sentiu-se um “estrangeiro” quando ingressou naquela
instituição de ensino. Via com perplexidade a liderança de Jânio Quadros,
posicionava-se contra Carlos Lacerda, o derrubador de Presidentes, era a favor de João Goulart. Em
linhas gerais, como se diria depois, podia ser considerado como um
“progressista”. Estava preparado, portanto, subjetivamente, para ser
“recrutado" pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Seduzido pelas
propostas do “Partidão”, logo com elas se desencantou e o seu livro em grande
parte é o relato das suas desilusões com a “juventude comunista”. Quando a liderança
de Leonel Brizola despontou, e logo depois se afirmou, aderiu às suas
propostas. Nelas identificou propósitos sinceros de mudança. E, quando veio o
golpe, pensou em se juntar à resistência armada, integrante que era do chamado
“grupo dos onze”, organizado (sic) pelo então deputado federal pelo antigo
Estado da Guanabara.
O
relato de Armony não se restringe apenas aos aspectos
políticos daquela época. Homem dotado de uma autêntica sinceridade, seu relato
tem um inequívoco tom confessional. Seu depoimento é um convite para uma visita
ao “modo de ser” dos jovens na primeira metade dos anos 60. Nesses tempos os
jovens “de esquerda”, precisavam citar Marx e Engels,
admirar Mao-Tse-Tung e ver os filmes de Eisenstein, liam Sartre e Camus. Mas, não podendo escapar
ao espírito do tempo, eram também fãs de Marlon
Brando e James Dean, Brigitte
Bardot e Jeanne Moreau. E
quando não havia ainda se inventado as “patrulhas ideológicas”, gostavam de
chiclete de bola e coca-cola, até mesmo para ridicularizá-los em suas músicas.
É um tempo em que as moças começam a exigir a liberdade sexual, mas não usavam
biquínis, punham ligas, usavam anáguas e seus sutiãs não eram transparentes. As
roupas dos rapazes eram “cinza” (vermelho ou lilás nem pensar!) e as suas
cuecas, invariavelmente, do tipo “samba-canção”. No entanto, elas e eles, à
esquerda, queriam “botar pra quebrar”: o abaixo as falsas “convenções
burguesas” era um must! O Movimento de 1964 desfechou um rude
golpe político nas instituições brasileiras. Mas ele foi também uma forte
reação conservadora no plano sócio-cultural ao processo de profundas mudanças
comportamentais que estavam em marcha. E isso não foi, ainda, devidamente
analisado.
O
livro de Miguel Armony – bem escrito, rico em
detalhes, com preciosas informações – é importante por muitos motivos. Mas um
deles é o mais significativo. Registrando a lacuna na bibliografia sobre o
assunto, resolveu chamar para si a tarefa de dar o seu depoimento sobre um
jovem em uma época marcada por grandes expectativas e definitivas mudanças em
um dos centros acadêmicos mais importantes do Brasil.
Cumpriu
a missão. Sobejamente.
(*) Chefe do Departamento de Ciência Política
e Coordenador-Executivo do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEST) da Universidade
Federal Fluminense (UFF).