O CONSENSO DE
WASHINGTON E O BRASIL: UM LIVRO ESCLARECEDOR
Pedro-Pablo
Kuczynski e John Williamson (organizadores), Prefácio de Armínio Fraga
(São Paulo: Editora Saraiva, 2003, 320 p.; ISBN: 85-04514-8; R$
46,00)
O liberalismo econômico é, do ponto de vista teórico, uma doutrina
(com algumas tinturas de ideologia), fundamentando uma certa atitude dos atores
sociais em relação ao mercado e ao papel do Estado na vida econômica, e, do ponto
de vista prático, um conjunto de prescrições de política econômica cujos
objetivos seriam, precisamente, retirar a mão pesada do Estado do jogo
econômico e deixar que os mercados e a divisão internacional do trabalho
encaminhem, ao melhor, soluções “racionais” aos complexos problemas colocados
pela vida econômica das nações. Se ele o fez, em algum país, as evidências são
pelo menos inconclusivas.
A despeito do que muitos acreditam e afirmam, inclusive através do
epíteto alegadamente depreciativo de “neoliberalismo”, a teoria e as práticas
efetivamente liberais nunca foram muito freqüentes ou utilizadas na América
Latina, em todas as épocas. A rigor, no século XIX, ainda podiam ser
encontrados verdadeiros liberais, doutrinários e práticos, e, procurando bem,
podem ser encontrados alguns outros, identificados a sonhadores, nas faculdades
de economia e no mundo empresarial de alguns países da região ao longo do
século XX. Mas, terá sido certamente raro, na medida em que poucos desejavam ou
pretendiam ser identificados com a ação desenfreada das forças do mercado ou o
livre exercício das vantagens comparativas. O que se assistiu, ao longo de
décadas, senão de séculos, de ação econômica dirigista, foram tentativas mais
ou menos bem intencionadas de tirar os países latino-americanos do “atoleiro
liberal” e de colocá-los no caminho do “desenvolvimento”, com várias doses de
intervencionismo estatal e muitas doses, senão toneladas, de frustrações
sociais e desastres econômicos. Instabilidade, espiral inflacionária,
emissionismo irresponsável, atraso tecnológico, desigualdade social: nada disso
é novo e certamente não foi provocado pelo liberalismo econômico ou por
nefastas medidas de desregulação desenfreada.
Os problemas do subdesenvolvimento material latino-americano – de
certa forma mental, também – continuam impassíveis, a despeito de alguns
progressos econômicos e de alguma modernização tecnológica. Como diria Mário de
Andrade, falando do Brasil dos anos 1920, “progredir, progredimos um tiquinho,
que o progresso também é uma fatalidade”. Por isso, soa pelo menos curioso que
pessoas aparentemente incautas decidam atribuir ao neoliberalismo, ou a seus
desvios teóricos e práticos, as razões dos desastres econômicos vividos pela
América Latina nos últimos dez ou vinte anos. Costuma-se atribuir o fracasso
argentino, ou a crise em outros países da região, à aplicação irrefletida das
regras do famoso “Consenso de Washington”, que serviriam de camisa de força
para manter esses países sob a “hegemonia imperial” e a serviço do capital
financeiro internacional. Quanta bobagem nesse tipo de acusação.
Pois agora chegou ao Brasil uma obra que permitirá aos brasileiros
refletir melhor sobre o que são, efetivamente, essas famosas regras do
“Consenso de Washington” e como sua eventual aplicação ao caso brasileiro
poderá, ou não ajudar na solução de nossos angustiantes problemas de
crescimento, de distribuição, de modernização social e tecnológica, de inserção
da nossa economia no mundo contemporâneo da concorrência e da globalização. A
obra organizada por Pedro-Pablo Kuczynski e John Williamson (sim, o próprio
“dono” da expressão) apresenta a todos os curiosos assim como aos estudiosos de
verdade todos os ingredientes do receituário e discute as razões do baixo
desempenho efetivamente observado desde que ele foi colocado no mercado. Não
sei quantos royalties John Williamson
terá arrecado pelo uso (devido e indevido) do famoso binômio, mas ele
certamente deve estar arrependido de não tê-la registrado no momento devido no
U.S. Patent Office, com pedidos similares para todos os países da região.
De fato, não deve ter havido na literatura econômica (e sobretudo
jornalística, para não falar das assembléias políticas) qualquer outra
expressão tão usada e abusada ao longo dos últimos doze anos, geralmente com
intenções bastante críticas, quando não deliberadamente simplificadoras. Pois
bem, não há mais motivo para ignorância, má fé ou simples indiferença: tudo o
que você sempre desejou saber sobre o Consenso de Washington e nunca teve a quem
perguntar, tem agora como satisfazer suas necessidades intelectuais e talvez
até políticas. Mas nada disso tem a ver com o neoliberalismo ou imposições de
fora: tudo foi pensado como um conjunto
de regras muito simples – e não de prescrições salvadoras – que pudessem ajudar
os economistas e decisores políticos na região a empreenderem um conjunto de
reformas que são absolutamente necessárias para o bom desempenho das sociedades
nacionais da região, não para satisfação dos especuladores de Nova York ou dos tecnocratas
do FMI.
O livro, coordenado por dois eminentes economistas associados ao
prestigioso Institute for International Economics, de Washington, retoma o debate sobre o processo de reformas
liberalizantes iniciadas na América Latina no final dos anos 1980 e que já
tinha sido objeto de um volume precedente publicado pelo mesmo instituto. Ele
reúne, novamente, trabalhos de conhecidos especialistas econômicos, cujas colaborações tocam nos mais
importantes problemas da agenda de política econômica dos países da região,
depois de uma década marcada por crises financeiras, um crescimento econômico
desapontadoramente lento e praticamente nenhum progresso na esfera social e da
repartição de renda.
Os estudos aqui incluídos fazem o diagnóstico da primeira geração
de reformas (liberalização e estabilização macroeconômica), apresentam a
segunda geração (institucional) de reformas, que são indispensáveis para criar
a infra-estrutura de uma economia de mercado com progresso social, assim como
discutem as iniciativas necessárias para que as frágeis economias da região
encerrem a série de crises registradas nas últimas décadas. O livro também se
situa no centro do debate atualmente em curso no Brasil sobre a natureza e o
itinerário do processo de reformas econômicas e sociais iniciadas pelo governo
anterior e em grande medida continuadas pela atual administração.
Paulo Roberto de Almeida
Doutor em ciências sociais, diplomata.
Washington, 20.08.03