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Nota introdutória de Eurico Lima Figueiredo
Falecido em dezembro de 1997, ao 61 anos de idade,
José Nilo Tavares foi Professor Titular de Ciência Política da Universidade
Federal Fluminense (UFF) e Professor Associado da mesma cadeira da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ). Livre docente na sua área de
competência profissional, fez o seu pós-doutoramento na Itália. Ocupou altos
cargos de administração acadêmica, entre eles o de Diretor do CNPq, logo após a
quebra do ciclo militar, durante o governo José Sarney. Um dos fundadores da
associação de docentes da PUC/RJ, exerceu o cargo de primeiro presidente eleito
dessa associação. Deixou vários trabalhos publicados, entre eles Conciliação e
radicalização política no
Brasil (Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1992) e Marx, o socialismo e o Brasil (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1983,
Introdução de Leandro Konder).
Em relação ao pequeno ensaio A viabilidade da
ciência política – aqui publicado - não foi possível determinar o ano exato em
que foi redigido, mas tendo em vista a linha de argumentação desenvolvida,
assim como o referencial bibliográfico empregado, deve ter sido escrito por
volta do início dos anos 70 do século passado. Parece ter sido preparado
especialmente para seus estudantes que se iniciavam no âmbito das ciências
sociais e, em particular, no da Ciência Política. E foi justamente um deles,
Aluizio Alves Filho, atualmente Chefe do Departamento de Ciência Política da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, que o achou no seu arquivo.
José
Nilo foi um professor de mão cheia. Comunicativo, solícito, sempre cordial e
atencioso, usava o quadro negro para enunciar os princípios de sua exposição,
conferindo sistematicidade e organização às suas exposições. Homem coerente,
seguiu sempre os princípios que pautaram toda sua vida. Foi sempre convicto
socialista desde quando, bem jovem, foi eleito para presidente do Diretório
Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Ardoroso defensor dos ideais democráticos opôs-se decididamente à ditadura
(1964 –1985) e por isso foi por ela duramente perseguido. Com a restauração da
legalidade democrática foi anistiado político e, nessa qualidade, reintegrado
no cargo de Professor Adjunto IV, na UFMG, aposentando-se logo em seguida.
Jornalista profissional – ofício que lhe permitiu a sobrevivência durante os
primeiros anos de chumbo - escreveu centenas de artigos para inúmeros jornais e
revistas. Alguns deles, os mais recentes, serviram para a confecção de uma
pequena antologia organizado pelo autor desta “Nota”, intitulada: Coluna, texto e homenagem
a José Nilo Tavares (Rio de Janeiro,
Inverta, 2000). Nesse livro, além de vários depoimentos de cientistas sociais e
intelectuais sobre a personalidade e a obra de JNT, foi selecionado um pequeno
elenco de artigos, representativo de suas publicações no jornal Inverta, onde colaborou ininterruptamente entre 1991 e a
data de sua passagem. Neles, sempre com a independência que caracterizava seu
pensamento, procurou denunciar as injustiças sociais e os desvios políticos que
afligem, penosamente, o País.
No
ensaio que se segue, JNT procura oferecer aos que se iniciam nos estudos da
Ciência Política a apresentação e a análise de alguns problemas básicos dessa
disciplina. Por um lado, lida com a questão do objeto da Ciência Política,
procurando esclarecer, com espírito de síntese, seu conteúdo eminentemente
político no contexto das relações histórico-sociais. Por outro, procura
delinear, nas suas linhas mais gerais, a relação entre objetividade e
neutralidade no campo da investigação política, em particular, e da vida
sócio-histórica, em geral. Fiel à metodologia e teoria marxistas, o trabalho,
no que tem de fundamental e introdutório, ainda se mostra atualizado e bastante
útil como texto de apoio para professores e alunos que se iniciam nos
cursos de ciências sociais. Pequenas alterações no texto – na forma e não no
conteúdo - foram feitas pelo autor dessas “Notas”
com o objetivo de, tão somente, tornar mais claro ou mais adequado o
desenvolvimento do raciocínio do autor, já que seu estudo teve em mente a
discussão em sala com seus alunos e não sua publicação para o público em geral.
As brevíssimas modificações, entretanto, tem-se certeza, em nada alteraram a
substância intelectual do trabalho.
Nas áreas de ciências
humanas e filosofia muitas vezes falta aos seus praticantes calor humano e
sabedoria de vida. José Nilo Tavares não se incluía entre eles. Era um homem generoso
e, por ser sábio, baseava sua grandeza na humildade. Democrata por convicção,
tratava os destituídos da sorte da mesma maneira com que se dirigia àqueles que
se situavam nas camadas sociais mais altas. Bom por natureza, procurava
entender sempre as angústias da perplexa alma humana. A par de uma vasta
cultura humanista, nunca deixou de se aprofundar, com vigor e dedicação, no
coração da matéria de sua competência profissional específica, a Ciência Política. Era uma
personalidade cativante. Tão cativante que dois de seus alunos de muitos anos
atrás –Aluizio e o escrevinhador dessa linhas – não puderam esquecê-lo jamais.
E, por isso mesmo, gostariam de repartir suas lições com os novos alunos da
novíssima geração. De minha parte penso que um nome como José Nilo Tavares
merece pertencer, pelos seus méritos intelectuais e pela sua coerência
político-ideológica, no melhor da tradição da Ciência Política brasileira.
Finalmente, não posso deixar sem registro meus
agradecimentos ao Aluizio pela missão que ele resolveu me confiar, certo que
outros colegas e amigos de JNT, muito mais competentes e preparados, gostariam
de usufruir a oportunidade que me foi conferida.
(Eurico de Lima Figueiredo, Chefe do Departamento
de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense).
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Segue, na íntegra, o texto “A Viabilidade da Ciência Política”, de José Nilo Tavares.
No contexto da sociedade brasileira, de onde apenas
recentemente emergiram as ciências sociais, e em que o uso da Ciência Política
tem sido extremamente limitado, é pertinente colocar-se, como passo inicial de
estudo, a clássica interrogação: é possível o conhecimento científico do
fenômeno? E, como desdobramento: se possível, seria viável a prática de tal
conhecimento?
A
questão, ainda que levantada dentro de uma academia, não tem nada de acadêmica,
no sentido tradicional do termo. Pelo contrário, implica assunto da maior
relevância, particularmente se levamos em conta a perplexidade que, nas várias
camadas dos povos latino-americano, tem gerado a aparente falta de perspectiva
do momento presente, do ponto de vista político.
Aqui
se embatem, hoje, com fragor, antigos contendores que, em espaços e tempos
diferentes, têm constituído os protagonistas do drama político: autoritarismo e
liberdade, desenvolvimento e atraso, autonomia e dependência nacionais,
obscurantismo e ilustração, estagnação e transformação, guerras e pazes, enfim,
situações que, na verdade, são, em geral, inseparáveis, pois se entrelaçam no
ventre de uma totalidade histórica matricial única.
Pois
bem, no século das ciências, da dominação crescente da natureza pela técnica do
homem, pela técnica que a sua ciência revelou ao desvendar a leis da terra e do
espaço, seria possível que no campo da sociedade, e particularmente da
política, as coisas continuassem correndo completamente alheias ao conhecimento
científico? Ou, quem sabe, a sociedade – contra toda a evidência científica dos
últimos séculos – nada teria a ver com a natureza, regendo-se por movimentos e
impulsos arbitrários e inescrutáveis, não suscetíveis a previsões e infensos à
lógica da ciência?
Alteando,
no entanto, a vista por cima de pequenos mundos momentaneamente ancorados no
passado, o que se vai perceber é uma enérgica contestação que a realidade dos
tempos modernos opõe a considerações desoladoras, como as constantes no
parágrafo anterior. Nas áreas que, por razões várias, o conhecimento do mundo e
da sociedade mais se aprofundou; nos meios definitivamente livres da
superstição e do obscurantismo; nas comunidades internacionais de vanguarda,
livremente constituídas, num universo em avanço que repudia um submundo em
atraso, a verdade descobre-se diáfana: o desenvolvimento da sociedade está
sujeito às leis que podem ser descobertas pela ciência, pelas ciências sociais.
E mais ainda: as ciências sociais, na prática, têm contribuído eficazmente para
a solução de problemas que afligem o homem, não obstante situarem-se, por
enquanto, aquém das suas potencialidades.
Mas
assim como a Física, na sua moderna história de 400 anos, só se desenvolveu
verdadeiramente a partir da existência de uma conjuntura econômica e social que
lhe foi propícia – o desenvolvimento da sociedade capitalista -; as ciências
sociais, atualmente, parecem encontrar campo propício à sua frutificação, sem
se esquecer, no entanto, das diferenças de objetos e métodos que as podem
distinguir.
Mas
voltemos à questão proposta da possibilidade de uma ciência do político e de
sua viabilidade prática.
A
ciência moderna, superando a ideologia e a pré-ciência – significando uma
ruptura com o pensamento que lhe era anterior - inicia-se verdadeiramente, a
partir dos séculos XVI e XVII, assumindo procedimentos lógicos e técnicos
inovadores, imbuída de racionalidade e fortemente preocupada com a observação
sistemática e o rigor demonstrativo, baseado no controle e na verificação, ao
mesmo tempo em que, revolucionada, contribui para a revolução do mundo.
Entendida
genericamente, a ciência moderna apresenta-se como um conjunto articulado de conhecimentos, sistemáticos e metodicamente
acumulados, sujeitos e condicionados às alterações históricas, isto é, às
condições de vida efetivadas pelo homem em suas relações com o mundo. Nessa
conceituação operacional destacam-se:
I
- O caráter extensivo, intensivo e ordenado do conhecimento científico;
II
- A sua sujeição a uma lógica e a um corpo rigoroso de regras que devem vigorar
desde os estágios iniciais da atividade científica. Isto é, desde a observação
até a elaboração do discurso lingüístico;
III
- O condicionamento histórico a que é submetido todo conhecimento humano,
envolvendo, em relação de reciprocidade e simultaneidade, elementos materiais e
culturais.
O
aspecto relativo/absoluto de todo conhecimento científico deve ser destacado,
na medida em revela a íntima conexão que se estabelece entre ciência e
sociedade, e chama a atenção para a mutabilidade do objeto do conhecimento e a
infinitude da realidade. Ao mesmo tempo elimina os esforços de ortodoxia e
dogmatização, duas moléstias que rondam permanentemente a ciência e, não raro,
a tocaiam.
Mesmo
aquelas ciências chamadas lógico-dedutivas, como as matemáticas, que se
situariam em área diferente em relação às ciências empíricas, estariam
englobadas na definição aventada, na medida em que percebemos a impossibilidade
de existência de uma razão pura, extra social, histórica, como o desejam os
racionalistas puros, batidos, hoje, nos parece, em todas as frentes em que
aparecem, mesmo que metamorfoseados.
Em
termos lógicos e conceituais, não há como negar a possibilidade de uma ciência
das relações sociais, enquanto essas possam ser aprendidas em conjunto
articulado, metódico e histórico de conhecimentos. E do ponto de vista da
prática, existe já uma história vivida e uma elaborada, a partir dessa vivência
prática teorizada e a teoria prática -, que nos comprovam a realidade concreta.
Agrupando-se
para produzir e viver, os homens, no decorrer da sua história, organizam-se
socialmente, elaboram sistemas de valores e estabelecem padrões de
comportamento que, se multiplicam infinitamente em seus aspectos aparentes,
guardam, por outro lado, delimitações estruturais básicas. A interdependência
que existe entre as maneiras de viver e de pensar e as estruturas econômicas e
sociais, por exemplo, empírica e historicamente comprovadas, tantas vezes, em
perspectivas tão diversas, evidenciam relações de causalidade irrefutáveis.
Evidentemente,
a elucidação das causalidades sociais não é tarefa fácil e muito menos sujeita
a predicações genéricas e universais. A natureza do objeto da ciência social
suscita, na investigação científica, problemas que exigem tratamento
diversificado do exigido nas ciências naturais. Indiscutivelmente, as ciências
“por analogia” e as ortodoxias simplificadoras têm contaminado mortalmente a
ciência da sociedade. Nenhum desses argumentos, no entanto, invalida a
possibilidade da ciência, que se não é fácil (não existe ciência “fácil”),
tampouco é inacessível.
Tome-se
apenas um exemplo. Levando-se em consideração apenas a variável econômica, não
é difícil estabelecer um acordo, no campo científico, sobre quais os dados e
elementos que caracterizam a situação dos países economicamente atrasados,
ainda que as perspectivas (valores, ideologias) dos cientistas sociais possam
divergir. Caracterizado o atraso econômico – como totalidade ou como variáveis
– passa-se à tarefa de explicação (o “por que”) do atraso. Ainda que nessa
etapa as divergências se aprofundem, haverá, num momento histórico, explicação
que, lógica e concretamente, seja mais pertinente, mais abrangente, verdadeira.
E tal explicação - existente sempre, ao nível teórico e, portanto,
virtualmente, ao nível prático - terá estabelecido melhor a relação de
causalidade.
De
igual modo o fenômeno político, como fenômeno social, não pode ser analisado à
parte de uma ciência do social. Na verdade, apenas para efeito expositivo
poderemos isolar elementos concretos e categorias e conceitos. Existe uma
totalidade concreta que abrange natureza e sociedade. Natureza e homem são
partes de um todo – o universo; igualmente, os conceitos de natureza e
sociedade estão interligados. Se se dispõe a reduzir, abstratamente, por
exigência de análise, o perímetro da totalidade - e se fala na totalidade do
social, por exemplo - a questão continua a mesma. A sociedade é uma totalidade
histórica, una, indivisível, concreta. Os elementos ou os níveis que a compõem
– econômico, político, social, por exemplo - não têm existência autônoma. São
partes de um todo e só enraizados nesse todo podem ser cientificamente
explicados, explicitando-se sua autonomia e a posição que ocupam numa relação
de causalidade. Mas como essa totalidade é histórica - realizada e mudada a
todo instante - não existe inflexibilidade ou configuração imutável. Ao mesmo
tempo, no seu interior, os vários elementos ou níveis que a compõem, assumem
posições que lhes atribuem, em cada situação concreta, determinada relevância.
Neste particular, torna-se necessário precisar o grau de inter-relação entre os
elementos ou níveis e sua relação de determinante, em casos concretos.
Impraticável essa tarefa, cair-se-ia indiscutivelmente num generalismo vago e
ineficaz que retiraria à ciência o seu fundamental caráter prático.
Ramo
das ciências sociais modernas com relativa autonomia, a Ciência Política vai
dedicar sua atenção à esfera do poder, assim como, por exemplo, a Economia
Política se dedica à produção, ou a Sociologia às relações sociais. Chamamos,
mais uma vez, a atenção para o fato de que tal distinção tem caráter
pedagógico, visto carecer de fundamentação, prática e teórica, ou encaminhamento
de uma ciência da política desvinculada da produção ou das relações sociais.
Dedicando-se
ao estudo do poder, a Ciência Política pretende investigar os fenômenos
relacionados com o poder, desde os mais simples até os mais complexos,
estabelecendo, igualmente, conceitos e teorias, das mais simples às mais
complexas, que abranjam desde as relações políticas, por exemplo, em uma dada
empresa, até as relações políticas, por exemplo também, em um dado Estado.
Quando
se alude aqui ao poder, chama-se atenção para as relações de mando, à
capacidade de decisão, à luta, aos antagonismos, à possibilidade de utilização
de força, persuasiva ou material. A formação do poder nas formações sociais
concretas - assim como seus processos de legitimação, distribuição, preservação
e, principalmente, transformação de suas estruturas, - tudo isso se refere ao
campo de estudo dessa disciplina. Nesse contexto de idéias, oportuna e
estimulante área interessante de reflexão política seria a investigação da
relação de causalidade entre o poder político, o poder econômico e poder
social, instâncias paralelas de mando que tendem a se cristalizar em sínteses
instáveis. A prática e a teoria política de situações concretas das sociedades
modernas têm revelado, cada vez com maior clareza, que o conhecimento da
natureza mutável daquelas instâncias, e de suas relações de mútua influência, é
de importância crucial para a ação e sua explicação. Problema de tal ordem deve
merecer acurada atenção dos cientistas da política.
A
metamorfose da relação social em relação política deixa aflorar seu conteúdo
mais eminentemente político quando, em uma situação de conflito engendrada no
ventre de uma sociedade em transformação, refere-se a uma estrutura de classes
sociais (e/ou camadas ou frações de classe) mais ampla e complexa. As classes
(camadas, frações) estariam aptas a elaborar, dentro de nível de consciência
satisfatória à sua auto-representação como grupo, um projeto de interferência
na realidade, seja para modificá-la, seja para preservá-la.
Tornar-se-ia
ainda necessário que, superando o estágio do plano de ação, o grupo social
concretizasse as suas potencialidades de existência e ampliação, e obtivesse
recursos ou meios – materiais e imateriais, para concretizar o projeto. Agora,
em nível de consciência mais elevado em relação à possibilidade de intervenção,
o grupo social teria diante de si as tarefas de organização política, de
agitação e propaganda, de obtenção de recursos financeiros, de programa
teórico, dentre inúmeras outras, capazes de afirmá-lo e propiciar-lhe a
expansão.
Finalmente,
atingindo o clímax da consciência política, profundamente vinculada à economia
e social, o grupo se realizaria, politizando-se na medida em que chegasse à
práxis, isto é, à união consciente e organizada da teoria com a prática.
Utilizando os recursos disponíveis, considerando rigorosamente as
possibilidades do momento, concretizaria o projeto de intervenção na realidade,
intervindo.
Não
se pode esquecer, contudo, que a metamorfose relação social/relação política se
realiza entre pólos de tensões influenciáveis recíproca e complementarmente, e
que se a relação política tende a destruir, momentaneamente, a relação social,
absorvendo-a, busca, por outro lado, como fim último, engendrar sua proposição
sua manipulação. Pejaria, em suma, a relação de politicidade.
Esquemas
teóricos explicativos, aventados, aliás, por muitos teóricos políticos
contemporâneos, ao olvidar a perspectiva de totalidade, restringindo sua
perspectiva de análise e limitando a abrangência de sua análise, podem contribuir, de modo importante,
entretanto, para função orientadora no
estudo dos pressupostos de uma ciência do político.
Até
que ponto um conjunto de conhecimentos articulados, sistemáticos e
historicizados sobre as relações de poder, nas sociedades globais, poderia ser
conduzido de forma objetiva, isto é, de forma a encaminhar a uma ação prática,
de intervenção na realidade? A indagação faz retornar à discussão de alguns
pressupostos metodológicos que interessam de perto as ciências sociais e,
especialmente à Ciência Política, na medida em que esta colima, para
concretizar-se na práxis.
Embora
nenhuma ciência esteja isenta do condicionamento histórico e social, e todo
conhecimento apareça sujeito às estruturas econômicas e sociais, encontra-se
entre os continentes científicos, inseridos num mesmo universo, algumas
diferenças notáveis. Dentre elas a vinculada à relação que no processo do
próprio conhecimento se estabelece entre sujeito e objeto, o cientista e sua
matéria prima.
Deixando
de lado o problema da construção do objeto, tarefa precípua a que estaria
submetido, no trabalho de investigação, o cientista social, é preciso que se
volte para aqueles que se refere a identidade parcial do sujeito e objeto, que
existia no campo das ciências sociais. Investigando a própria sociedade em que
vive; lidando permanentemente com as estruturas básicas dessas sociedades -
econômicas, políticas, culturais ou sociais – remexendo, com o bisturi da sua
abstração, no sistema de valores, de crenças, de costumes ou de idéias dos seus
semelhantes; operando, enfim sobre objeto do qual é parte, o cientista social
manter-se-ia imune às contaminações valorativas, ou para ser mais amplo,
ideológicas do seu tempo e do seu meio?
E
na medida em que se mantivesse, como poderia desenvolver trabalho eminentemente
científico, isto é, objetivo e rigoroso, o qual por sua própria natureza,
deveria situar-se acima das contingências do momento? Constituindo-se exigência
básica da ciência a previsão, a formulação de leis (ainda que tendências,
históricas e estatísticas), como faria um cientista cujas teorias estivessem
impregnadas de ideologia e de valores?
Questões
dessa ordem tem preocupado as ciências sociais, desde a sua fundação, no século
XIX, e agora por razões históricas variadas, voltam novamente à tona. E,
certamente, isso não se dá gratuitamente: evidenciam, pelo menos, uma profunda
crise social, que dilui as bases metodológicas que constituíam o alicerce em
que se assentava o próprio sistema de conhecimento da sociedade atingida.
Se
bem que existam hoje, implícitas ou explícitas, as coordenadas básicas para a
resolução do problema, seria uma audácia supô-lo definitivamente superado.
Aqui, tendo em vista propósitos meramente introdutórios, pode-se, pelo menos,
delinear os principais contornos da polêmica metodológica.
No
que se refere às ciências sociais, as linhas básicas da discussão do problema
da objetividade podem ser encontradas em três autores: Durkheim, Weber e
Lukács. Evidentemente, esses autores não esgotam todo o campo abrangido. Por
exemplo, embora tomando o caminho originário de Lukács, Althusser se propõe
resolver a questão de maneira bastante diversa da do filósofo húngaro. Por
outro lado em Marx, por exemplo, e muito antes que nos autores referidos, já se
colocam temas fundamentais de estudo das ideologias, dos valores e da ciência.
Émile
Durkheim, profundamente preocupado com o estabelecimento de uma ciência da
sociedade, vai procurar, particularmente em As
Regra do Método Sociológico, assentar os pressupostos metodológicos da
mesma, atacando de frente a questão da validade e da objetividade do
conhecimento nessa área do conhecimento.
Para
ele o fenômeno social requeria do cientista uma perspectiva que o enfocasse
como “coisa”, isto é, objeto externo ao sujeito que investiga.
Conseqüentemente, desde que existisse a possibilidade de não identificação
entre sujeito e objeto, o modelo de construção da ciência social seria similar
ao das ciências naturais. O problema da objetividade e dos valores estaria em
questões como: rigor científico, honestidade intelectual, aperfeiçoamento
técnico, amadurecimento científico.
Tal
posição deu origem a várias orientações contemporâneas. Algumas delas,
conflitantes. Assim, consagraria o empirismo, o metodismo científico (único,
exclusivo, universal), ao mesmo tempo em que enaltecia a postura extremamente
conservadora da reificação (“coisificação”) do fato social. Consubstancia,
igualmente, ponto de vista que não estabelece diferenças quantitativas no que
diz respeito ao método ou à realidade sujeito-objeto, entre as ciências
naturais e as ciências sociais.
Em
Max Weber, particularmente ao tratar da metodologia das ciências sociais, o
assunto é colocado em nível de maior sofisticação. Formalista e racionalista,
opondo-se ao empirismo dominante em certos círculos científicos, Weber discute,
a partir de uma oposição neokantiana (o objeto determina o tipo de
conhecimento, por exemplo) a problemática das ciências (naturais, culturais,
sociais, nomotéticas, ideológicas, generalizantes e particularizantes - por
exemplo).
Refutando
o otimismo de Durkheim no que se refere às amplas perspectivas de objetividade
que, a exemplo das ciências naturais, teriam as ciências sociais, Weber não as
nega - principalmente no que se refere aos seus resultados práticos - mas as
problematiza. Considera que manter a neutralidade em relação a valores
(neutralidade axiológica) é o caminho metodologicamente possível nas “ciências
da cultura”. Na elaboração das hipóteses e na seleção dos dados, isto é, na
construção do objeto, seria impossível ao cientista uma fuga aos valores; no
entanto, na fase propriamente científica da investigação, no arranjo e
interpretação dos dados, o rigor metodológico (o método compreensivo, com sua
endopatia e tipos ideais) levaria o investigador a alcançar alto nível de
objetividade.
Lukács,
discípulo de Weber, que mais tarde aderiu ao marxismo, (em História e consciência de classe), considera a posição do antigo
mestre - no que se refere às relações entre objetividade e valores -
insustentável. As classes sociais, divididas em dominante e dominadas, têm
visões do mundo antagônicas, sistemas de valores conflitivos, weltanschauungs (visões do mundo)
diversas. O cientista, como integrante de uma classe, analisando a sociedade,
numa relação de conhecimento, não poderia elaborar uma ciência social
“objetiva”.
A
perspectiva de G. Lukács levará a uma verdadeira negação das ciências sociais,
substituídas, na sua versão “burguesa tradicional”, ao menos, a simples
consciência social; a consciência que cada classe, através dos seus cientistas,
formula em relação à sociedade. Procurando resolver o impasse criado por tal
posição, certos cientistas sociais modernos, particularmente dedicados à
epistemologia, mesmo aceitando as colocações de Lukács, mostram, no entanto,
que as visões das classes não se equivalem no que diz respeito à sua validade e
objetividade. Assim, há consciência mais ampla e menos ampla, em relação à
percepção da história e da sociedade.
Ao
mesmo tempo, dentro da linha de pensamento lukácsiano, as visões ideológicas e
valorativas, assumidas na perspectiva das classes em ascensão, conjugadas a um
trabalho de explicitação prévia de valores, permitiria que, na prática, as
ciências sociais alcançassem um nível de objetividade satisfatória ao seu
status de ciência.
Em
caminho idêntico, mas com pontos de vista diametralmente diferentes, há quem
afirme que o problema da objetividade cientifica é antes de tudo um problema
social, isto é, que apenas poderia ser adequadamente colocado quando se visse a
ciência como um sistema de comunicação social e institucional, ou seja, a
ciência como instituição social.
Do
nosso ponto de vista, o problema da objetividade em ciências sociais, de
natureza básica, deveria ser resolvido ao nível da prática social, da prática
científica. Aceitamos a necessidade obrigatória da existência de uma lógica, um
conjunto de normas e regras (uma sistemática e uma semântica, como querem
alguns estruturalistas), presidindo a formação de todo enunciado teórico, de
todo discurso cientifico, bem como as exigências da verificação dada prova.
No
entanto, não seria neste nível que se colocaria o problema dos valores, desde
que o estudo cientifico dos fatos humanos não pode fundar logicamente por si só
nenhum juízo de valor. Ou, em outras palavras, sem ignorar o condicionamento
social a que está submetida toda ciência, seria possível logicamente construir
um conhecimento científico sem conotações valorativas.
Contudo,
é na prática científica que a questão seria elucidada. E aí, sem dúvida, a
explicitação dos valores e a denotação das próprias operações realizadas pelo
cientista neutralizariam o efeito ideológico da sua produção (teoria). A
explicação (denotação da conotação) não imuniza de ideologia os valores e os
fundamentos do trabalho de investigação; mas o discurso, o enunciado
resultante, este sim, já perde o seu caráter ideológico.
Pode-se
estar em acordo em relação à impossibilidade de existência real de uma ciência
despida de ideologia e de valores. Entretanto, a explicação ideológica é falsa
em relação ao objeto que pretende explicar, a científica não é; e enquanto a
função da ideologia é extremamente pratica e justificadora, a da ciência é pratica e teórica.
Cabe, agora, referência,
ainda que rapidamente, à problemática levantada no início do trabalho: a do
emprego de uma Ciência Política voltada para a prática transformadora dos povos
da América Latina, em sua luta secular pela independência, pelo
desenvolvimento, pela paz e pela liberdade.
Assumindo,
consciente e explicitamente, os valores assinalados, parece-nos que o cientista
social poderá encontrar no corpo de teorias críticas existentes nas ciências
sociais, e na ciência política, elementos de maior relevância para a sua
investigação e sua prática.
Pode-se
ir mais longe. Sugere-se que, com essa orientação, é possível encontrar na hora
presente soluções duradouras para as angústias que afligem o tempo que aí está.
Na busca prática da verdade está a missão maior do cientista social latino
americano.
Bibliografia
Básica
DURKHEIM,
Émile. As Regras do método sociológico.
São Paulo: Cia Editora Nacional, 1972.
LUKÁCS,
Georg. História e consciência de classe.
Barcelona-México: Ediciones
Grijalbo, 1972.
WEBER, Max. Economia y sociedad. Mexico: Fondo de Cultura Ecomica, 1944.