A
LIBERDADE COMO IMPÉRIO DA LEI
(Um
estudo sobre a filosofia do direito de Hegel)
INTRODUÇÃO
O
presente trabalho é o resultado de algumas incursões no sistema hegeliano com o
propósito de aprofundar minha pesquisa no pensamento do jovem Marx, etapa muito importante no percurso intelectual daquele
que decisivamente influenciaria o pensamento do século XX. Tal período
compreende os anos de 1842 e 1843, onde se lê, em Marx, uma produção teórica de
caráter persecutório, em que se busca sob um ponto de vista filosófico,
encontrar algumas respostas aos diversos problemas surgidos após o
esfacelamento do sistema hegeliano em várias direções conforme as tendências
dos discípulos de Hegel. Por isso, algumas obras daquele momento, conhecidas como
anotações particulares, visavam uma crítica sistemática à toda filosofia alemã,
sobretudo ao seu grande expoente, Hegel, que por sua grandeza, eloqüência e
profundidade será espelho de uma totalização, daquilo considerado o fim do
ciclo, o fim da história. Hegel será lido por muitos pensadores, sua influência
será marcante em muitas elaborações filosóficas, até mesmo naquelas onde o
rompimento se deu de modo dramático e irreversível.
A
referida pesquisa obrigou-me à leitura dos
Princípios da Filosofia do Direito de Hegel, que por sua vez, em razão de
sua complexidade, implicou em outras tantas leituras necessárias ao
entendimento do seu conteúdo, pois se sabe o quanto é difícil para um neófito
enfrentar o cúspide do idealismo alemão. Na persistente leitura dos Princípios da Filosofia do Direito,
observei que para um melhor entendimento da obra, seria necessário ter uma
visão mais ampla do pensamento de Hegel, o que fiz ao ler a Enciclopédia das Ciências Filosóficas,
especialmente o III volume, onde pude entender com mais clareza o referido
autor. Todavia, tal percurso não foi suficiente em si mesmo, faltava um fio
condutor que operasse um encadeamento suficiente para abordar o sistema sob a
forma de realização. Ao estudar as Lições
da Filosofia da História,
particularmente sua Introdução, conclui que o pensamento de Hegel tem por
preocupação o homem na sua caminhada em concretizar-se, isto é, tornar-se
efetivamente homem dentro de suas relações socialmente eticizantes.
Objetivamente compreendi que para ler Marx razoavelmente, deveria da mesma
forma ler Hegel, isso com a finalidade de apreender a discussão em torno do
homem como construtor de si mesmo. Aprofundar a leitura em Hegel de forma a
penetrar no pensamento de Marx contraria o conselho de Colletti, que não via
possibilidade científica na dialéctica, apontando como verdadeira discussão o
entrave Marx e Smith, relegando o debate Marx e Hegel para um segundo plano.
Obviamente não segui tal orientação, não porque desconsidero Smith, muito pelo
contrário, apenas entendo que em Hegel encontro muitos fundamentos importantes
no processo de construção do pensamento de Marx; até porque este em seu sistema
procura ser uma superação daquele. Portanto, eis o que impus a mim mesmo:
compreender o máximo possível dos Princípios
da Filosofia do Direito como um
caminho altamente relevante, imperioso no projeto não somente teórico, mas
conseqüentemente prático.
Entendo
o pensamento de Hegel como um grande esforço teórico dentro da modernidade em
dar conta da totalidade, sua elaboração sistêmica supera enormemente o rigor
não só dos seus contemporâneos quanto dos que o antecederam. Em Hegel, o
pensamento apreende tudo, inclusive o ser. É na busca da identidade ser e
pensamento que o Espírito Absoluto funde as contradições pelo processo de
superação dialéctica. Dialecticamente, o ser é o pensamento pensando a si mesmo
como Idéia Absoluta, é a dissolução do ser no e pelo pensamento absoluto; o
ingresso do particular no universal. Hegel entende que ser e pensar não se
opõem como realidades, pelo contrário, sendo o pensamento real, a realidade é
sua expressão e o ser está compreendido no movimento de síntese universal.
Sendo assim, penso ser esse o fio condutor do
presente estudo, o conceito do direito e sua realização, ou seja, a liberdade
na comunhão dos sujeitos, a reconciliação da vontade particular com a vontade
universal; o movimento de efetivação da liberdade na vida comunitária; a real
existência de uma liberdade como universal normatizada; a vida ética, a
interiorização comunitária, só que não pelo sentimento, porém, pela sua
superação, pela razão.
Longe de
considerar o sistema hegeliano como a superação das contradições históricas, a
absolutização da realidade, entendo que o pensamento político de Hegel não pode
ser analisado sob um ponto de vista simplista, atrelando-o à monarquia
prussiana, como se ele fosse seu mentor teórico, o que não foi, visto que esse
papel foi desempenhado por alguns dos seus contemporâneos.
Ao fazer
tal ponderação, certamente serei tomado por ingênuo, visto que desconsidero os
reais motivos políticos da filosofia de Hegel, uma metafísica do poder. Grave
engano. Metafísica, política, estética, ética são objetos da filosofia.
Enquanto filósofo e pensador político, Hegel se preocupou com todos esses objetos,
e procurou fundi-los em uma unidade absoluta. Na verdade, Hegel deseja
restaurar o que a modernidade separou: sujeito-objeto, homem-cidadão,
política-moral. No seu sistema de entendimento, Hegel apresenta a verdadeira
vida ética como um retorno do sujeito à participação efetiva na vida
comunitária, só que agora a liberdade é o fundamento dessa nova vida ética.
Política em Hegel não é apenas formatação, organização, administração. Mais que
isso, relaciona-se ao concreto de uma vida socialmente vinculada à perspectiva
do direito e sua realização, mantida e garantida pelo Estado. Política em Hegel
não é ação fragmentária sob impulso deste ou daquele partido; política em Hegel
é objeto de pesquisa para a possibilidade da vida social dentro do universal,
aquilo válido enquanto real e racional, ou melhor, efetivo e racional. Nesse
sentido, Hegel filia-se à corrente política que, desde Aristóteles, considera o
homem um ser eminentemente social, gregário, ético. O homem só é homem porque
convive com outros homens, sua dimensão é pública e seu lar é a cidade, que o
torna concreto, real. Não há como separar a política da filosofia no sistema de
entendimento de Hegel. O seu interesse pela política é o mesmo pela lógica, é o
casamento no interior do sistema, é o projeto humano em si e para si levado ao
extremo da humanização.
Ao se
acusar os Princípios da Filosofia do
Direito como obra conservadora, não está se levando em consideração o
momento e as condições em que a obra foi escrita, pois o que comumente se faz é
simplesmente repetir o que alguém já disse sem o devido olhar histórico.
Portanto, creio ser preciso definir o conceito de conservadorismo para que se
possa condenar ou não Hegel ao limbo do reacionarismo.Talvez por compreender o
significado da obra e o que representou naquele momento, Marx nunca tenha se
dirigido a Hegel dessa forma, como conservador. Mas como este não é o nosso
objetivo, discutir se Hegel em sua última obra cunhou sua filosofia política de
conservadora, deixo para o leitor uma recomendação que tenho na conta da
prudência: cuidado com a tradição, ela às vezes nos engana com certas reduções,
estabelecendo no plano das idéias uma confusão cujo tempo é o único remédio, e,
não sendo o tempo, tenho apenas por obrigação racional separar o joio do trigo,
identificar em Hegel um homem do seu tempo que de alguma maneira, hermética ou
figurada, mostrou as conseqüências do liberalismo e seu intento fragmentário,
individualista.
Uma
outra consideração importante a fazer relaciona-se ao fato de que a obra em
análise não é um tratado clássico do Direito. Sua preocupação central é de
outra natureza. O que Hegel está discutindo é o Estado e a possibilidade de
racionalizar o poder. A obra é - segundo Bobbio (1995) -, um desmantelamento da
tradição tratadista, sendo na verdade uma rearrumação sistêmica segundo seu
projeto ético-político. Hegel tem a intenção de fazer de sua obra um grande
tratado moderno da possibilidade de o sujeito existir no mundo objetivo com
outras vontades particulares na universalidade ética. O livro é a análise da Ética e da Política sob a tese da
unicidade. O comportamento do sujeito (ético) e a forma associativa (político)
têm em Hegel um tratamento diferente quando comparado ao dado por seus
antecessores. Estes analisam separadamente, ao passo que aquele relaciona ética
e política como subsistemas de um grande sistema. Não é a filosofia a
representação do real, mas o real sendo tratado e estudado pela filosofia num
combate atemporal. Hegel rejeita a utopia e a tem como sonho. Não é à toa que
seu conceito de filosofia está relacionado ao debruçar-se sobre o real e dele
extrair toda racionalidade possível. Em Princípios
da Filosofia do Direito, afirma “que
este nosso tratado sobre a ciência do Estado nada mais quer representar senão
uma tentativa para conceber o Estado como algo de racional em si.” [i]
O
DIREITO COMO DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA
“Uma
existência em geral, que seja existência da vontade livre, é o direito”.
Hegel.
Hegel
começa o seu tratado ético-político com a clara definição do direito, de modo a
situá-lo no movimento de si mesmo necessariamente:”O objecto da ciência filosófica do direito é a Idéia do direito, quer
dizer, o conceito do direito e a sua realização.”[ii]
A idéia do direito inclui o conceito do
direito como um sistema orgânico onde o fim se situa no plano da normatividade,
possibilidade da existência plena, isto é, uma existência que só não viva em si
mesma, mas procure o outro na expressão objetiva da realização. Não podemos
esquecer que a realização é um fenômeno ético, portanto, social, somente
factível em uma determinada organização política. O direito enquanto sistema
orgânico não está subordinado à sorte empírica, experimentação particular que
não pode dar conta do real. É antes de tudo um objeto filosófico, encontra-se
inserido na problemática filosófica. Conclui-se que seu conteúdo é universal,
pois o pensamento o compreende como real, como concreto.
Em sua
obra Princípios da Filosofia do Direito,
Hegel não tem um olhar exclusivamente jurídico, cuja preocupação atrela-se à
categorização legal sem levar em consideração a lei como produto cultural e
espiritual, como se a lei fosse uma vontade particular fora de sua realidade
temporal. No Prefácio, Hegel é peremptório quando afirma ser o indivíduo “filho
do seu tempo” - algo nem antes nem depois, mas simplesmente o efetivo -, pois a
lei, como qualquer produção humana, pertence ao espírito do momento. Se Hegel
combate o jurisdicismo, também aponta sua artilharia contra a utopia: o direito
nem é uma normatização atemporal como também não é um sonho.“A filosofia é a inteligência do presente e
do real, não a construção de um além que só Deus sabe onde se encontra.”3
É a
realidade, o concreto, a preocupação do pensamento enquanto fonte da reflexão
do espírito na efetiva realização da razão histórica. Encontrar o direito e
dele configurar o momento mais importante da sociedade é tarefa do filósofo,
visto que a filosofia tem o real como meio de promover o universal. O direito,
portanto, situa-se no interior da filosofia porque dele pretende extrair o seu
conceito, sua intimidade como ele é em si mesmo e sua realização positiva como
critério de liberdade, o indivíduo fazendo uso das instituições jurídicas com o
propósito de nelas realizar seus interesses. Só que o direito em Hegel
desdobra-se na universalidade positiva, que ao mesmo tempo impõe contemplar o
sujeito sem desvinculá-lo do universal: liberdade é cada vez mais a superação
do particular em benefício da vida ética, universal. O desdobramento do
conceito do direito é a realização da idéia filosófica da liberdade, o
desenvolvimento lógico da liberdade.
Toda
construção filosófica tem por fim último contemplar o homem naquilo que o
caracteriza na dimensão humanidade. Constitui ledo engano pensar que é no
abstrato que o filósofo encontra amparo para promover suas idéias, sua reflexão
e compreensão daquilo que contempla. O que o filósofo promove é a abstração
necessária, importante na tentativa do objeto desdobrar-se na captura do todo.
O uso da abstração não é incompatível com a realidade pensada. O equívoco é
tomar a abstração fazendo dela uma realidade construída no ideal como fuga do
real em si mesmo. São duas situações bem distintas no processo filosófico
necessitantes de esclarecimento. O real pode ser abstraído dele mesmo e tomar
suas contradições existentes sem suprimí-lo pela abstração tida por realidade.
Por isso Hegel, na tradição de Platão e Aristóteles, sobretudo na do
estagirita, constrói sua grande obra no esforço de situar o indivíduo nas
dimensões ética e política como se as duas dimensões necessariamente existissem
numa unicidade conditio sine qua non
da promoção humana no homem. Hegel entende que a dimensão política é a
realização da vida ética, a existência de valores tomados como universais na
garantia da efetividade do direito. O direito em última análise é a própria
racionalidade situando a vida comunitária como saída obrigatória da vontade
livre.“Essa realidade em geral, como
ser-aí da vontade livre, é o ‘direito’ que não há de ser tomado somente como o
direito jurídico limitado, mas como abrangendo o ser-aí de todas as
‘determinações’ da liberdade.”4
Hegel,
em sua Filosofia do Direito, constrói
a unidade do ético e do político dentro da positividade do direito, garantindo
ao Estado o papel de promover “o mesmo
que é um direito é também um dever; e o que é um dever é também um direito.”5 Nesse
sistema, as relações são obrigadas entre si, tentativa de superar o particular
por meio de ações recíprocas na construção comunitária de existência. Não basta
dizer que o homem é livre. Hegel compreende que é imperiosa a busca do
universal como fator integrativo das subjetividades no reino das necessidades.
O homem só é homem enquanto ser na comunidade, é o velho princípio aristotélico
da vida gregária, a indissociabilidade do homem de si mesmo enquanto
comunitário e pronto a identificar liberdade não só como exercício do movimento
segundo Hobbes, mas um valor de felicidade e universalidade, a superação dos
interesses particulares visando ao que é comum a todos.
Thadeu
Weber (1993), com muita propriedade afirma que o princípio fundador da ciência
filosófica do direito está dado: é a idéia de liberdade, idéia filosófica,
vontade livre que deve ser concretizada no nível das estruturas jurídicas,
visto que o projeto ético-político da Filosofia
do Direito é realizar o direito enquanto ethos, o dado particular se
transformando em universal.
“A verdadeira liberdade, enquanto eticidade, é não
ter a vontade como seu fim, [um] conteúdo subjetivo, isto é, egoísta, e sim
{um} conteúdo universal.”6 A
liberdade como desenvolvimento e efetivação da idéia do direito, quer dizer, o
conceito do direito e a sua realização, não se dará senão na dimensão
ético-política, na totalização de um conjunto que pensa o todo sem considerar
que esse todo não é a soma das partes, mas as partes sendo pensadas no e pelo
todo em si e para si. A dimensão humana em sua superação é a dimensão social:
concretização da subjetividade-objetividade. Porém, não podemos desconsiderar
que essa complexidade se dê aleatoriamente, sem uma garantia para que o reino
da liberdade possa proclamar-se. Toda essa organicidade precisa de um elemento
ordenador, que ponha permanentemente o projeto racional em exercício. Esse
elemento é o Estado, Deus se pronunciando aos homens e apresentando a eticidade
como o reino dos céus na comunidade humana.
2- O
ESTADO COMO REALIZADOR DO DIREITO
“O
Estado é substância ética autoconsciente.”
Hegel
A
realização do direito não aconteceu em outro plano senão no histórico, palco de
todos os dramas da humanidade, quer como grande momento de elevação espiritual,
quer como estagnação permeada pela mediocridade. É na história que se processa
o espírito. Dentro dessa materialidade, o homem encontra os elementos
constitutivos do projeto do direito enquanto a realização da vontade livre, por
sua vez desejando uma garantia de sua efetividade. A vontade livre deseja a
plena manifestação de si mesma, e para isso deve superar “a comunidade dos interesses
pessoais e particulares” (a família), bem como “o campo de batalha dos interesses individuais de todos contra todos”
(sociedade civil-burguesa). Essa caminhada da vontade livre, que somente se
realiza naquele ambiente capaz de guardar o universal como necessário e
racional, é o Estado pela sua própria natureza. “O Estado é a vontade divina como espírito presente ou actual que se desenvolve na formação e organização
de um mundo.”7 Ao contrário da família e da sociedade civil, o Estado
decisivamente contribui para “a unidade
da universalidade com a particularidade”. No Estado o homem encontra as
condições objetivas da vida ética, no seu interior a norma assume um caráter
imperativo, dela sai a direção e determinação da objetividade do indivíduo, o
que quer dizer que o Estado como instância objetiva, concreta, torna o
indivíduo objetivo, concreto, possuidor de direitos e deveres, assim como o
Estado também é possuidor de direitos e deveres. Hegel lê o Estado como árbitro
natural na síntese de prevalecer o substancial em detrimento dos interesses
egoístas que infelicitam os homens. Hegel não admite que o Estado obstaculize o
sujeito, impeça o livre curso do desdobramento das liberdades. Pelo contrário,
o Estado é o garantidor dessa mesma liberdade como idéia central do direito em
sua suprema realização. Por isso, sendo o Estado o reino da eticidade, é o
centro gerador da normatividade, ou seja, dele partem leis cujo objeto-objetivo
é a perpetuação da liberdade como condition
sine qua non do mundo governado pela razão. O Estado é a universalidade que
supera as particularidades não extingüindo-as, mas fundindo-as em uma
expectativa solidária (o que na família é o amor) consciente de si como fim
absoluto.
“Liberdade e igualdade são as categorias simples
nas quais com freqüência se resumiu o que deveria constituir a determinação
fundamental, o fim último e o resultado da Constituição.”8. Para
Hegel, somente o Estado assegura ao sujeito a possibilidade da liberdade e da
igualdade. Nele as leis necessariamente são racionais e, como tal, a efetivação
se processa e conclui, na Constituição, o coroamento da racionalidade estatal,
o momento em que a liberdade é assegurada por fundamentos concretos e não
abstratos. Na Constituição existe uma ordenação de determinações onde os papéis
são claramente expostos de tal forma que o indivíduo não está sujeito aos
humores subjetivos das vontades particulares, muito menos da opressão daqueles
que exercem alguma autoridade estatal. Se a alma do Estado é a Constituição, a
alma da objetividade é a racionalidade, visto que a Constituição é realização
da razão em virtude de sua própria necessidade. Não se garante universalidade,
ou melhor, não há liberdade sem lei. A lei é o princípio de autoridade do mundo
moderno, inaugurada com a Revolução Francesa de 1789. A lei define, portanto,
os limites da particularidade dentro do sistema de universalidade. Só há
liberdade sob o império da lei, fora dessa o que reina é a arbitrariedade, o
sistema de necessidades implementando o egoísmo, o individualismo.
No
entendimento de Hegel só existe Estado em razão da configuração de uma
Constituição. Norberto Bobbio (1995), com muita clareza, salienta que a
distinção entre lei e costume está no fato de que, diferente do costume, é pela
promulgação que a lei torna-se universal, conhecida, obrigatória, exigindo dos membros
da comunidade o seu pleno cumprimento como forma de garantir à própria
comunidade o espírito de liberdade e igualdade.
Em Hegel
o direito é liberdade enquanto regra, ou mesmo se definindo como a positivação
exigível na continuação de uma universalidade justificável pela necessidade da
liberdade enquanto desejo do indivíduo. O que Hegel quer do Estado soberano é
sua transformação em Estado de Direito, capaz de garantir a liberdade como se
fosse a própria felicidade. Se Kant entende o Estado como o assegurador da
liberdade para o homem buscar a felicidade segundo o seu arbítrio, Hegel,
diferentemente, entende que a liberdade é a própria condição de felicidade: o
reino da eticidade. O Estado não pode
deixar de ser a positivação do direito, mas também não pode valer-se dessa
positivação para obstruir o direito como desdobramento de si como liberdade. Ou
o Estado é o direito enquanto realização da liberdade através da normatização
constitucional, ou será simplesmente o estado da arbitrariedade, famílias em conflito
na sociedade civil-burguesa. Hegel antevê o papel do Estado no mundo burguês.
Se não é um liberal como Locke e Smith, muito menos é um conservador como
Constant e Toqueville. Apenas percebe que o Estado não pode ser um mero
espectador, uma simples moldura do quadro social, ornamentando uma tela cuja
pintura é a “luta de todos contra todos”, o reino das vontades particulares. O
Estado em Hegel é a superação das contradições, por isso não pode ser um
liberal, muito menos um conservador.
Châtelet
(1985), quase que conclusivo, observa que no pensamento de Hegel - na
construção de seu entendimento político - o Estado é puro realismo, tanto que é
somente nele e através dele que a humanidade enquanto humana se realiza, isto
é, se efetiva na condição racional de escolher o universal como forma de
garantir a sobrevivência da particularidade. Châtelet claramente assegura que
em Hegel a liberdade nada mais é que um fato e, como tal, só pode ser real em
si, mas que precisaria do Estado para existir para si (1985).
“Se o Estado é o espírito objectivo, então só como
membro é que o indivíduo tem objectividade, verdade e moralidade. A associação
como tal é o verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim.”9. Em
suma, a condição existencial da configuração do direito e sua mais profunda
realização é o Estado, entendido em virtude de sua função voltada como forma de
concretizar a liberdade. Liberdade esta que não é outra coisa senão a realidade
da expressão do homem, um ser em si na relação com todos. A liberdade não
implica na negação do singular, implica na superação da particularidade
objetivando o todo de maneira a ressaltar essa mesma particularidade. O direito
em Hegel é condição do Estado, ao passo que o Estado é a efetivação do direito.
3- O
SUJEITO E SUA PERSPECTIVA POLÍTICA
“O destino racional do homem é o viver no
Estado”.
A
perspectiva política do sujeito é viver no Estado porque nele sua existência
não é só concreta como racionalmente necessária, isto é, real, universal, visto
que nesta a particularidade é imanente. A tarefa essencial do Estado é a
promoção do indivíduo na efetividade ética, proporcionando condições para que a
individualidade empírica torne-se universal na medida que se pense não só a
partir de si, mas em si como algo possível no outro. É no interior da
universalidade que o indivíduo se conquista e se expande. O universal não é
nada mais que o mundo ético, o social. Por isso que em Hegel, como assinala
Manfredo (1993), o cerne da existência humana é o processo de elevação do
indivíduo empírico à esfera da universalidade teórica e prática, da comunhão
das consciências entre si. Sendo assim, Hegel, na velha tradição aristotélica,
assinala que somente compreende a humanidade do homem na vida ética, por meio
das instituições, o verdadeiro chão da
liberdade efetiva.
Hegel
não tem por escopo suprimir o indivíduo diante do Estado, apenas assevera que o
mesmo indivíduo, na possibilidade de sua expressão, entendido como momento da
liberdade, só é possível no Estado, que pela sua natureza é o garantidor da
manifestação das subjetividades. Não se pode esquecer que quando Hegel pensa o
Estado não pensa outra coisa senão ordem
jurídica universal, isto é, uma normatização desdobrada da realização ética
no social. A lei só pode ser nessa perspectiva, centro ordenador da
estabilidade orgânica de uma vida comunitária, certeza de que por meio de sua
realidade um determinado ato passe a ser ou não repreendido; a concepção de que
ninguém pode ser punido ou absolvido sem uma lei anterior que de certa forma
defina o ato. É através da lei que se estabelece uma luta fundamentalmente
contra toda espécie de arbítrio, limites do público e do privado, a garantia de
que posso ser o que desejo dentro de um projeto que se pense universal. Se o
direito como objetivo se expressa na lei, a lei, sobretudo a Constituição, é a
pura manifestação do direito como realização da liberdade. Hegel manifesta
preocupação com o entendimento liberal de liberdade, que submete o Estado aos
interesses e arbítrio da individualidade, que irracionalmente não observa a
impossibilidade da existência do indivíduo fora da sociedade. Liberdade em
Hegel não é a mesma pensada por um liberal. Para este, a liberdade é a
manifestação da individualidade sem levar em consideração a comunidade como um
valor necessário: a cada um segundo a
sorte natural. Hegel, portanto, compreende a liberdade como um valor
necessariamente associado ao sentido ético, por fim, dentro da vida
comunitária. Não é a supressão da subjetividade que Hegel almeja, mas a
subjetividade unilateral, contraposta ao universal.
“Quando
um grande número de indivíduos desce além do mínimo de subsistência que por si mesmo se mostra como o que é
normalmente necessário a um membro de uma sociedade, se esses indivíduos
perdem, assim, o sentimento do direito, da legalidade e da honra de existirem
graças à sua própria actividade e ao seu próprio trabalho, assiste-se então à
formação de uma plebe e, ao mesmo tempo, a uma maior facilidade para concentrar
em poucas mãos riquezas desproporcionadas”. 10.
Não
podendo ser um liberal devido à perspectiva que constrói para o sujeito, pondo
no Estado as condições evidentes de sua efetividade ética, tanto assim que as
carências são tratadas de maneira a serem eliminadas pelo próprio Estado
enquanto ação do direito normatizado, Hegel entende que mesmo o Estado não
sendo filantropo reflete uma ordem pública plenamente capaz de apontar caminhos
à superação das carências, e o elemento dessa superação é a possibilidade do
trabalho, meio pelo qual o homem não só cria seu sustento como movimenta a
sociedade para o sustento mútuo. Portanto, em Hegel liberdade tem um valor de
felicidade, ou seja, é a condição necessária à construção do bem-estar do
sujeito e da comunidade.
No
parágrafo 242, em especial no final da nota
de Princípios da Filosofia do Direito, Hegel é peremptório quando
atribui ao Estado o papel de objetivar instituições públicas voltadas para o
processo de eliminação de carências. Hegel assinala que o Estado tem a
obrigação - embora não recrimine a ação particular - de promover o bem-estar
social lenta e gradualmente. No Estado, o reino da eticidade, a razão que
efetivamente se deu na história, a existência da miséria depõe contra sua
própria racionalidade. Fichte argumenta que num Estado racional é absolutamente
inconcebível a existência da miséria. Hegel, na mesma linha de argumento, não
só clama o Estado como racional, mas também como sendo a própria manifestação
divina, abomina, assim, toda e qualquer espécie de miséria. Se o Estado é a
superação da sociedade civil-burguesia, é em si seu desdobramento a superação
pela eliminação da miséria na perspectiva da real racionalidade do seu sentido
lógico e histórico. No Estado o sujeito é concreto. Pode-se afirmar que para
Hegel o Estado é o ingresso do homem na humanidade, momento em que, de uma
forma ou de outra, tem-se a pretensão de superar as condições de carência que
aviltam a condição humana.
Quanto
ao pensamento político de Hegel, Losurdo (1998) não tem ilusão. Lembra que o
filósofo foi fruto do seu tempo e, mesmo limitado aos nossos olhos, se
preocupou com as agruras da desigualdade entre os homens. Pondera ainda
Losurdo, que Hegel tinha no direito inglês a pior maneira de se constituir um
verdadeiro critério de justiça, ou seja, existe somente para os ricos, não para
os pobres. Hegel, dessa maneira, faz de sua anglofobia um discurso contrário ao
liberalismo e a todo direito vigente que procura separar violentamente as
pessoas segundo seus bens. Se Hegel entende que a distinção emtre ricos e pobres é notável, o direito enquanto
fundador do Estado é a factibilidade da liberdade e o meio racional de eliminá-la
notavelmente. O direito é um sistema universal que se obriga a absorver em
seu seio toda e qualquer particularidade no sentido de sua preservação. Com
isso busca a superação das adversidades próprias do ”reino das necessidades”.
No
sistema lógico hegeliano o pensamento absorve o ser “através de uma metafísica de identidade absoluta, não há diferença
dentro do sistema de identidade (...) a essência da abstração não está em se
prescindir da matéria sensível, mas na elevação do sensível à estrutura
universal do conceito... pois pensar o mundo empírico significa transformar-lhe
o modo empírico de ser e elevá-lo ao nível de universalidade”. 11. Face à
exposição de Carneiro Leão, penso não ser outro o ensinamento senão a
identidade do homem com a comunidade, sua transformação em ser concreto como
negação a uma abstração liberal, que vê o homem somente em si na mais profunda
aberração de sua essência, a vida ética. Hegel está dentro do liberalismo a
contemplar sua positividade e desmascarar o individualismo como encontro do
sujeito consigo mesmo. Assim como o grande artista no término de sua obra funde
particularidade e universalidade, mergulho na infinitude, no racional “assim tem
que ser”, o indivíduo agora é político-cidadão. Portanto, concreto na
comunidade em que vive, ingressa na racionalidade como forma de libertar-se do
arbítrio e dos ventos da particularidade que o prende às contingências fruto da
irracionalidade. Por fim, o indivíduo marcha da família enquanto pessoa - o
reino da subsistência - para o universal, o Estado, após superar o reino do
sistema de necessidades (egoísmo), a sociedade civil-burguesa.
CONCLUSÃO
A
intenção central de Hegel é mostrar que a razão necessariamente se efetiva no
mundo e não que ela seja ou mesmo permaneça uma idéia abstrata. Sua Filosofia do Direito sendo um tratado
ético-político, uma reflexão sobre a possibilidade da normatização, uma
filosofia da sociabilidade humana, personifica o esforço racional de Hegel em
apresentar a síntese da vontade que deseja se fazer vida presente. Hegel tem a
filosofia como compreensão daquilo que é. Portanto, sua Filosofia do Direito, além de atender a tal princípio, lança um
olhar penetrante sobre toda a história do pensamento político, apresentando
observações genuinamente importantíssimas. Pensa e realiza uma busca do ethos
logicamente possível, numa Alemanha que reclama um mínimo de organização para
operar aquilo que em outras sociedades já está em marcha bem adiantada. Hegel
não só detecta a realidade histórica como considera algumas saídas levando em
conta o que é a Alemanha. Conhecendo a Alemanha dentro de sua peculiaridade,
leva ao extremo o seu logicismo, esteira vital para argumentar que o caminho é
o racional, sem sobressaltos e muito menos sem retrocessos. Assim como a Filosofia do Direito tem por objeto o
direito, o direito tem por objeto a liberdade.
Manfredo
pondera que a tese hegeliana é a formação de uma vontade racional, que só pode
se efetivar no contexto e através do condicionamento da eticidade racional de
um mundo vivido socialmente. Ao contrário da vontade geral de Rousseau, a vontade racional de Hegel não corre o
risco de padecer por acidente, sua raiz é profundamente necessária e universal,
não está subordinada às paixões, é obra do espírito, de um espírito que superou
a si mesmo e busca além de si a referência comunitária. Hegel, como bem
acentuou Konder (1991), é uma “razão quase enlouquecida”, onde tudo está
subordinado ao desejo da razão.
Se em
Hegel o homem é mais que indivíduo, ou seja, sua efetividade é a própria vida
comunitária; se a verdadeira eticidade só existe na forma da coisa pública,
então indivíduo e comunidade se identificam, se necessitam logicamente por uma
razão muito simples: o particular existe no universal tanto quanto o homem
existe na comunidade; um não é a expressão do outro, mas a síntese em uma
superação. A Filosofia do Direito é
esse coroamento, o Estado é o palco da verdadeira existência subjetiva. O
direito se apresenta como o resultado de uma elaboração histórica somente
possível no ocidente, pois sua realização é a configuração da liberdade
enquanto universalidade política: todos podem gozar a liberdade porque sua
essencialidade já está presente no indivíduo como vontade. A Revolução Francesa
surge anunciando a lei em detrimento de uma vontade particular, isto é, a lei
na plenitude de uma vontade de liberdade. Hegel, filósofo do espírito (em
última análise, do homem), permanece imbuído da perspectiva de que o direito
vincula-se à religiosidade, a unificação deste com Deus sob a encarnação da
unidade do pensamento abarcando o ser. No direito o indivíduo é protegido e sua
individualidade, necessitante.
A era da
política, o momento da polis, tem o
seu marco no direito, melhor dizendo: o direito é o fundamento da política por
meio de uma unicidade necessitante. O direito marca claramente a maturidade
pela qual o homem se efetivou enquanto ser racional. Para ser mais claro, o
direito é enunciado universal agora de forma normativa, impera no sentido de
uma subordinação capaz de promover o equilíbrio, ensejando, por assim dizer, o
transcorrer da vida. Hegel está na Alemanha que vive uma revolução na cabeça, e
é nessa cabeça que se pretende superar a multiplicidade de ordenamentos que
agrilhoam o indivíduo. É no pensamento que o homem encontra sua moralidade,
portanto, sua liberdade.
Compreendo
que o pensamento de Hegel em sua obstinada forma de absolutização tem sua
matriz na história cultural da Alemanha desde Lutero. A filosofia alemã até
Hegel é a busca da totalização do ideal com o real, do real com o racional, do
racional com a vida ética. Hegel é a síntese desse olhar germânico sobre o
mundo, sobre um povo fragmentado, numa pluralidade de projetos e mediações tão
díspares dentro de uma cultura que aspira unidade com a intenção de realização
da vontade livre.
Se Hegel
não foi um revolucionário na tradição francesa de 1789, também não foi um
conservador na tradição da Santa Aliança de 1815. Hegel foi simplesmente um
filósofo. Embora não rompendo efetivamente com o liberalismo, mostrou que esse
mesmo liberalismo, nas suas contradições e conseqüências obscuras, privilegia o
individualismo na forma de sistema. Por fim, pensa Hegel, o Estado, a
universalidade contrapondo-se à individualidade restrita. A Filosofia do Direito não é normativa como fundamentação de um
princípio de ação, mas uma teoria filosófica da efetivação social, das
estruturas universais da sociabilidade.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BIBLIOGRAFIA
PRINCIPAL
HEGEL, G. W. Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. 4. ed., Lisboa,
Guimarães Editores, 1990.
___________________.
Enciclopédia das Ciências Filosóficas.
Vol. III. A Filosofia do Espírito. São Paulo, Edições Loyola, 1995.
___________________.
Filosofia da História. 2ª ed., Brasília, Ed. UnB, 1999.
BIBLIOGRAFIA
BÁSICA
BOBBIO,
Norberto. Estudo sobre Hegel - direito,
sociedade civil, Estado. 2. ed., São Paulo: Editora Brasiliense / Unespe,
1995.
_______________.
Teoria Geral da Política - a filosofia
política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000.
CHÂTELET,
François. O pensamento de Hegel. 2.
ed., Lisboa: Editorial Presença, 1985.
HARTMANN,
Nicolai. A Filosofia do Idealismo Alemão.
2. ed., Lisboa: Fundação Caloreste Gulbankian, 1983.
HYPPOLITE,
Jean. Introdução à Filosofia da História
de Hegel. Rio de Janeiro: Eljos Editora, 1995.
LOSURDO,
Domenico. Hegel, Marx e a Tradição
Liberal. São Paulo: Editora Unesp, 1998.
OLIVEIRA,
A. Manfredo. Ética e Sociabilidade.
São Paulo: Edições Loyola,1993
ROSENFIELD,
Denis L. Política e Liberdade em Hegel.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
WEBER,
Thadeu. Hegel, liberdade, Estado e
história. Petrópolis: Editora Vozes, 1993.
BIBLIOGRAFIA
SUPLEMENTAR
ANTISSERI,
Dário & REALE, Giovanni. História da
Filosofia. vol. 3. Do romantismo até nossos dias. São Paulo: Editora
Paulinas, 1991.
CASSIRER, Ernest. El Problema del Conocimiento la filosofia y en la ciencia modernas.
Vol. III. Los sistemas poskantianos. México:
Fundo de Leitura Econômica, 1993.
HYPPOLIATE,
Jean. Gênese e Estrutura da Fenomenologia
do Espírito de Hegel. São Paulo: Editora Discurso Editorial, 1999.
KONDER,
Leandro. Hegel, A Razão Quase
Enlouquecida. Rio de Janeiro: Editora Campus,1991.
LEÃO,
Emmanuel Carneiro. Hegel, Heidegger e o
Absoluto, Crise do Pensamento Moderno. Nº 25, Revista Tempo Brasileiro
Notas:
[i]. Hegel, Princípios da Filosofia do Direito -
PFD, p.14.
2. Idem, p.19
3. Idem p.
12
4. Hegel,
Enciclopédia das Ciências Filosóficas - ECF, p. 281
5. Ibidem
6. ECF, p.
263
7.
PFD, p. 241
8.
ECF, p. 308
9.
PFD, p. 225
10.
PFD, p. 217
11. Carneiro
Leão, Revista Tempo Brasileiro, 25, p. 15
Resumo: O presente texto
tem por objetivo apresentar o significado de direito em Hegel e sua efetivação
no plano histórico-político. Mostrar que em Hegel a idéia de direito é a plena
realização da liberdade.
Palavras-chave: Estado, direito, liberdade e
universalidade.
* O autor é bacharel em Direito, licenciado em Filosofia, mestrando em Ciência Política pelo PPGCP do IFCS/UFRJ, e bolsista pela FAPERJ.