SONHO, ESPERANÇA, EXPECTATIVA: MOMENTO HISTÓRICO DO IMAGINÁRIO BRASILEIRO 1

 

Gisálio Cerqueira Filho *

 

                  Embora uma boa parte da mídia já fale de Lula como clone de FHC e ressalte mais continuísmo do que continuidade, para aludir ao revés ao bordão político de José Serra, candidato do PSDB (“continuidade sem continuísmo”), o fato é que o real - esse conceito lacaniano tão misterioso quanto virtual - ainda e sempre se inscreve no desejo do sonho, no registro da fantasia expectante, na esperança enfim.

                  Ainda não temos no Brasil de hoje nada do pessimismo e decepção que, em passado recente, assistimos em relação ao socialismo francês de François Mitterand ou à frente de oposição argentina de Fernando de La Rua. Por isso, e acrescente-se que o governo Luiz Inácio Lula da Silva mal teve tempo de se instalar, ainda há expectativa e esperança no ar; mais expectativa que esperança.

E, de todo modo, é legítimo sonhar. E igualmente interpretar o sonho dos brasileiros, esses brazilliants (como nos chamaram um jornal inglês e outro alemão), pelo menos em relação ao futebol e à maximização da exploração do trabalho.

                  Se a vida é sonho como afirma Calderón de La Barca, para os sonhos, convergem os desejos nossos de cada dia; sempre na pegada pulsional redimensionada pela ideologia. Portanto, a ideologia, porque inseparável do desejo, conjuga-se no tempo verbal do futuro do pretérito.

                  Mas eu gostaria de ilustrar de uma forma bem didática, embora não superficial, esse núcleo duro do desejo em relação ao nosso tema: enfim Lula ...lá a a a ... Aqui, no nosso caso concreto, o tal objeto “a”, em seu sentido mais transparente, o que Jacques Lacan denomina l’objet petit, o pequeno objeto que preenche um vazio central, um tesouro escondido que “agalma”, no alvo central da coisa que desejamos. Recorro a uma já célebre demonstração utilizada por Slavoj Zizek2: um desses produtos tão populares, uma guloseima de chocolate, que no Brasil chamamos de Kinder Ovo e na Europa é conhecido como Kinder Surprise. Trata-se de um ovo de chocolate pequeno, oco por dentro, que uma vez quebrado pelo consumidor revela um brinquedo-surpresa de plástico no seu interior ou diminutas peças com as quais se monta um brinquedo. É corriqueira a observação de que o consumidor, sobretudo quando criança, tem os olhos mais voltados para o brinquedo oculto do que propriamente para o ovo de chocolate. O exemplo é excelente para explicar o mote lacaniano “Eu o amo, mas inexplicavelmente amo alguma coisa em você mais do que você mesmo e, portanto, o destruo”. Não é o que está a ocorrer com tantos no PT e fora do PT com relação a Lula? O tal vazio material no centro do ovo de chocolate representa uma lacuna estrutural por conta da qual nenhum bem, isto é, nenhuma das decisões políticas tomadas por Lula satisfaz plenamente a grande expectativa que a sua eleição e posse ensejaram. Isto ocorre, de fato, com qualquer produto ou mercadoria que sempre prometem mais do efetivamente são. A função desse “mais” é preencher a falta de um “menos”; uma vez que qualquer mercadoria nunca cumpre sua (fantasiosa) promessa.

                  O que queremos dizer é que talvez possa existir uma homologia entre essa estrutura do produto (da mercadoria) e a estrutura do sujeito universal moderno; isto para não falar que no mercado político-eleitoral cada vez mais se vende a liderança ou personagem como uma mercadoria. Aí está o marketing político e o publicitário Duda Mendonça que não nos deixam mentir.

                  Os sujeitos humanos à medida que são sujeitos dos direitos humanos universais também não funcionam como esses ovos Kinder?  

                  Na França, com evidente resquício racista do colonizador, pode-se comprar ainda nos dias de hoje um pequeno bolo de chocolate, oco por dentro e em forma de bola, que é chamado de la tête du nègre (cabeça de negro); sendo o vazio do seu interior metáfora para a ignorância dos negros (“como a cabeça de um negro burro”). A reposta do tipo humanista-universalista a esse referente racista pode ser dada pelo  significante Kinder-ovo. Homens e mulheres somos negros, brancos, ricos, pobres, altos, baixos, gordos, magros, cristãos, judeus, muçulmanos, budistas, de nacionalidade variada, etc., mas no fundo de cada um de nós existe um equivalente moral ao brinquedo de plástico no interior do Kinder-ovo. Slavoj Zizek cuida em interpretar este equivalente moral como uma qualidade essencialmente humana que é digna de um certo nível de respeito: um fator “X”; com base na posse deste fator “X”, no reino político, somos obrigados a respeitar igualmente todos os seres humanos.

                  Resumindo e fazendo analogia às avessas com o Kinder-ovo: tratando-se de pessoas, pode ser um chocolate branco, escuro, chocolate-amargo, chocolate-ao-leite do tipo padrão, com ou sem nozes, passas, castanhas; no seu interior, haverá sempre o mesmo brinquedo plástico (em contraste com o Kinder-ovo que são iguais por fora, mas cada um tem um brinquedo diferente oculto no interior).

                  Neste fator “X” de igualdade humana ancora e repousa a pulsão desejante; melhor seria dizer, inquieta-se o desejo...

 

Fome zero & grampos

novas propostas, velhos hábitos

 

                  Sempre com o objetivo de exemplificar: vejamos um episódio ocorrido no âmbito do Programa “Fome Zero”, para não falar da infeliz manifestação do Ministro Grazziano quando se referiu à necessidade de “mantermos os nordestinos por lá (no Nordeste, alimentados) ou então continuaremos a ter os nossos carros blindados por aqui” (em São Paulo).

                  Mas aqui o episódio é outro; trata-se da formidável campanha que a Nestlé (empresa multinacional suíça considerada a maior indústria de alimentos no país) vem fazendo seja no âmbito do Programa “Fome Zero” (doando alimentos, 10 mil toneladas, além de empregos a 2.000 jovens), seja no âmbito de uma formidável campanha publicitária que solicita a todos solidariedade e união para... o combate à fome, mas não só isso; trata-se de um apelo publicitário ou megalobby, que muitos já chamam de “altruísmo de resultados”. Não importa, o considerável aporte contra a fome no Brasil chegou junto com o pedido de socorro para completar a compra da Fábrica Garoto (já que falamos de chocolates), cujo processo encontra-se atualmente no CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Quando a Nestlé comprou a Garoto, suplantando a proposta da LACTA, por ex., a SDE (Secretaria de Desenvolvimento Econômico) considerou a possibilidade do negócio ser lesivo à concorrência e ao consumidor. Segundo especialistas, e caso o negócio se efetivasse, a Nestlé monopolizaria o mercado de coberturas de chocolate (100%), dominaria os segmentos de cobertura sólida (88,5%), tablete de até 500 gramas (75,9%), caixas de bombons (66%) e chocolates de consumo imediato (63,1%); números nada desprezíveis.

                  Recentemente gestores da multinacional Nestlé estiveram com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O governador do Espírito Santo, Paulo do Hartung, muito preocupado com as finanças do seu estado, vê com bons olhos o negócio. Muitos interesses estão obviamente em jogo e até mesmo alguns sindicalistas defendem a fusão Nestlé/Garoto sem restrições de qualquer natureza.

                  O fato é que justamente nesse momento crucial para a Nestlé no Brasil, ela vem se juntar de uma forma sonora ao programa “Fome Zero” puxando o coro dos contentes. Entretanto, o diretor de Assuntos Corporativos da empresa diz ser mera coincidência o fato dois assuntos (o julgamento no CADE e a contribuição para o Fome Zero) estarem sendo tratados simultaneamente. Pode ser, mas é conveniente que o caso seja acompanhado de perto.

                  O mesmo se dá nos chamados grampos telefônicos que foram descobertos, na Bahia, contra políticos e profissionais liberais; muitos desafetos do poder estadual baiano e inclusive, o atual presidente (PT) da Câmara dos Deputados. Aproveitando de decisão judicial para averiguações policiais num caso de seqüestro falsificou-se a lista daqueles passíveis de escuta telefônica, com crime de falsificação ideológica e escuta telefônica ilícita. Que o atual senador Antônio Carlos Magalhães (ACM), atualmente apoiando o governo Lula,  possa estar envolvido é questão a ser apurada, mesmo com o alarido que uma CPI ou processo na Comissão de Ética do Senado possam provocar, até mesmo atrasando o trâmite legislativo das reformas consideradas inadiáveis. Todavia, o mais grave é que a determinação tenha partido da Secretaria de Segurança com o envolvimento da Polícia Civil. Isto atesta o desassombro com que a polícia se auto-investe de funções de polícia política mesmo no Estado de Direito Democrático. Isto não compromete apenas a Polícia Civil; isto inviabiliza a própria construção da democracia e, mais, conspira contra qualquer transformação efetiva da Polícia Política (do regime militar) em Polícia Cidadã (Estado de Direito Democrático). A ocorrência de fatos desta natureza, se passados desapercebidos, mesmo em nome da aliança governamental com ACM ou PFL, comprometeriam todo esforço na direção de estratégias democráticas de controle social que implicam necessariamente numa completa re-estruturação do sistema de segurança pública. Este é o nó górdio da segurança pública: desativar todas as práticas, inclusive simbólicas, da “polícia política”, alimentadas pela ideologia da segurança nacional e pelo arbítrio.

 

Juros elevados na economia

Uma traição política?

 

                  Bem, por essa ninguém esperava. Parece que Lula está sendo mais realista que o rei, pois não só uma política de juros altos segue sendo mantida pelo Banco Central quanto a taxa básica de juros atingiu patamar altíssimo. Sem falar que Henrique Meirelles, presidente do BC, vem do Bank of Boston. E criticava-se Armínio Fraga por ter sido funcionário do megainvestidor George Soros ... Além do que, o Governo diz estar de mãos atadas por contratos leoninos celebrado por FHC no que concerne às políticas dos setores petrolífero, energético e de telecomunicações. A ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, chega a afirmar que é “necessário reestruturar a pasta e recuperar os instrumentos de governo” (O Globo, 02/03/03, Caderno Economia, p. 21). Nas suas palavras “as condições gerenciais e de fazer política foram esterilizadas” (O Globo, idem).

                  Luiz Carlos Bresser Pereira, por duas vezes Ministro de Estado e ligado ao PSDB, faz uma sugestão que, no caso, vem em socorro de Lula (Folha de São Paulo,16/02/03, Opinião, p.3). Ele distingue mercado financeiro personalizado, subjetivado” (fazendo uso de terminologia psicanalítica) de mercado institucional, que considera como “verdadeiro”. O primeiro acha, opina, tem idéias, se coloca contra ou a favor, etc. Claro, ele é formado por aqueles que detêm o capital financeiro (o que inclui também alguns economistas, operadores, enfim quem entende do riscado). O mercado institucional é menos identificado com grupos sociais e mais com um espaço competitivo onde se compram e vendem títulos de acordo com determinadas regras. Este último seria constituído muito mais pelos que compram e vendem no dia a dia da economia; sendo regido mais por princípios de racionalidade do que pela emoção. O chamado “efeito de manada” nunca estaria deste lado pois ele é cego para a racionalidade. Assim, o mercado subjetivado é aquele que funciona na base do pragmatismo, muda de opinião a cada hora, com freqüência se equivoca; mas nunca pode ser qualificado como dogmático, sobretudo nos seus erros. Freqüentemente um e outro mercado se superpõem, mas o que parece ser fundamental é considerar que o adversário principal do governo Lula esteja no mercado subjetivado e não mercado institucional. Este último é, na verdade, o campo do jogo, onde o embate se realiza, e deve ser preservado. Quando chegar a hora de mudar a política macro-econômica, e estejamos certos que ela virá, esta diferenciação será de fundamental importância. Talvez por aí se possa avançar na direção que uma combinação que hoje parece inusitada entre socialismo (redistributivismo) e mercado, algo que o crescente avanço da tecnologia de informações parece não abrir mão e em escala planetária.      

 

 

* Doutor em Ciência Política (USP) e Professor Titular de Sociologia. Docente e pesquisador senior na Universidade Federal Fluminense (UFF). gisalio@antares.com.br

 



1  Palestra realizada como Aula Inaugural na Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro (SPCRJ) em março de 2003.

2  Ver “Caderno MAIS” da “Folha de São Paulo”, 22/12/02.