CONTRIBUIÇÕES
DA CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DO CONSUMISMO MODERNO
Maurilio Lima Botelho*
É
comum, nas grandes metrópoles contemporâneas, o comportamento de certos
indivíduos que, diante de carência afetiva, tristeza, solidão, tensão,
frustração profissional, estresse ou
simples tédio, vão às compras. A aquisição de mercadorias, evidentemente, não
leva a uma eliminação desses problemas, mas tem um efeito atenuante, paliativo.
Também o passeio no shopping, a
experimentação desinteressada de roupas ou calçados e a contemplação das
vitrines estão se tornando passatempos comuns, articulados ou não à falta de
condições econômicas adequadas para se esvair em compras (embora se torne cada
vez mais freqüente o consumo compulsivo que ignora a falta de crédito). Esse
ato de refrear uma inquietação a partir do consumo é um exemplo banal,
vulgarizado até, da íntima relação
que há entre a psicologia individual, entre modos comportamentais e estados
sentimentais e a estrutura econômico-social moderna.
Considerar
essa relação, evidentemente, não é definir a psique a partir da base ou
infra-estrutura econômica da sociedade[1],
mas pensar numa estreita relação entre os processos sociais e o modo de
apreensão (sensorial e cognitivo) desses processos, ou levar a sério aquela
unidade de ser e consciência que postulava a filosofia clássica alemã. Levando
em conta que o objetivo central da obra A
ética romântica e o espírito do consumismo moderno, de Colin Campbell, é
demonstrar os vínculos entre os valores românticos e o consumismo moderno,
talvez esse tipo de interpretação pudesse apontar algumas relações mais
profundas entre o comportamento insaciável do hedonista moderno, a
racionalidade protestante e o romantismo, além das significativas ligações
apontadas pelo sociólogo inglês.
Se
se considera a mercadoria como a unidade básica do mundo moderno, como o nexo
responsável pela própria socialização dos indivíduos, deve-se levar em conta
que a estruturação do imaginário social, assim como a estruturação da subjetividade
individual, baliza-se por essa forma social. Assim, seguindo a crítica da
economia política marxiana e a ênfase hegeliana realizada pelo Lukács de História e consciência de Classe, Alfred
Sohn-Rethel formulou a tese da identidade secreta entre o sujeito
transcendental kantiano e a forma mercadoria, apontando que a forma da própria consciência é devedora
da forma mercadoria, assim como a forma sujeito que envolve os indivíduos é
plasmada pela forma que assumem os produtos do trabalho dos homens em condições
de mercado. O desenvolvimento dessa relação pode se mostrar bastante profícuo
para a análise da relação entre os estados psicológicos do indivíduo moderno e
o ato de consumo, na medida em que se considera que o próprio ato de troca é um acontecer que não acontece: dado o
fato de que a mercadoria é um resumo abstrato de trabalho passado que tem sua
expressão no valor, o ato de troca é um ato que só "toca" a forma
social da mercadoria, não o seu conteúdo material – este, por sinal, é
completamente abstraído e ignorado, porque o objetivo da troca é,
primordialmente, a valorização de valor, sendo a satisfação das necessidades um
efeito secundário. Assim, se a troca "se funda na pura ausência de um
acontecer" (Sohn-Rethel, 2002), a satisfação por parte do consumidor é
necessariamente protelada. Nesse sentido, pode-se afirmar que "o
consumidor moderno (...) se caracteriza por uma insaciabilidade que se eleva de
uma básica inexauribilidade das próprias carências, que se levantam sempre,
como uma fênix, das cinzas de suas antecessoras" (Campbell, 2001: 59). Daí
a utilização, tanto por parte de Campbell, quanto por parte de Adorno e
Horkheimer (compartilhadores da tese de Sohn-Rethel), da imagem de Tântalo[2].
A
análise de Campbell do hedonismo moderno e da ligação entre o impulso para o
novo que caracteriza esse hedonismo, em contraste com o tradicional, é
semelhante também à constante necessidade de novidades que impõe a indústria
cultural, destacada na análise de Adorno e Horkheimer. Como "a procura do
prazer, em sua forma peculiarmente moderna, não se opõe à prática da satisfação
adiada, mas se alia basicamente a esta" (Campbell, 2001: 129), torna-se
inevitável a relação deste comportamento com a indústria cultural – sua forma
mais avançada – que apresenta um novo produto a ser consumido que é sempre o
mesmo[3].
Também
o desenvolvimento das condutas modernas, analisado por Campbell ao longo da
obra, subjaz a própria estrutura do sujeito mercantil, onde o ascetismo exigido
no processo de trabalho é complementado pelo comportamento desinteressado,
imaginoso e romântico do tempo livre. Se o "puritanismo" e o
"romantismo" são "culturas gêmeas" que "asseguram o
contínuo desempenho daquelas formas contrastadas, mas interdependentes de
comportamento essenciais à perpetuação das sociedades industriais, que
emparelham consumo e produção, diversão e trabalho" (Campbell, 2001: 317),
então se explica que o desenvolvimento contemporâneo tenha dado origem à
cultura massificada onde as "obras de arte são ascéticas e sem pudor, a
indústria cultural é pornográfica e puritana" (Adorno e Horkheimer, 1986:
131).
Se
aceitamos que a configuração desse sujeito moderno é essencialmente formulada a
partir da mercadoria, poderíamos pensar até mesmo na "civilização"
dos mecanismos psicológicos mais internos pela esfera mercantil, isto é, já que
com a modernidade as "emoções vieram a ser localizadas 'dentro' dos
indivíduos" (Campbell, 2001: 106) e a partir daí elas são utilizadas para
os devaneios e para a experimentação na vida quotidiana, então a vida
quotidiana, dominada pela compra e venda, só poderia levar a uma catexização da
forma mercadoria: "quanto mais inexoravelmente o princípio do valor de
troca subtrai aos homens os valores de uso, tanto mais impenetravelmente se
mascara o próprio valor de troca como objeto de prazer" (Adorno, 1980:
173). Como não é o corpo material da mercadoria o objeto a ser consumido, mas a
sua simples forma, então se explica a constante reprodução do "ciclo de
desejo-aquisição-desilusão-desejo renovado" (Campbell, 2001: 132), pois é
o ato de troca como tal que é o alvo do prazer.
Poder-se-ia
argumentar que a relação entre a obra de Campbell e a crítica da economia
política – esta servindo de fundamento para muitas das conclusões daquela – se
esgota por aí. Afinal, se é o ato de troca o objeto da libido, isto é, da
"ética romântica" que funda o consumismo moderno, então não se
poderia acompanhar a argumentação de Campbell que se refere a esse importante
lugar ocupado em nossa cultura "mais pelas representações dos produtos do
que pelos próprios produtos" (2001: 134). Com razão, uma análise que
considera a estrutura econômica como "base" ou "infra-estrutura
material" da sociedade poderia negar essa conclusão ou, no máximo,
imputá-la à ideologia, à mistificação dos meios de comunicação etc., mas, o
fato é que a crítica radical da forma
mercadoria concordaria com a afirmação de Campbell de que "o
consumismo moderno é tudo, menos materialista" (2001: 131)[4].
Acompanhando
o raciocínio de Campbell e fornecendo-lhe consistência crítica, poderíamos nos
remeter à obra de Guy Debord, A sociedade
do espetáculo, que, numa das mais originais avaliações da sociedade
contemporânea, considerou como desenvolvimento natural da "sociedade do espetáculo", isto é, da
sociedade fetichizada pela mercadoria, a substituição da experiência do ser pelo ter e, posteriormente, do ter
pelo parecer (s/d: 17-18)[5].
Já que Campbell trata da primazia das "representações dos produtos",
cabe lembrar que a primeira tese da obra de Debord afirma que "tudo o que
era diretamente vivido, afastou-se numa representação" (s/d: 11), exato
resumo da alteração do hedonismo tradicional pelo moderno. Representação, por sinal, pode ser visto, como na dialética
hegeliana, como uma categoria que enfatiza a relação exterior com os objetos,
isto é, uma relação mediada por sensações, intuições etc. e que, por isso,
impediria uma apreensão profunda, essencial, o que, no quadro do comportamento
consumista moderno, poderia ser identificada à "construção imaginativa"
(Campbell, 2001: 122), que se realiza como uma experiência frustrante.
O
desenvolvimento da modernidade – isto é, a transformação de todo o mundo num
grande mercado e de tudo em objeto de compra e venda –, atinge o estágio em que
o fetichismo da mercadoria rebaixa as próprias relações sociais a meras
representações. Isso configura, por um lado, a autonomia plena da imagem que a
mercadoria faz de si mesma, a ponto de não mais depender do ato de compra para
se afirmar como nexo social – embora os indivíduos ainda necessitem
contemplá-la para que satisfaçam falsamente seus desejos ou anseios – e, por
outro lado, demonstra o quanto a realização individual está fadada ao fracasso
nesta mesma sociedade que, contraditoriamente, apresenta o indivíduo como a
“mais louvada realização da era moderna” (Marcuse, 1968: 205).
Uma
avaliação da crítica da economia política seria, no mínimo, essencial para a
problematização do consumismo moderno. Esta problematização na obra de Campbell
obtém importantes contribuições – entre elas a crítica que realiza das teorias
que explicam o consumismo e a moda a partir da "maquinação da
propaganda" ou da "emulação" –, mas encontra seus limites na
falta dessa fundamentação crítica, daí a tentativa de derivar o próprio consumo
do "prazer imaginativo" ou de um "hedonismo 'mentalístico'
"(2001: 130), invertendo o desdobramento imanente ao processo de troca e
resvalando numa explicação volitiva
grosseira.
Referências bibliográficas:
Adorno,
T. W. O fetichismo da música e a regressão da audição. In: Benjamin, Adorno, Horkheimer, Habermas (Os pensadores). São Paulo:
Abril Cultural, 1980.
Adorno,
T. W., Horkheimer, Max. Dialética do
Esclarecimento - fragmentos filosóficos. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1986.
Campbell,
Colin. A ética romântica e o espírito do
consumismo moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
Debord,
Guy. A sociedade do espectáculo.
Lisboa: Edições Afrodite, s/d.
Kurz,
Robert. Razão Sangrenta - 20 Teses
contra o assim chamado Iluminismo e os "valores ocidentais".
Disponível em: http://planeta.clix.pt/obeco/.
Acesso em: dezembro/2002.
Marcuse,
Herbert, Eros e civilização – uma
interpretação filosófica do pensamento de Freud. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1968.
Marx,
Karl. O Capital: Crítica da Economia
Política. Livro I, tomo 1. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultural,
1985.
Sohn-Rethel, Alfred. Trabalho espiritual e corporal. Para a epistemologia da história ocidental. Disponível em: http://planeta.clix.pt/obeco/. Acesso em: agosto/2002.
[1] Uma certa vertente marxista tornou-se presa do
mito dos interesses econômicos típico da economia burguesa ao elevar esse
comportamento à supra-historicidade.
[2] Ver Campbell (2001: 138) e Adorno e Horkheimer
(1986: 131).
[3]
"Cada espetáculo da indústria cultural vem mais uma vez aplicar e
demonstrar de maneira inequívoca a renúncia permanente que a civilização impõe
às pessoas. Oferecer-lhes algo e ao mesmo tempo privá-las disso é a mesma
coisa" (Adorno e Horkheimer, 1986: 132).
[4]
"Em direta oposição à palpável e rude objetividade dos corpos das
mercadorias, não se encerra nenhum átomo de matéria natural na objetividade de
seu valor" (Marx, 1985: p. 54). "A forma de fetiche do valor, em si
mesma, pouco ou nada tem de 'material'" (Kurz, 2003).
[5] Pode-se enfatizar até mesmo a semelhança no modo
de argumentação entre a tese do situacionista e a de Campbell quando este
afirma que no hedonista moderno o "precisar mais do que ter é o foco
principal da procura do prazer" (2001: 126).
Resumo:
O objetivo do artigo é comparar brevemente a problematização que Colin Campbell
faz do consumismo moderno em sua obra A
ética romântica e o espírito do consumismo moderno com a crítica da
economia política, apontando as possibilidades de se fundamentar criticamente
algumas das conclusões obtidas pelo sociólogo inglês.
Palavras-chave:
consumismo, romantismo, capitalismo, fetichismo da mercadoria, sociedade do
espetáculo.
* O autor cursa mestrado em sociologia rural no Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da UFRRJ.