AS METAMORFOSES DO JECA...

 

Aluizio Alves Filho. As Metamorfoses do Jeca Tatu (a questão da identidade do brasileiro em Monteiro Lobato). Rio de Janeiro: Inverta, 2003, 148 páginas.

 

Ricardo Augusto dos Santos*

 

Aluízio Alves Filho me surpreende com o livro As Metamorfoses do Jeca Tatu. Estou tentando passar para a tela o prazer de ler este texto. Faço somente algumas observações.

Uma pergunta se impõe: por que o tema da representação do Jeca Tatu e, por conseguinte, da identidade nacional vem ganhando um lugar de destaque nas ciências sociais? Talvez porque venha cada vez mais ocupando um lugar político em nossa sociedade. Recentemente, os jornais de grande circulação gastaram papel discutindo a presença do tradutor nas viagens internacionais do Presidente Luis Inácio da Silva. O Presidente domina apenas a língua portuguesa. Houve até uma charge ironizando a dificuldade do próprio dirigente norte-americano George Bush no domínio da língua inglesa. Satirizava dizendo que ambos não falavam inglês. Pois não é que o nosso Jecatatuzinho, após sua transformação de homem parasita e incapaz em prospero empreendedor, teve entre suas mudanças justamente a aprendizagem da língua inglesa! Fala o Jeca: “—Quero falar a língua... para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa. O seu professor dizia: — O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig!”

Parece que estamos sempre definindo a identidade de ser brasileiro. Uma identidade muitas vezes criada a ferro e a muita pancada. Mas também com idéias e canções aveludadas. Neste livro, Aluízio Alves ultrapassou a mera análise da figura do Jeca na obra de Lobato. Este sociólogo apaixonado e competente procurou nas metamorfoses do Jeca as raízes mais profundas das representações que influenciam as relações sociais de nossa sociedade. 

Afinal, onde estará nossa verdadeira identidade social? Inúmeros intelectuais responderam a esta questão, dentre eles, Monteiro Lobato. Onde residiria a verdadeira identidade cultural do país naqueles tempos da Republica Velha? Nas cidades reformadas segundo os padrões da cultura européia? Ou nos seus subúrbios? Ou nos sertões abandonados? Nos “Jecas” ou nos “Dândis”?

Somos uma nação? Nas primeiras décadas do século XX, indagações semelhantes demonstravam uma característica bastante relevante do pensamento social e político brasileiro da época. Momento fundamental, pois trazia à tona a questão nacional. O horizonte intelectual daquela conjuntura possuía fronteiras fortemente delimitadas. Havia uma sensação de inferioridade frente às nações que viviam a era industrial. Não éramos uma nação! Como imaginar uma Nação Brasileira olhando para a miséria, a doença e o analfabetismo? Uma possibilidade consistia em, esquecendo das adversidades, assumir um ufanismo romântico. Outra atitude procurou ver o país do prisma de suas doenças e problemas. Porém, naquele período, a pergunta que incomodava era: Seria possível construir uma nação a partir deste Caldeirão de Raças?

Entre o início do século XX e os últimos anos da década de 1930, diferentes grupos sociais e intelectuais voltaram-se para a questão da identidade nacional. Atribuindo-se uma missão patriótica e científica, diversos cientistas e intelectuais empenharam-se em criar um saber sobre o país. Construíram discursos sobre um conjunto de representações sociais que pretendiam orientar os indivíduos em direção a um mundo moderno e civilizado. Para realizar esta tarefa, estes homens foram bacharéis, poetas, literatos, médicos e educadores. E pensaram e veicularam suas idéias a respeito de raça, amor, sexualidade, doenças, economia, identidade nacional e nação.

Havia uma expectativa de mudanças sociais e culturais que mobilizava diversos segmentos urbanos, identificados e preocupados em viabilizar as condições para a emergência de uma nova nação. Partindo de uma visão “cosmopolita” do que constituiria um modo de viver e compreender a sociedade, estes segmentos sociais não se omitiram em expressar e lutar por suas crenças. Uma das questões centrais para estes grupos foi o debate sobre a identidade nacional e a forma de mudar as condições de vida dos brasileiros. Observamos entre intelectuais, artistas e segmentos urbanos das “camadas médias”, incluindo as burocráticas, que havia um consenso sobre as ameaças que pairavam sobre o Brasil e, como decorrência, foram formuladas explicações e projetos de mudança.

Como conciliar os miseráveis, analfabetos e doentes com os cafés, cinemas e as grandes avenidas? São perguntas que os escritores, cientistas, médicos e políticos respondiam e que formavam a literatura e a ciência daquela conjuntura. Perguntas que Aluízio ajuda a responder. Com rara acuidade. Sua pesquisa é exaustiva. Sua narrativa sobre a formação do sombrio personagem é, arrisco dizer, definitiva. Em tempos tão conservadores, de analistas frios e distantes da realidade a ignorarem modos de vidas e culturas, a leitura do seu “Jeca” é um sopro de vida nas ciências acadêmicas, que andam tão conservadoras. Sua análise é apaixonada e competente.

Recentemente, o discurso de alguns cientistas (economistas, sociólogos e etc) vem me causando um leve desconforto, porque quando analisam a grave crise por que passa o país, o fazem com um monumental desprezo pela vida das pessoas. Parece que estão em algum frio e asséptico laboratório ou numa longínqua e exótica ilha dos mares distantes, descrevendo costumes e atitudes. Leitores de Achegas... Entreguem-se às páginas de As Metamorfoses do Jeca Tatu, com prazer, alegria e paixão pela vida. Suspeito que os conservadores da ordem, não fazem assim.

 

* Ricardo Augusto dos Santos é Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz e Mestre em Memória Social e Documento/UNIRIO.

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