UM NOVO
CONSENSO?
Theotonio
dos Santos*
Várias
notícias apresentam um conjunto de manifestações no sentido do fim da ortodoxia
neoliberal. Elas provêem de várias origens e indicam realmente um descenso da
ortodoxia do pensamento único que se impôs a partir da década de 80. Vejamos
alguns exemplos:
O
secretário geral da CEPALC, Antonio Ocampo, deixa a instituição para ocupar a
secretaria adjunta da Comissão Econômico-social das Nações Unidas e manifesta
sua convicção no declínio final das concepções neoliberais que levaram a região
a uma situação econômica e social extremamente negativa. Aproveita a
oportunidade para reafirmar o ponto de vista da CEPALC sobre a necessidade de
um crescimento com eqüidade.
Esta
consigna, elaborada por Fernando Fanzilbert no final dos anos 70 do século
passado, não conseguiu se converter numa prática política, ao ser atropelada
pelo pensamento único neoliberal. Ela era, contudo, uma tentativa de ajustar as
antigas teses sobre o desenvolvimento econômico-social da CEPAL às realidades
criadas pelo esgotamento da fase chamada fácil da substituição de importações.
Fanzilbert
imaginava a possibilidade de uma política exportadora mais agressiva buscando
uma competitividade internacional da região que se utilizaria de um sistema de
planejamento econômico flexível, ao mesmo tempo em que se incorporariam
políticas sociais capazes de formar recursos humanos superiores e aumentar
assim a capacidade de avançar competitivamente no campo industrial e nos
serviços.
Seria
interessante ver renascer a problemática que levou a esta concepção de
desenvolvimento que abraçou a CEPALC dos anos 80. Nela se buscava superar o
debate sobre estabilização e crescimento, imposto pelas primeiras investidas do
monetarismo abrigado no FMI desde o começo dos anos 50. Os monetaristas tinham
sido derrotados nestes anos pela ortodoxia neokeynesiana que afirmava a
importância da intervenção estatal através do aumento da demanda para garantir
o crescimento econômico e o pleno emprego.
Entre
neokeynesianos, transformados em estruturalistas na América Latina (devido à
sua interpretação da inflação, vista como resultado da dificuldade da oferta
atender à demanda da região, em conseqüência das debilidades estruturais que
limitavam a produção local) e monetaristas (num período, adaptado à ortodoxia
neokeynesiana, ao aceitar a importância do crescimento econômico como meta, mas
sempre reafirmando a necessidade de controlar a oferta de moeda e crédito como
fator de estabilidade) havia uma polêmica na qual se radicalizavam os
instrumentos de interpretação do fenômeno inflacionário, considerado inimigo
absoluto pelos monetaristas e possível aliado pelos estruturalistas.
A
prática é o critério da verdade para as lutas sociais. E a prática
neokeynesiana estava ligada ao êxito de suas recomendações, na medida em que
avançava a industrialização da região e sua capacidade de gerar emprego para a
sociedade, lucros para os capitalistas nacionais e sobretudo para os
internacionais que aqui instalavam suas empresas multinacionais aproveitando-se
dos mercados nacionais em expansão.
Nesta
época as multinacionais estavam contentes com as altas restrições tarifárias
impostas pelos governos locais para garantir suas vantagens em monopolizar os
mercados nacionais. A literatura econômica sempre se esquece da importância do
livre câmbio quando as classes dominantes necessitam de mercados nacionais
protegidos. Era a época das teorias do desenvolvimento econômico social e o
debate se concentrava na maior ou menor capacidade de lográ-lo.
As
dificuldades geradas por um crescimento econômico baseado na importação de
capitais que visavam e visam sobretudo captar todos os recursos disponíveis nos
mercados nacionais protegidos, começaram a aparecer na metade dos anos 60. O
golpe de Estado de 1964 no Brasil entregou o poder aos monetaristas com o
objetivo de assegurar a estabilidade monetária contra a proposta estruturalista
de ampliar os mercados nacionais pela via da reforma agrária e outras reformas
capazes de distribuir a renda e ampliar o consumo.
Os
monetaristas de então não deixavam de preocupar-se com o desenvolvimento e
terminaram por servir aos militares ao atender suas ambições de crescimento sem
distribuição da renda e sem rompimento com as multinacionais. Como demonstramos
na época, este modelo de desenvolvimento conduziria ao endividamento
internacional, à concentração econômica e à centralização do capital, à
dependência, à concentração da renda e à exclusão social. Apontávamos também
para a implantação do capital financeiro na região, o que levaria ao triunfo do
enfoque monetarista. Em seu primeiro momento, este enfoque se demonstrava capaz
de enxaguar o aparelho produtivo deixado pelo protecionismo “à outrance”,
gerado pela prática estruturalista, e seus artífices foram capazes provocar um
novo período de crescimento como o demonstramos na época (1964) apesar da quase
unanimidade da opinião contrária dentro das forças progressistas.
Este
caminho de um desenvolvimento autoritário e concentrador se explicava também
pelas dificuldades do capital multinacional superar as tensões geradas no
centro do sistema mundial devido aos limites que se impunham ao processo de
acumulação do capital. Os mercados externos tendiam a esgotar-se como
indicamos. Apostar na sua expansão tinha altos custos políticos que as grandes
metrópoles não queriam pagar. Daí a idéia de mudar para estes países de
desenvolvimento médio grande parte da atividade industrial de menor valor
agregado. Estava-se criando o modelo de desenvolvimento secundário exportador
que a literatura econômica crítica da região tão bem estudou.
Mas
na década de oitenta o projeto do capital multinacional se viu cada vez mais
atropelado pelas dificuldades da acumulação internacional de capital e pela
ascensão do capital financeiro, no qual se concentravam os excedentes
econômicos bloqueados pela dificuldade de ampliar os investimentos produtivos.
A crise obrigou o grande capital a se apoiar cada vez mais no Estado para
dirimir suas dificuldades.
Foi
assim que a Sra. Thatcher na Inglaterra e o Sr. Reagan nos Estados Unidos
iniciaram um período da economia mundial baseado nos mais espetaculares
déficits fiscal e cambial da história humana. Em 1973, os Estados Unidos
abandonaram a convertibilidade do dólar em ouro, estabelecida em Breton Woods,
realizando a maior quebra de contratos conhecida na história. Este ato de
aventura econômica foi realizado por um conservador, que teve que admitir que
“todos somos keynesianos”. Tratava-se de salvar os Estados Unidos dos efeitos
negativos de sua política de déficit fiscal (levada ao extremo durante a guerra
do Vietnam) e de seu déficit comercial (ampliado pela especialização da
economia norte-americana na tecnologia de ponta de signo militar). Era
necessário que o resto do mundo pagasse o devido custo desta política vendo
seus dólares se desvalorizarem maciçamente (do valor oficial de 35,00 US$ por
onça ouro para o valor de mercado de aproximadamente 350 US$ por onça ouro).
A
derrota no Vietnam pôs em crise a política aventureira de déficit fiscal,
enquanto os Estados Nacionais do chamado Terceiro Mundo se fortaleciam,
sobretudo os países petroleiros que formavam um cartel – a OPEP que lhes
permitiu elevar o preço do petróleo mais ou menos na mesma proporção que a
desvalorização do dólar em relação ao ouro. Os exportadores de matérias primas
buscavam mudar as regras das relações internacionais através do estabelecimento
de uma Nova Ordem Econômica Mundial, em aliança com os países socialistas. Ao
mesmo tempo, os aliados dos Estados Unidos, como o Japão e a Alemanha, se
mantinham em crescimento, alterando a correlação de forças entre os países
centrais do sistema mundial.
O
restabelecimento do poder hegemônico norte-americano, ameaçado nestas novas
condições, se baseou numa retomada do valor do dólar e de sua capacidade de
atrair capitais do resto do mundo para os Estados Unidos, abrindo o mercado
norte-americano para o exterior, através de um gigantesco déficit comercial,
enquanto se ampliava a demanda deste país enormemente através de um
extraordinário déficit público, coberto pela compra de títulos da dívida
estatal norte-americana.
É
incrível constatar como a maior intervenção monetária da história humana se
realizou em nome do equilíbrio fiscal e cambial gerando o maior desequilíbrio
fiscal e cambial da história. As taxas de juros passaram a ser o principal
instrumento de política econômica, provocando uma transferência colossal de
recursos do resto do mundo para os Estados Unidos e desde o setor produtivo
para o financeiro.
É
incrível constatar como se produziu, então, um verdadeiro assalto aos Estados
Nacionais para salvar as taxas de lucro do capital privado, custe o que custar.
Como foi possível recorrer aos neoliberais para justificar o maior movimento de
endividamento estatal da história?
Como
se conseguiu elevar os desequilíbrios fiscais e cambiais aos níveis mais altos
da história em nome de uma doutrina que se baseia na tese do equilíbrio geral
como condição para o bem estar social?
Como
aumentaram dramaticamente a dívida e os gastos públicos sob o auge das teses
neoliberais?
É
a constatação destes fatos que fez o grande “teórico” neoliberal Milton
Friedman, em seus 92 anos, auto criticar-se e dizer que hoje em dia não está
mais seguro de sua defesa do controle da emissão monetária e do gasto público,
pois, nos anos de hegemonia de seu pensamento, o que mais aumentou no mundo foi
o gasto público. Este só foi controlado na década de 90, através de uma
administração democrática, para seu desencanto político e agora se encontra
ameaçado novamente por um presidente republicano, “tão gastador como seu pai”.
O neoliberalismo ainda seria uma piada, como seus teóricos eram tratados nos
anos 50, quando ninguém lhes dava bola. Mas infelizmente ele se converteu numa
realidade para servir a interesses econômicos muito concretos e poderosos.
Apesar da crise que se expande no mundo em função de suas políticas
aventureiras, eles procuram se disfarçar de sérios e austeros escondendo-se
atrás de uma “teoria” que nada mais fez do que disfarçar a verdadeira
realidade: a crise, o desequilíbrio, a concentração, a pobreza e a exclusão.
Resumo:
O objetivo do artigo é o de fornecer subsídios para a reflexão sobre as razões
da ascensão e da atual crise da ortodoxia neoliberal, responsável por conjunto
substantivo de mazelas sócio-econômicas.
Palavras-chave: neoliberalismo, desequilíbrio fiscal, dívida pública, concentração de renda e exclusão social.
* THEOTONIO
DOS SANTOS é professor titular da Universidade Federal Fluminense e Coordenador
da Cátedra e Rede UNESCO – Universidade das Nações Unidas sobre Economia Global
e Desenvolvimento Sustentável. Seu último livro é A Teoria da Dependência:
Balanço e Perspectivas. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira.