LEGÍTIMO DIREITO DE RESISTÊNCIA DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES

 

Luiz Fernando Alves Evangelista*

 

“Sem a liberdade de ser e agir, o homem - por mais que conheça e possua - não é nada”.

(Albert Einstein)

 

Em se tratando de legítimo direito de resistência, não poderíamos deixar de evocar o mais célebre autor deste princípio que há muito vem tendo fundamental importância na contraposição legítima da sociedade civil aos governos vacilantes de suas funções ao longo da História. Referimo-nos a John Locke, um dos mais consagrados contratualistas do século XVII, que influenciou substancialmente o pensamento ocidental de sua época. Fato que se consubstanciou quando das grandes revoluções do século XVIII: A revolução americana e a revolução francesa.

A revolução americana de 1776, cujos princípios foram o húmus fecundo de que se alimentou todo o projeto constitucional norte-americano que resultou, na famosa Convenção de Filadélfia no ano de 1787, na Constituição norte-americana e no próprio advento do Federalismo com a criação do Estado Federal e do sistema presidencialista de governo.

A Revolução Francesa de 1789, cujos ideais nortearam a solene Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, as quais calcadas no pressuposto teórico de Locke – o estado de natureza do homem – modificaram para sempre a estrutura fundamental dos Estados Modernos, com a adoção de importantes princípios, como a limitação do poder estatal frente aos direitos individuais, os quais ganharam o status de invioláveis com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

Além do exposto, Locke é juntamente com Voltaire um dos maiores ensaístas sobre a tolerância, que anda tão esquecida em nossos dias. Acrescente-se ainda que a teoria contratualista de Locke teve fundamental importância no processo de formação do moderno constitucionalismo.

O leitor deve estar se perguntado: o que tem haver a doutrina política de Locke com o atual martírio das crianças e adolescentes brasileiras? A resposta é: tudo, pois o autor dos Dois Tratados sobre o Governo reserva, no Primeiro Tratado, dois capítulos nos quais, com muita propriedade, teoriza o pátrio poder ou poder paterno como forma de desacreditar o argumento de sir. R. Filmer de que os homens não são livres por natureza. Este pressuposto justificava toda a teoria de Filmer da defesa da monarquia absolutista.

Locke dizia que o pátrio poder se calcava na proteção do direito inato dos homens à liberdade – na acepção liberal do termo - a qual só era alcançada, em sua plenitude, com a maior idade, quando o rebento atingiria a consciência plena que lhe daria condição de entender os propósitos da lei e do próprio contrato social. Nesta ocasião, alcançaria o estado de libertação da tutela paterna - que muito diferente de ser a total submissão dos filhos aos pais, como queria Filmer, por ocasião de ter de justificar a doutrina segundo a qual os soberanos teriam o direito natural de submeter o povo a seus ditames autoritários, por serem herdeiros de uma autoridade patriarcal que remontava do início dos tempos - é na realidade o período em que os pais têm um relativo poder sobre sua prole, tendo em vista a proteção dos seus direitos – mormente os naturais - até que os mesmos possam exerce-los na vida adulta.

Tomando esse pensamento como paradigma para a realidade infanto-juvenil brasileira, verificar-se-á que a esmagadora maioria das crianças e adolescentes não encontram condições para atingir a maior idade, ficando pelo caminho, mortos de fome, mortos pelo tráfico, mortos pela polícia, mortos em suas dignidades, abandonados ao relento das noites frias das ruas, a mercê de suas próprias sortes. Enfim, esquecidos pela sociedade, que não só lhes nega as condições para atingirem a liberdade em estado de exercício pleno, como também o direito máximo, qual seja, a vida.

 Locke acreditava que o objetivo máximo de todo o governo, sendo a sua própria razão de ser, é a proteção dos direitos naturais do homem: liberdade, vida e bens. Direitos que no estado de natureza eram facilmente retirados dos mais fracos pelos mais fortes, acarretando um estado de guerra constante, provocando uma inquietude universal na humanidade e impossibilitando o seu progresso.

Esse estado de barbárie seria solucionado pelo consentimento dos homens em torno da constituição de um governo – num verdadeiro contrato, mesmo que tácito – que zelasse principalmente pela garantia dos direitos naturais. Direitos que após a Revolução Francesa passaram a estar expressos em todas as Constituições dos países livres, de forma a garanti-los dos maus governantes, caso essas responsabilidades governamentais fossem negligenciadas ou utilizadas de forma ilegal.

Locke considerava que a sociedade civil teria o legítimo direito de resistir aos arbítrios e omissões de um governo que quebrando o contrato preestabelecido se colocasse em estado de guerra contra a sociedade civil. Cabendo a esta proceder às modificações necessárias no seu corpo governamental e, até mesmo, caso necessário, formar um novo governo, fosse pela via da reforma, mais racional e pacífica, fosse pela via revolucionária, mais traumática e violenta, que a história da humanidade demonstra que muitas vezes foi a única solução possível.

Tendo em vista que vivemos sob a égide de um governo notoriamente negligente em suas funções mais básicas, expressas no nosso Contrato Social – Constituição Federal – nota-se que Locke está mais atual do que nunca; pois quando um governo é omisso nas suas atribuições constitucionais como em relação aos arts. 226 a 230, da CF, e como em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que são pilares da Doutrina de Proteção Integral, que deita raízes na Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959, de forma negativa, ou seja, por um não agir, contribui para a opressão das crianças e dos adolescentes. Opressão que se materializa: no trabalho infantil, na prostituição infantil, no recrutamento pelo tráfico de drogas e em outras variadas formas de exploração.  Ocorre também pela simples condição de abandono, quando crianças e adolescentes passam a vagar esfomeadas pelas ruas da cidade, a mercê de todas as formas de violência que a rua pode produzir.

Observamos que governos que agem de forma negligente entram em estado de guerra contra suas crianças e adolescentes. No caso, compete aos homens bons, na acepção de Rousseau, tomar em suas mãos o destino da sociedade, exercitando o legítimo direito de resistência em nome daqueles que, pela sua tenra idade e inocência, ainda não se encontram em condições de lutar pelos seus direitos fundamentais. Que a sociedade civil resista aos maus governos fazendo o seu papel na busca de uma real democracia participativa - que na realidade é a própria defesa do Estado Democrático de Direito – dessa forma, pode-se lutar para libertar as crianças e os adolescentes do nosso país, para que elas venham a se tornar verdadeiros cidadãos.

 

Bibliografia:

LOCKE, John; Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1998.

Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal n° 8099/90.

BOBBIO, Norberto. Locke e o Estado de natureza.

ZIMMERMANN, Augusto Cotta. Curso de Direito Constitucional. Ed. Lumen Juris, 2002, RJ.

 

Resumo:

O propósito do artigo é de estabelecer relação entre a teoria lockeana do Direito de Resistência e a situação de desamparo que se encontra número substantivo de crianças e adolescentes em nosso país, ensejando atuação concreta da sociedade civil.

 

Palavras-chave: Direito de Resistência, Liberdade e Justiça.



* Acadêmico de Direito da Universidade Estácio de Sá, Servidor efetivo da Secretaria de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e Assessor de Comunicação e Planejamento de Projetos Especiais da 1ª Vara de Justiça da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro.


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