A JUSTIÇA FORMAL CAUSA EMBARAÇO À JUSTIÇA MATERIAL

 

Siro Darlan*

 

O direito fundamental da criança e do adolescente foi erigido à categoria de direito fundamental no momento em que o Brasil tornou-se signatário da Carta das Nações Unidas sobre os direitos da criança e desde então assim está hierarquizado. O Brasil incorporou à sua legislação a doutrina da proteção integral às crianças consagrada na Convenção das Nações Unidas dos Direitos da Criança – ONU – 1959. De acordo com o texto presente na mencionada Convenção, “ a criança gozará de proteção especial e disporá de oportunidade e serviços, a serem estabelecidos em lei por outros meios, de modo que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança ” Nessa nova dimensão o legislador preleciona que na interpretação da lei levar-se-á em conta os fins sociais a que se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. (Artigo 6º da Lei 8069/90)

Os direitos fundamentais constituem elemento basilar do constitucionalismo moderno. Como ensina o Professor  Vieira de Andrade: “ Os direitos fundamentais são, na sua dimensão natural, direitos absolutos, imutáveis e intemporais, inerentes à qualidade de homem dos seus titulares, e constituem um núcleo restrito que se impõe a qualquer ordem jurídica.” (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Almedina: 2ª edição). A história dos direitos fundamentais confunde-se com a própria construção do constitucionalismo democrático.

A Declaração Francesa de 1789 eleva ao grau máximo seu caráter universal, já que esta se baseia restritamente na racionalidade da qual absolutamente todos os homens seriam dotados. E, já naquela altura, o artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 ditava que “ A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados por Lei ” Esses mesmos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade foram garantidos na Constituição de 1791, de inspiração girondina, e de 1793, de inspiração jacobina. Esta última chegou a acrescentar aspectos sociais dos direitos como o trabalho e à proteção contra a pobreza e à educação.

Essa  tendência reforçou-se nos países democráticos após a queda dos regimes autoritários como a da Grécia (1975), da Espanha (1975) e a de Portugal (1976 e 1978). A Constituição brasileira de 1988 apresenta pontos destacados de aproximação com as constituições ibéricas, destacando-se entre os direitos fundamentais, uma composição dos direitos individuais, políticos, sociais, econômicos, culturais, e ambientais.

A Carta das Nações Unidas elaborada em São Francisco em 1945 já se referia a direitos e liberdades fundamentais, assim como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, Paris 1948. Os Pactos Internacionais sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e sobre Direitos Cívicos e Políticos de 1966 ratificado por 144 estados, a Convenção Americana dos Direitos do Homem e , na Europa, a Convenção Européia para Salvaguarda dos Direitos do Homem de 1950, e a Carta Social Européia em vigor desde 1965 são alguns dos diplomas internacionais que contêm matéria de direitos fundamentais.

Hoje as Constituições fixam princípios e linhas gerais para guiar o Estado e a vida em sociedade com a finalidade de promover o bem-estar individual e coletivos de seus integrantes. Os Direitos Fundamentais declarados nas Constituições não se confundem com os outros direitos assegurados ou protegidos, e constituem limites materiais ao poder de emenda.

Afirma-se, contudo que os direitos fundamentais não estão restritos ao elenco enumerado nas constituições. Como leciona Ingo Wolgang SARLET, os direitos fundamentais “ podem ter acento em outras partes do texto constitucional ou residir em outros textos legais nacionais ou internacionais ”

Dessa forma, sabe-se que  o Brasil na condição de signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989, e esta pode ser considerada parte integrante do texto Constitucional. Portanto, os direitos fundamentais garantidos na Convenção, galgaram o status de direito fundamental em nosso sistema constitucional. As normas internacionais relativas a direitos fundamentais no Brasil, valem na ordem jurídica e a importância prática desse ensinamento pode variar em função da capacidade de concretizar essas normas que devem ser interpretadas e integradas em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

J.J. Gomes CANOTILHO  refere-se a “ Direitos Fundamentais formalmente constitucionais, mas fora do catálogo ” é precisamente o que denomina de Direitos Fundamentais dispersos e o mesmo se aplica à Constituição brasileira que também enumerou direitos fundamentais de forma dispersa.

Na lição do Professor  Vieira de Andrade “ Os direitos fundamentais internacionais fazem parte integrante do direito português por constituírem princípios de direito internacional geral (artigo 8º, nº 1, da Constituição) e quando constem de convenções internacionais regularmente ratificadas e publicadas (artigo 8º, nº 2  da Constituição Portuguesa). E, em qualquer dos casos, são perfilhados pela ordem jurídica portuguesa com o caráter de direitos fundamentais (artigo 16º, nº 1) ”

Inclusive na França, que tem uma tradição jacobinista, a opinião dominante da doutrina entende que as Declarações e Tratados de direitos e os preâmbulos constitucionais são parte integrante da própria Constituição.

Na doutrina brasileira, Ingo Wolgang SARLET identifica os “ Direitos Fundamentais fora do catálogo, mas com status  constitucional formal ” os quais, segundo ele, “ são idênticos no que tange à sua técnica de positivação e eficácia, ” O Autor em questão identificou, dentre outros, o artigo 227 da Constituição Brasileira relativo aos Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente. Este artigo é reconhecido como a Declaração de Direitos Fundamentais da população infanto-juvenil brasileira.

Além dos direitos e garantias fundamentais  elencados no referido artigo 227-CF, há outros diversos no texto da Carta Magna Brasileira, entre eles:

 Proibição de trabalho noturno, perigoso e insalubre a menores de dezoito anos e de qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos, conforme redação dada ao artigo 7º, inciso XXXIII pela Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998;  A equiparação de filhos e a vedação de designações discriminatórias relativas à filiação, consoante o art. 226, parágrafo 6º;  A inimputabilidade dos menores de 18 anos, sujeitos à legislação especial, conforme o artigo 228;  Assistência e educação por parte dos pais, de acordo com o art.229.

Enquanto a Constituição Portuguesa em seu artigo 16º amplia o âmbito e o sentido dos direitos fundamentais ao prescrever que “ Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional, ” a Constituição do Brasil adota a mesma regra ao aditar ao catálogo constitucional através do parágrafo 2º do artigo 5º os direitos fundamentais oriundos das regras e tratados internacionais integrando-os e concedendo igual status aos demais direitos constitucionais. Assim, os direitos fundamentais referentes à criança e ao adolescente celebrados nos diplomas internacionais dos quais Brasil e Portugal são partes pertencem às suas respectivas Constituições de acordo com o princípio da não tipicidade dos direitos fundamentais.

Ao estabelecer as regras para a suspensão ou destituição do pátrio poder o legislador, visando o respeito à garantia do devido processo legal aos requeridos, determina no Parágrafo único do artigo 158 que: “ Deverão ser esgotados todos os meios para a citação pessoal, ”

Ora, sem qualquer amparo nos textos internacionais e deixando de priorizar o “ interesse superior da criança ” a Resolução nº 20.132 do Tribunal Superior Eleitoral disciplinando a Lei nº 7.444, de 20 de dezembro de 1985 resolveu proibir o acesso à informações constantes dos cadastros eleitorais, exceto os pedidos relativos a procedimentos previstos na legislação eleitoral e os formulados pelo eleitos sobre seus dados pessoais e por autoridade judiciária criminal.

Desse então, sem que qualquer autoridade legitimada tivesse pleiteado a declaração de inconstitucionalidade dessa norma regulamentar, a justiça da infância e da juventude fica impedida de garantir na plenitude o respeito ao direito do devido processo legal aos pais que estão sendo demandados para o decreto da perda do pátrio poder, procedimento preliminar para o inicio de muitos processo de adoção. Com essa medida muitas crianças abandonadas pelos pais permanecem nas instituições fechadas de abrigo, perdendo a oportunidade de serem colocadas em famílias substitutas, que lhes garantam o direito fundamental ao convívio familiar e comunitário.

A consulta ao cadastro de eleitores pela autoridade judiciária da infância e da juventude proporcionava a localização de muitos pais que abandonavam impunemente os filhos, cometendo o crime de abandono material e ao serem localizados eram obrigados a cumprir suas obrigações paternas de alimentar e ter os filhos em sua companhia e eram muitas as crianças que eram reintegradas às famílias de origem graças a essa ação do judiciário.

No momento em que acirra-se a crise social e econômica com milhares de crianças abandonadas tomando as praças e logradouros públicos, privar a autoridade judiciária desse mecanismo de informação é no mínimo um ato de rara insensibilidade social além de ser a causa de muitas violações dos direitos das crianças e adolescentes amparadas pela total impunidade que essa medida contempla.

Urge que essa medida seja revista e esse obstáculo ao cumprimento integral da doutrina de proteção as crianças e adolescentes que o legislador consagrou na legislação brasileira com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente seja retirado do texto regulamentador, voltando a garantir o respeito ao interesse superior das crianças.



* JUIZ DA 1ª VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE.


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