SOBERANIA PARLAMENTAR E JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO REINO UNIDO: UM DEBATE POLÍTICO E JUSFILOSÓFICO

 

Augusto Zimmermann*

 

1- Considerações Iniciais

 

A problemática da jurisdição constitucional no Reino Unido é concernente à possibilidade de juízes invalidarem lei positiva emanada pelo Parlamento de Westminster, uma vez que neste país impera o célebre princípio inglês da soberania parlamentar. Com ele, tem-se por absoluto o poder do Parlamento, aqui entendido com a união do rei com os lordes e comuns, em suas respectivas Câmaras. Ademais, a idéia de soberania parlamentar parece estar reforçada pela própria flexibilidade da Constituição não escrita, ou não codificada, como preferiria denominá-la Giovani Sartori.(1)

Observada a questão sob o ponto de vista sociológico, Mc Bain constataria que a Constituição Inglesa raramente é emendada e, por conta disso, esta deveria ser entendida como rígida. Neste sentido, colocar-se-ia em questão se esta rigidez meramente sociológica da Constituição, e não obstante a sua flexibilidade jurídica, haveria de efetivamente proteger os direitos fundamentais contra uma hipotética possibilidade de promulgação de legislações draconianas.

John Locke havia declarado, no século XVII, a existência de um hipotético direito de resistência, contra o poder despótico que se manifestasse contrariamente aos direitos naturais do indivíduo.(2) Resta-nos indagar, outrossim, se esta é uma visão filosófica que pode ser considerada como parte intrínseca ou material da Constituição Britânica; uma vez que a filosofia política lockeana foi utilizada como instrumento legitimador da Revolução Gloriosa de 1688. Ademais, é de se observar que, muito embora constantemente modificada por novas decisões judiciais e legislações recentes, a Constituição Britânica permanece nitidamente liberal.

A doutrina da soberania parlamentar tem sido tratada como o mais importante elemento do constitucionalismo britânico, não havendo principio constitucional fundamental que não possa, ao menos em tese, ser modificado através de atos parlamentares. Nestes termos, até muito recentemente seria inimaginável pensar que os juízes britânicos pudessem se recusar à aplicação de uma medida do Parlamento, sob a alegação de sua inconstitucionalidade.

 

2- Argumentos Contrários à Doutrina da Soberania Parlamentar e Favoráveis à Possibilidade de Controle Judicial de Constitucionalidade no Reino Unido

 

Jeffrey Goldsworthy observa que inúmeros juízes e doutrinadores do Reino Unido vêm procurando limitar esta idéia de soberania parlamentar. Nesse caso, é manifestada a opinião de que alguns direitos da common law estariam tão profundamente enraizados na cultura do povo britânico, que até mesmo o Parlamento não poderia revogá-los. Sir John Laws, nesse sentido, argumentou que a verdadeira soberania não pertence ao Parlamento Britânico, mas à sua Constituição não-escrita, na qual certos direitos, tais como democracia e liberdade de expressão, estão definitivamente incluídos como princípios constitucionais fundamentais. Por conta disso, o Poder Judiciário estaria plenamente legitimado a declarar a inconstitucionalidade de certas leis promulgadas pelo Parlamento.(3)

A questão da possibilidade de limitação da soberania parlamentar, através de decisão de inconstitucionalidade de lei pelos juízes britânicos, apresenta-se como uma complexa discussão sobre o detentor do poder decisório em matéria de jurisdição constitucional. Como exemplo, aqueles que são contrários à idéia da soberania parlamentar concordariam que tal doutrina deveria ser substituída pelo paradigma constitucional consistente na bipolaridade de soberanias entre o Parlamento e os tribunais britânicos.

 Na realidade, os juízes britânicos têm um especial interesse em repudiar a tradicional doutrina da soberania parlamentar, porque assim estes mesmos poderiam, em nome de supostos direitos implícitos (implied rights) ou direitos não-escritos (unwritten rights), reivindicar o poder de emitir a decisão final, dentro deste sistema jurídico. Para isso, eles e seus defensores alegariam que esta idéia de soberania parlamentar representa um absurdo dogma positivista, e que não este saberia compreender a verdadeira origem da Constituição Britânica. Argumentar-se-ia, ademais, que uma vez constatada a responsabilidade do juiz como intérprete da lei, a extensão da autoridade legislativa parlamentar para a criação de leis positivas seria um assunto para os juízes decidirem.

De acordo com a linha de argumentação dos defensores do judicial review britânico, o poder dos juízes seria uma pura questão de common law, pois que esta se configura em uma estrutura de decisões judiciais alicerçadas por princípios fundamentais de justiça e Estado de Direito (rule of law). Nestes termos, a idéia de um Poder Legislativo ilimitado poderia parecer irracional e absurda, não obstante esta soberania parlamentar aparentar ser mais uma simples conseqüência da conversão de doutrinadores e juízes ao positivismo jurídico, em fins do século XVIII e início do século XIX.

 

3- O Sentido da Soberania Parlamentar e a Engenharia Constitucional Britânica

 

Os defensores do controle judicial britânico esquecem que o sistema constitucional britânico não se encontra fundamentado na idéia da separação de poderes, mas na idéia de fusão dos mesmos. O Parlamento, segundo a terminologia adotada no Reino Unido, significa a união do rei com os lordes e os comuns, atuando como uma espécie de corpo supremo do reino. Ele não é apenas uma mera casa legislativa, pois que possui máxima autoridade judicial em matéria de recurso, através da Câmara dos Lordes. Assim, a Suprema Corte de Justiça da Inglaterra, tribunal máximo da organização judiciária inglesa, está hierarquicamente abaixo da Câmara dos Lordes, assim denominada a Câmara Alta do Parlamento Britânico.

Jeffrey Goldsworthy constata que o princípio da soberania parlamentar sequer é tão recente quanto supõem os seus mais ferrenhos críticos. De fato, este é bastante antigo, havendo sido plenamente aceito por juristas ingleses desde meados do século XVII, muito embora teorias neste sentido já existissem desde o século XIII. Além do mais, o entendimento de que tal princípio justificaria a existência de um poder absoluto, pode ser refutada pela simples lembrança das lições de Blackstone, que defendia o fato da soberania parlamentar haver de produzir um sistema de limitação política do tipo checks and balances. Deste modo, a atuação em conjunto dos três ramos do Parlamento (rei, lordes e comuns) garantiria a fiscalização recíproca entre os mesmos, dispensando a própria necessidade de controle judicial de constitucionalidade.(4)

Por isso, a idéia de jurisdição constitucional no Reino Unido não se encontra de modo algum vinculado à questão do controle de constitucionalidade por juízes. Na realidade, a Constituição deste país encontra-se efetivamente protegida pela idéia de responsabilidade governamental, segundo a qual o Executivo é fiscalizado pelo Parlamento, e os membros das Casas legislativas são eleitos pelo povo através do sistema democrático representativo. Como resultado, os princípios constitucionais são devidamente respeitados, uma vez que o poder da Coroa passa a ser controlado pelo Gabinete; o Gabinete é controlado pelas duas Casas do Parlamento; e, por fim, estas Casas estão fiscalizadas pelo cidadão comum, que elege os membros da Câmara Baixa. A interdependência dos poderes, e não a decisão de juízes, é quem se transforma no controle de constitucionalidade deste país.

Até mesmo T.R.S. Allan, que se manifesta brilhantemente em favor à idéia do controle judicial no Reino Unido, em face de alegada necessidade de proteção dos princípios constitucionais, explicita-nos que a adesão dos juízes britânicos á supremacia parlamentar se correlaciona com o fato de que não é função dos tribunais estabelecer concepções de interesse público, e em oposição à vontade do Poder Legislador.(5) Allan observaria, em outra obra sobre o Estado de Direito, que a supremacia legislativa pode ser aceita mediante o entendimento de que a legislação seja interpretada de acordo com os princípios do rule of law (Estado de Direito).(6)

         Contudo, o fato é que o Parlamento Britãnico é soberano de acordo com os próprios princípios constitucionais do Reino Unido. E, ainda que se considere que a sua autoridade venha a estar limitada pela lei da natureza, estes limites somente seriam estabelecidos por meios extralegais. O que não ocorre, ademais, é o fato deste poder soberano ser limitado por intermédio do curso ordinário da lei, mas tão somente pelo meio extraordinário da resistência, quando o pacto social está sob ameaça de dissolução e a lei positiva se transforma em instrumento de opressão.

Além disso, Lord Dicey fortemente rejeitaria a suposta oposição entre o princípio do rule of law e a doutrina da soberania parlamentar, na medida em que o Parlamento possui um sistema interno de freios e contrapesos, de modo que a manifestação de sua vontade legal se expressa através de um devido processo legislativo afinado com os princípios constitucionais. Em outras palavras, Dicey observou que a soberania parlamentar não está em contradição com o rule of law, uma vez que esta também fortalece a idéia de legalidade (law of the land).(7)

Adam Smith, ademais, entendia que muitas vezes o Parlamento poderia cometer algum tipo erro, muito embora isso não significasse que este erro devesse ser corrigido através da decisão de um juiz. Todos os juristas britânicos, e até mesmo os mais entusiásticos defensores da doutrina da soberania parlamentar, concordariam em afirmar que a autoridade do Parlamento necessita de estar sujeita a determinados princípios constitucionais. A idéia de soberania parlamentar, portanto, não é utilizada nas discussões políticas como uma mera demonstração de poder, mas para a afirmação de que em todo ordenamento jurídico sempre existirá uma espécie de tribunal com poder máximo de jurisdição constitucional. E, no Reino Unido, este tribunal se denomina Parlamento.

Nesse sentido, Dicey apontava para o fato de que a onipotência do Parlamento haveria de ser limitada por condições intrínsecas e extrínsecas. Assim sendo, o constitucionalista afirmou que o poder dos legisladores se encontra materialmente limitado pela ameaça constante de resistência popular, por parte de um povo britânico consciente de seus direitos fundamentais, bem como igualmente adstrito á necessidade de legitimação moral da norma jurídica, haja vista para o fato desta necessitar de refletir os valores da sociedade para a qual será propriamente adotada. Lord Dicey, porém, jamais admitiu qualquer possibilidade de declaração judicial de inconstitucionalidade das normas jurídicas emanadas pelo Parlamento.(8)

Contudo, desde o século XVII até os dias atuais, o pensamento constitucional britânico vem sustentando que o Parlamento é tão legalmente soberano quanto sujeito às limitações provenientes de tradições e costumes desta sociedade.(9) Apenas os atos de órgãos inferiores são passíveis de sofrer controle concreto de constitucionalidade por tribunais (king courts), quando avaliados como contrários ao direito e à razão (law and reason).

 

4- Conclusão: Controle Judicial, Democracia e Proteção dos Direitos Humanos

 

O constitucionalismo britânico comprova a tese de que os modelos norte-americano de judicial review e kelseniano de tribunais constitucionais, não são essenciais para a proteção dos direitos humanos e da própria democracia, muito embora estes venham a garantir uma maior proteção destes mesmos valores fundamentais. Contudo, o que absolutamente não seria correto é afirmar que paises como o Reino Unido, mas também a Holanda e a Nova Zelândia, não são democráticos simplesmente por não possuírem uma forma de controle judicial de constitucionalidade. Na Suíça, por exemplo, este tipo de controle somente pode ser aplicado em relação à legislação cantonal.(10) Ademais, talvez seja de se indagar, como bem observou Francis Schackelford, ao combater o poder dos legisladores em países como o Brasil e os Estados Unidos, se nós não acabamos por ampliar excessivamente o poder dos magistrados.(11)

Para concluir, é possível sustentar que a democracia e os direitos humanos são muito mais fortemente protegidos mediante um ambiente cultural que os alemães denominariam de Weltschauung; i.e., estabelecido em concepções de vida e valores, mas que somente estariam presentes em sociedades de indivíduos imbuídos do senso de responsabilidade cívica e espírito liberal de tolerância. Ademais, é de se observar que os juízes estão tão passíveis de desrespeitar o Estado de Direito em tribunais, quanto os legisladores no Parlamento.

 

Notas:

(1) Constitutionalism: A Preliminary Discussion.  65th American Political Science Review, p.856. Apud: BLACKSHIELD, Tony e WILLIAMS, George; Australian Constitutional Law and Theory. Leichhardt-NSW: Federation Press, p.4.

 

(2) Cf.: LOCKE, John; Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Observação do Autor: Os editores da última edição de “Os Pensadores” retiraram esta obra fundamental da coleção. Trata-se de um absurdo completo, pois que Locke deve ser considerado como o pai do constitucionalismo moderno. Nestes temos, permita-me afirmar que, na modesta opinião deste autor, a obra Segundo Tratado Sobre o Governo Civil é o mais importante tratado de teoria política da era moderna, somente encontrando rival em O Capital, de Karl Marx. Ademais, todas as democracias liberais estão constitucionalmente inspiradas em princípios lockeanos.

 

(3) The Sovereignty of Parliament: History and Philosophy, Oxford: Oxford University Press, 1999, p.3. 

 

(4) Jeffrey Goldsworthy presta-nos o seguinte esclarecimento da questão: “Legal theorists unequivocally embraced parliamentary sovereignty. Blackstone, Burke, Paley, De Lolme, and many others, described the British Constitution as a well-balanced combination of the best aspects of the monarchical, aristocratic, and democratic forms of government, each of which checked the worst aspects of the others. (…) While the Commons protected the rights of the subject against any tendency towards tyranny, the counter-weights of King and Lords prevented the excesses of unchecked democracy. According to this idealized but entirely orthodox understanding of the Constitution, the checks and balances among the three component parts of Parliament adequately protected the rights of all sections of the community, leaving no need for anything like judicial review”. The Sovereignty of Parliament: History and Philosophy, p.201.

 

(5) ALLAN, T.R.S.; Law, Liberty and Justice: The Legal Foundations of British Constitutional Law. Oxford: Oxford Univeristy Press, 1993, p.15.

 

(6) ALLAN, T.R.S.; Constitutional Justice: A Liberal Theory of the Rule of law. Oxford University Press, 2001, p.214.

 

(7) DICEY, A.V.; Introduction to the Study of the Law of the Constitution. London: McMillan 1959, p.406.

(8) Idem, pp.76 a 85.

 

(9) Segundo o Professor Jeffrey Goldsworthy, “from the seventeenth century until today, mainstream British constitutional tought has held that Parliament is both legally sovereign and subject to customary restrains” – The Sovereignty of Parliament: History and Philosophy., p.190.

 

(10) Neste caso, Jeffrey Goldsworthy, em importante artigo sobre a questão,  faz a seguinte colocação: “(...) It is not immediately clear why a judiciary, charged with weighing up and applying abstract moral principle to concrete cases, is any more subject to ´the rule of law´ than is a sovereigh legislature which is responsible for translating the same principles into legislation

“Judicial review of the validity of legislation is neither an essential prerequisite for the protection of human rights and democracy nor, therefore, a necessary element of any legal system dedicated to those principles would improve the protection of human rights and democracy”. – The Philosophical Foundations of Parliamentary Sovereignty. Texto do livro Judicial Power, Democracy and Legal Positivism, orgs. Tom Campbell e Jeffrey Goldsworthy.  Sydney: Ashgate/Dartmouth, 2000; p.248.

 

(11) SHACKELFORD, Francis; The Separation of Powers in the Time of Crisis. Texto do livro Government under Law, SUTHERLAND, Arthur (ed.), Government under Law. Cambridge: Harvard University Press, 1956, p.172.  

 

Bibliografia:

-          ALLAN, Trevor R.S.; Constitutional Justice: A Liberal Theory of the Rule of law. Oxford University Press, 2001.

 

-           ______ ; Law, Liberty and Justice: The Legal Foundations of British Constitutional Law. Oxford: Oxford Univeristy Press, 1993, p.15.

 

-          BLACKSHIELD, Tony e WILLIAMS, George; Australian Constitutional Law and Theory. 2nd edition, Leichhardt-NSW: Federation Press, 1998.

 

-          DICEY, A.V.; Introduction to the Study of the Law of the Constitution. London: McMillan 1959.

 

-          GOLDSWORTHY, Jeffrey; The Sovereignty of Parliament: History and Philosophy, Oxford: Oxford University Press, 1999

 

-          ______ ; The Philosophical Foundations of Parliamentary Sovereignty. Texto do livro Judicial Power, Democracy and Legal Positivism, orgs. Tom Campbell e Jeffrey Goldsworthy.  Sydney: Ashgate/Dartmouth, 2000; p.248.

 

-          LOCKE, John; Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

 

Resumo:

O propósito deste artigo é analisar o debate político e jusfilosófico anglo-saxão, acerca da possibilidade de limitação constitucional da Soberania do Parlamento de Westminster, em face da idéia do controle de constitucionalidade por parte de juízes e tribunais no Reino Unido.

 

Palavras-chave: soberania parlamentar; jurisdição constitucional; controle judicial, democracia; direitos fundamentais; sistema constitucional britânico.

 

Abstract:

The present article intends to analysis if a process of judicial review could cancel statutes enacted by the Parliament of Westminster. Indeed, this is about the sovereignty of the Parliament and the idea of constitutional jurisdiction in United Kingdom.

 

Keywords: sovereignty of the Parliament; constitutional jurisdiction; judicial power; democracy, fundamental rights; British Constitutionalim.



* AUGUSTO ZIMMERMANN é Bacharel em Direito pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela mesma Universidade. Advogado, foi Professor do Mestrado em Direito Político do NPPG/Bennett e do curso de Direito da Estácio de Sá. Dentre outras funções, ocupou cargos como o de Diretor de Assuntos Políticos do PNBE-Rio, Diretor da APG/PUC-Rio, e assessor jurídico da Câmara Comunitária de São Cristóvão. Além disso, já publicou diversos trabalhos no Brasil e no exterior. É autor dos livros Teoria Geral do Federalismo Democrático e Curso de Direito Constitucional, ambos publicados pela editora Lumen Juris.


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