UMA BREVE ANÁLISE DO “DESPOTISMO
ESCLARECIDO”:
o atentado a separação dos poderes
e a problemática da governabilidade brasileira durante os mandatos de FHC
Flavia Bellieni Zimmermann*
• Considerações
Iniciais
Primeiramente, importa-nos considerar que a clássica
distinção das funções do Estado em Executivo, Legislativo e Judiciário proposta
por Montesquieu tenderia a viabilizar a concepção política de limitação do
poder estatal, evitando-se conseqüentemente o advento do arbítrio
governamental.[1] A partir deste princípio, o Chefe do Executivo nada
poderia intentar contra o indivíduo, já que ninguém
está obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
O próprio Executivo se encontraria sob o crivo do Judiciário e o último, por
sua vez, vindo a aplicar as penas e dirimir os conflitos imparcialmente. Por fim, os juízes
ficariam obrigados a respeitar e a obedecer as leis, evitando-se o indesejável
arbítrio judicial.
De fato, Carl Schmitt acentuou que o poder mais
sujeito ao arbítrio seria o Legislativo, pois que este possuiria a prerrogativa
de criar as leis podendo legislar conforme a vontade da maioria detentora do poder, assim gerando a opressão
sobre os grupos minoritários da sociedade[2]. Portanto, para se efetuar um controle efetivo
sobre àqueles que fazem as leis, foi desenvolvido o instituto do controle de
constitucionalidade, obrigando-se o legislador a respeitar os preceitos
assegurados na Carta Magna.
Notamos, ainda, que os poderes não são efetivamente divididos ou separados, mas encontram-se distintos
e coordenados, havendo a chamada interpenetração dos mesmos no intuito de
se viabilizar a prática governamental. Laurence H. Tribe nos ensina que já
existe entendimento pacificado pela Suprema Corte norte-americana acerca da
questão da cooperação entre os
poderes, na seguinte passagem:
“Durante
o século XIX a Suprema Corte manifestou um entendimento cristalizado no sentido
de que cada branch deveria estar limitado ao exercício dos poderes adequados à sua própria
função, e nenhuma outra, mas desde então, esta visão passou a ser, de forma
apropriada, rejeitada por ser insustentável (...)[3]”.
“Conforme o
entendimento firmado no início do século XX, a Corte interpretou que a
“separação dos poderes... não concebe cada branch como sendo...autônomo...[mas] deixa cada um...dependente uns dos
outros, assim como foi deixado para cada um...[o exercício das] funções de
natureza executiva, legislativa e judicial[4]”.
Isto
posto, uma completa separação de poderes é fato totalmente
inviável dentro da estrutura de engenharia constitucional de uma determinada
sociedade. Para permitir a implementação deste princípio, faz-se necessária a
intercomunicação entre os poderes. Desta forma, desenvolveu-se nos Estados
Unidos o sistema de freios e contrapesos,
que dispõe sobre as três funções do Estado, de tal forma que cada uma freie
as demais (le pouvoir arretê le pouvoir), proporcionado a moderação
da prática governamental[5].
Cabe
lembrar que, para muitos, haveria uma certa contradição entre a teoria da divisão dos poderes e a teoria da unidade e indivisibilidade do
poder estatal, que é visivelmente política. Georg Jellinek, neste sentido,
ilustraria que essas teorias foram desenvolvidas para fundamentar o Estado constitucional e embasar a
criação de um Estado federal. A
primeira teria o objetivo de conceber um tipo ideal de Estado; e a segunda
ousaria a criação pluralista do Estado composto por dualidade governamental.
Assim, Jellinek disserta sobre a confusão
que se fez entre soberania e poder estatal, equívoco que foi
responsável por todas as críticas acerca da célebre doutrina de Montesquieu.
Finalmente, o jurista alemão concluiria que o Estado moderno foi constituído a
partir das idéias jusfilosóficas dos grandes mestres Rousseau e Montesquieu,
havendo a conjugação de suas idéias
de forma a preservar a unidade do poder[6].
Com isso, o poder
estatal seria observado como uno e indivisível,
sendo mais apropriado empregar o termo funções
do Estado do que poderes estatais. Nestes
termos, Paulo Bonavides teceria o seguinte
comentário:
“Visceralmente
antagônico à concentração do poder, foi, portanto, o princípio fecundo de que
se serviu para a proteção da liberdade o constitucionalismo moderno, ao fundar,
com o Estado jurídico, o governo da lei, e não o governo dos homens, ou seja, a government of law and not
a government of men, conforme asseverou judiciosamente, numa locução já
histórica, o insigne John Adams, dissertando acerca da Constituição americana[7]”.
A questão da governabilidade do Estado torna-se mais
tormentosa a partir da criação do Welfare
State, ou Estado assistencialista.
Neste momento, surge um Executivo fortalecido
em face da demanda de políticas econômicas que devem ser implantadas rapidamente, não podendo aguardar ao
trâmite regular das leis. Desta forma, instrumentos de delegação legislativa
passam a ser conferidos aos governantes com o fito de viabilizar a
implementação de políticas públicas,
ainda que aparentemente sem se suprimir as prerrogativas do Legislativo.
Entretanto, o Estado
social consente com a perigosa existencia de um Executivo vivamente atuante, e que geralmente buscara requerer o seu alargamento de poderes para a realização de suas
novas diretrizes políticas. Neste caso, as meras leis delegadas não mais seriam
suficientes para a agilidade
desejada pelo governo, que entao passaria a reivindicar novas formas excepcionais de legislar,
rompendo com a harmonia entre os poderes e abrindo margem ao abuso governamental.
Segundo Karl Loewenstein[8], a clássica separação dos poderes estaria ultrapassada dentro da nova realidade do
Estado assistencialista. Segundo a sua analise, a classica divisão entre
as funções do Estado não seria de todo má, muito embora a ação governamental
contemporânea exija uma direção mais
unificada, que atualmente poderia ser chamada de liderança política. A função
do governo, dentro desta hodierna perspectiva, deixa de estar restrita a
execução de leis genericas e abstratas, que tao somente haverian de representar
a vontade geral da nacao. Agora a legislacao simplesmente vem a refletir o direcionamento politco da nação, e
tanto o Legislativo quanto o Executivo deixam de ser funções distintas, para serem simplesmente consideradas como diferentes técnicas de liderança.
Particularmente, nós não haveriamos de concordar com o postulado de
Karl Loewenstein, uma vez que independentemente da ação governamental respeitar a diretriz
política comum, a classica divisão de funções do Estado continua sendo
relevante para a defesa das liberdades. Aliás, a prática política nos tem
mostrado que a lição de Montesquieu permanece em pleno vigor, pois sempre que
se concentra excessivo poder observamos a emergencia do fenomeno do autoritarismo. A divisão das funções do Estado garante
a limitação do poder dos
governantes, principal instrumento dos cidadãos contra a usurpação do poder.
Portanto, concluímos que nenhum argumento deve dar substrato à mitigação ou supressão da separação dos poderes. Evocando questões de relevante interesse nacional [9]como
justificativa para o Executivo adquirir poderes
extraordinários de legislar, enfraquecemos o freio desta função, desatando
as amarras jurídicas que evitam o surgimento de governos autoritários. Assim sendo, devemos
notar que os princípios da separação dos poderes permeiam toda a estrutura
governamental, já que compõe a base de sustentação do mesmo. Ao invocar-se
estes princípios não argüimos questões meramente constitucionais, mas também
asseguramos a construção de governos legítimos e transparentes[10].
•
Análise do Caso no Governo FHC
Infelizmente, durante os oito anos de administração Fernando Henrique
vimos em nosso país a constante relativização
da distinção entre os poderes, fato que se torna visivelmente encarnado
na aplicação das medidas provisórias[11].
Ao longo deste período, o chefe do Executivo se utilizou freqüentemente deste
instrumento para regular toda sorte de matérias, sob o questionável argumento da necessidade de se viabilizar a ação governamental. Contudo, é fato
notório que inúmeras vezes tais medidas foram empregadas desnecessariamente, aonde seria
perfeitamente possível de se respeitar o trâmite legislativo sem que houvesse
qualquer dano tanto social quanto à engenharia constitucional.
Desta maneira, observou-se o sistema presidencialista pátrio tornar
corriqueira a aplicação de medida provisórias em matérias que a Constituição
determinaria a regulamentação via legem. Por que, enfim, todos sabemos
que determinados preceitos foram positivados na Constituição justamente para
serem especialmente salvaguardados, de modo a proteger os direitos de cada
cidadão. O desrespeito de tais preceitos por meio de medidas que deveriam ser
excepcionais, somente nos trouxe uma profunda insegurança jurídica que e
incompativel com a concepção mais basilar de Estado de Direito.
Aliás, devemos enfatizar que uma das características mais peculiares
ao governo FHC foi o impressionante número de edições e reedições de medidas
provisórias. Somente em seu primeiro mandato foram editadas 2.643 medidas, e
somando essas às editadas em seu segundo mandato, este número ultrapassou os
seis mil. E a pessoa de FHC, que no
passado fora crítico árduo de tais medidas[12],
acabou por se tornar o maior responsável pela banalização da edição de medidas
provisórias, uma vez que essas deveriam ser utilizadas somente em caráter provisório
e excepcional. Cabe, até mesmo, considerar se não vivemos durante este
período uma espécie de “ditadura esclarecida” do Executivo, que simplesmente
passou a legislar via recurso emergencial para efetivar
planos econômicos heterodoxos e a criação de sobretaxas, mesmo que, para isso,
tivesse que atropelar os direitos fundamentais assegurados na Constituição
Federal[13].
Por fim, a constatação mais grave é a de que quando o presidente
regularmente evocou os elásticos pressupostos da relevância e da urgência,
além de haver violentado os direitos constitucionalmente
assegurados ao cidadão, igualmente abriu o perigoso precedente para a
realização de toda a sorte de abusos governamentais. Assim, percebemos que o
desvirtuamento da teoria da separação dos poderes gerou uma profunda
instabilidade às instituições jurídicas, sujeitando o povo brasileiro
arbitrariedade do chefe do Poder Executivo. Independentemente da política
governamental que precisaria ser implantada, o dogma da distinção de funções do Estado foi absolutamente
desrespeitado durante o Governo FHC. Na realidade, o que se viu foi o Poder
Executivo vindo a se tornar uma espécie de super
poder, aniquilando os demais e, conseqüentemente, conspirando com as elites
políticas e econômicas para a opressão
do povo brasileiro.
[1]
Conforme as palavras de Montesquieu: “Para que não se possa abusar do poder
é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder. Uma
constituição pode ser de tal modo que ninguém será constrangido a fazer coisas
que a lei não obriga e a não fazer as que a lei permite”. In MONTESQUIEU, Do
Espírito Das Leis, Os Pensadores, vol.1, Editora Nova Cultural, Livro XI,
pg.205.
[2] FERREIRA
FILHO, Manoel Gonçalves, Constituição e
Governabilidade, editora Saraiva, São Paulo, 1995, pg44.
[3] TRIBE, Laurence H., American
Constitucional Law, Foundation Press, New York, Third Edition – Volume One,
2000, pg.122. Tradução nossa.
[4] Idem.
[5] Que na visão dos
norte-americanos não é considerada ruim,
visto que o governo menos atuante é àquele que tem menor possibilidade de ser
arbitrário.
[6] JELLINEK, Georg, Allgemeine
Staatslehre, pg. 497. In BONAVIDES,
Paulo, Do Estado Liberal ao Estado Social,
editora Malheiros, 6a edição, São Paulo, 1996, pg.76/78.
[7] BONAVIDES,
Paulo, Do Estado Liberal ao Estado Social,
editora Malheiros, 6a edição, São Paulo, 1996, pg.72.
[8] LOEWENSTEIN, Karl, Political
Power and the Governmental Process, 2ª edição, Chicago, 1965,pg34/42. In FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Constituição e Governabilidade, editora
Saraiva, São
Paulo, 1995, pg46.
[9] A primeira
vez que o termo aparece na história política brasileira foi em 1935, onde a ameaça
de esquerda viabilizou a aprovação pelo Congresso Nacional uma Lei de
Segurança Nacional. Esta, por sua vez, conferiu ao governo federal poderes
especiais para reprimir todas as atividades políticas classificadas como subversivas.
Assim, em 10 de novembro de1937 Getúlio Vargas promove um golpe de Estado,
suspende as eleições, fecha o Congresso e toma definitivamente o poder
outorgando uma nova Constituição, conhecida como a Constituição Polaca.
Algumas décadas depois, em 1964, os militares chegam ao poder invocando
novamente o interesse nacional, o que resultou num regime de
centralização política que sufocou a nação por vinte anos. In SKIDMORE,
Thomas, Brasil: De Getúlio a Castelo, editora Paz e Terra, 10a edição, São Paulo, 1996, pg 26.
[10] TRIBE, Laurence H., American
Constitucional Law, Foundation Press, New York, Third Edition – Volume One,
2000, pg.126/127.
[11] Finalmente, em setembro de 2001, o Congresso
promulgou a Emenda Constitucional no 32 impondo maiores limitações à
edição de medidas provisórias pelo Chefe do Executivo. A partir desta emenda,
medidas provisórias não poderão versar sobre as seguintes matérias: a)
nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito
eleitoral; b) direito penal, processual penal e processual civil; c)
organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a
garantia de seus membros; d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias,
orçamento e crédito adicionais e suplementares, ressalvadas para o atendimento
de despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção
interna ou calamidade pública. Fica vedada a edição de medidas provisórias acerca
matéria reservada à lei complementar, bem como matéria já disciplinada em
projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do
Presidente da República.
[12] Segundo Augusto
Zimmermann: “E o mais interessante de tudo isso, é o fato de que o Presidente
Fernando Henrique Cardoso, que já se utilizou cinco mil medidas provisórias ao
longo de seu governo, tinha se constituído no passado em um dos maiores
críticos dos abusos destas edições descontroladas. Aos 7 de junho de 1990, em
artigo publicado na Folha de S.Paulo, o então senador Fernando Henrique Cardoso
denunciava exatamente este abuso do número de medidas provisórias editadas e
reeditadas, considerando- as uma contrafação flagrante e disfarçada à
Constituição Federal. O artigo, que se chamava Constituição ou prepotência, notabilizou o atual Presidente como um
dos maiores críticos tanto da quantidade dessas medidas quanto de sua extensão
a planos econômicos.” In ZIMMERMANN,
Augusto, Direito Constitucional, Rio de Janeiro, editora Lumen Juris,
2002.
[13] Idem.
Bibliografia:
BONAVIDES,
Paulo, Do Estado Liberal ao Estado Social,
São Paulo: Malheiros, 1996;
FERREIRA FILHO; Manoel Gonçalves, Constituição
e Governabilidade, São Paulo: Saraiva, 1995;
GRAU, Eros Roberto (org.), Direito
Constitucional, editora Malheiros, São Paulo, 2001;
MONTESQUIEU; Do Espírito Das Leis, Os Pensadores, vol.1, Editora
Nova Cultural;
SKIDMORE, Thomas; Brasil: De Getúlio a Castelo, São Paulo: Paz e
Terra, 1996;
TRIBE, Laurence H.; American Constitucional Law – Volume One,
New York: Foundation Press, 2000.
ZIMMERMANN, Augusto; Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
Abstract:
This article aims to present the classical
distinction among governmental branches as a mechanism to check the political
power and, at the same time, to establish a harmonic relation between this
doctrine and matters associated with the capacity to govern.
Finally, it indicates some distortions committed against the idea of limitation
of powers during the two consecutive mandates of the president Fernando
Henrique Cardoso, notably through the abusive promulgation of provisory
decrees.
Resumo:
Este
artigo tem como objetivo demonstrar a necessidade da distinção dos poderes do
Estado como meio de limitação do poder, ao mesmo tempo visando harmonizar esta
doutrina com a questão da governabilidade. Por fim, serão evidenciadas as
distorções cometidas na estrutura tridimensional do Estado durante os dois
mandatos consecutivos do presidente Fernando Henrique Cardoso, especialmente
através da excessiva edição de medidas provisórias.
*
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A sua monografia de bacharelado sobre o princípio da separação dos poderes
foi aprovada com louvor, havendo recebido grau máximo por todos os membros
da banca examinadora do Depto. de Ciências Jurídicas da PUC-RJ.