O LATIFÚNDIO GLAMOURIZADO: agronegócios e desenvolvimento
sustentável na era FHC
Paulo Bahia*
Os governos
Fernando Henrique Cardoso deram forte ênfase a uma política agrícola voltada
para a competitividade em um mercado mundial. A gestão Pratini de Moraes
caracterizou-se por uma agenda temática sobre o agronegócio, o desenvolvimento
sustentável e a inclusão do Brasil nos mercados norte-americano e europeu, como
estratégia de geração de renda e inclusão social. Entretanto, esta agenda
sequer tangenciava a questão fundiária no Brasil, fazendo com que a política
agrária de janeiro de 1995 até dezembro de 2002 tenha como referência a idéia
de reconfiguração da tradição ruralista brasileira (Fragoso e Florentino,
1993).
Percebe-se na política agrícola
de Pratini de Moraes a existência de um conjunto de interpretações que promovem
a configuração de um cenário que aponta para a unificação indevida das idéias
de desenvolvimento sustentável e inclusão social, utilizando-se do agronegócio
e de uma agricultura de alta produtividade como política indutora de eqüidade
social e cidadania. Tais interpretações dos principais agentes políticos
hegemônicos da era Fernando Henrique Cardoso desconsideram que o território e o
mundo agrícola são objeto de lutas aos quais diferentes atores sociais atribuem
sentidos distintos em função da hierarquizada e semi-estática estrutura social
brasileira.
Não se trata, portanto, do sucesso ou insucesso de uma política agrícola
que tenha seu eixo na utilização maciça de recursos tecnológicos e científicos
e uma inserção competitiva em um mundo conectado em tempo real por redes
informatizadas de comunicação (Castells, 2000), mas de uma disputa entre
diferentes projetos sociais territorializados, geradores de discursos
subjacentes, que têm na estrutura fundiária brasileira o alicerce de uma
tradição que se reconfigura e se hegemoniza na utilização dos recursos de poder
institucional.
No Brasil do tempo presente, em particular nos anos dos governos FHC, o
mundo rural “midiatizado” e “glamourizado” do “universo ‘country’ televisivo”
constrói no imaginário social noções de sustentabilidade, de produtividade, de
eficiência, de cidadania e de qualidade de vida submetidas à lógica das
práticas sociais e políticas hegemônicas. As imagens de uma agricultura de
ponta e os símbolos de riqueza e poder, transmitidos todas as manhãs em rede
nacional de TV aberta, articulam-se para a obtenção de efeitos sociais
desejados pela pequena elite tradicional ou emergente, ou seja, a manutenção do
monopólio territorial, político e simbólico (Sen, 1999); contrastando com um
“rural” miserável e excluído, quase sem visibilidade midiática, a não ser
quando criminalizado em eventos às margens das rodovias nos telejornais das
mesmas redes de comunicação.
Como numa pintura surrealista, evidencia-se, no cenário do mundo rural
do Brasil contemporâneo, uma luta simbólica pelo reconhecimento da autoridade
para falar em sustentabilidade, produtividade, cidadania e qualidade de vida, e
os recursos de uma sociedade em rede, televisiva e informatizada, são
reificadores de um arcaísmo redesenhado em padrões cibernéticos.
A hierarquização da sociedade fica velada, aparece nas entrelinhas da
ação dos órgãos públicos, na definição e gestão de políticas, na representação
parlamentar desproporcional ao número de eleitores, no desequilíbrio do pacto
federalista, na votação dos orçamentos, na burocracia, na propina. Este caráter
autoritário permeia a política fundiária e agrícola, sendo no tempo presente,
no governo FHC, emblematizado na temática do agronegócio, da sustentabilidade e
na alta produtividade agrícola, que acabam por se constituir, mesmo que
contraditoriamente, em novos símbolos do autoritarismo, traço cultural e
estrutural da sociedade brasileira (Faoro, 1979).
Dessa forma, os segmentos hegemônicos sociais brasileiros estabelecem
uma desvinculação da idéia clássica de cidadania das estratégias de classes
dominantes e do Estado (Polanyi, 1999).
Diversos segmentos sociais, políticos e acadêmicos vêm adotando os
argumentos de Ulrich Beck, Anthony Giddens (Beck et al., 1997) e Manuel
Castells (2000) no que diz respeito à configuração de uma lógica de
distribuição dos riscos sociais, da reflexividade da modernização e do impacto
do acelerado desenvolvimento científico e tecnológico.
A noção de reflexividade de Giddens (Beck et al., 1997) está intimamente
ligada à sua teoria da transformação da sociedade industrial em sociedade de
risco. Seu conceito de modernização reflexiva baseia-se na noção de que quanto
mais o processo de “modernização simples” prossegue, mais os alicerces da
sociedade industrial são dissolvidos, consumidos, alterados e ameaçados.
O reconhecimento público de riscos sociais e azares políticos são um dos
dois principais precipitadores da modernização reflexiva e, finalmente, da
sociedade de risco. O outro precipitador da modernização reflexiva é o declínio
das instituições políticas clássicas, como partidos e sindicatos, a
individualização da política e o papel crescente das políticas locais,
temáticas, religiosas, étnicas e afetivas (Castells, 2000).
O cerne da teoria da
modernização tecnológica está centrado em uma visão relativamente otimista dos
potenciais de mudança científica que levem às soluções para os problemas de
natureza social e política (Polanyi, 1999). É particularmente argumentado que
as influências socioeconômicas no desenvolvimento de pesquisas e na escolha da
tecnologia tenderão no tempo a conduzir a melhoras na eficiência dos negócios
agrícolas, promovendo a conversão de matérias-primas em produtos acabados e
facilitando a redução dos desníveis sociais (Bresser Pereira, 1996).
As idéias da modernização reflexiva, da sociedade de risco e da
sociedade em rede promovem uma reflexão sobre o Estado burocrático-capitalista
tradicional e sua performance pobre em termos de sustentabilidade, inclusão
social e agronegócios no Brasil.
Muitos apóstolos do agronegócio e da sustentabilidade, como o ministro
Pratini de Moraes, tendo como referência as teses da modernização reflexiva,
têm argumentado que novas tendências na estrutura do Estado possibilitarão um
estímulo à “auto-regulação” do mercado agrícola na sociedade civil
contemporânea, através de mecanismos legais e econômicos, como a eficiência
indutora de mercados e incentivos a uma política agrícola de alta produtividade,
e pressões dos movimentos de cidadãos, como prognostica Luiz Carlos Bresser
Pereira (1996).
Creio que muitas suposições das teorias de modernização não têm muita
aplicabilidade em países pobres ou de baixa renda, e este também é o caso das
perspectivas da modernização reflexiva.
A teoria da sociedade de risco, por exemplo, está pesadamente ancorada
na noção de “igualdade de risco”, de que, não importa a classe, ninguém escapa
dos riscos e azares de grande escala. A igualdade do risco é vista como
contribuindo simultaneamente para a queda da classe social e como facilitadora
de novas formas de políticas temáticas ou locais que atravessam as linhas
tradicionais de classe (Beck et al., 1997).
A meu ver isto é aparente, pois onde, hipoteticamente, existe igualdade
de risco, isso se dá porque há menos desigualdade social do que nas sociedades
de capitalismo concentrador e discricionário, como no Brasil.
A tradição (Faoro, 1994) das
práticas políticas brasileiras moderniza seu eficiente discurso ao manejar os
valores de uma teoria social arquitetada pela modernização reflexiva, pela
sociedade de risco, pela sociedade em rede e pela reinvenção e ressignificação
do passado (Beck et al., 1997). Ela empreende uma ação política que enfoca a
idéia de sustentabilidade correlacionada a uma agricultura de alta
produtividade e competitividade, geradora de oportunidade de negócios em um
mundo globalizado, uma vez que o desafio que se impõe é o de criar as condições
para, se não reduzir, pelo menos atenuar o quadro preocupante dos riscos
sociais e políticos de uma estrutura fundiária excludente.
As noções de sustentabilidade, produtividade, eficiência, inclusão e
cidadania representam discursos em disputa pelo domínio hegemônico de cada
expressão, a que se quer fazer a mais legítima. Pois estas idéias representam
noções a que se pode recorrer para tornar objetivas diferentes representações,
reconfigurando tradições ou acalentando rupturas, a depender dos atores
políticos que manejam estes conceitos. Na cena social brasileira, o rumor mais
presente traz os sons do passado reinventado.
Abre-se, portanto, uma luta simbólica pelo reconhecimento da autoridade
para falar em cidadania, qualidade de vida, inclusão e sustentabilidade. E para
isso faz-se necessário constituir uma audiência apropriada, um campo de
interlocução eficiente onde se possa encontrar aprovação. A meu ver, a política
agrícola de Pratini de Moraes, ancorada na temática do agronegócio, da
agricultura de alta produtividade e do desenvolvimento sustentável representa
um destes campos políticos.
Os governos Fernando Henrique Cardoso e,
particularmente, a política agrícola capitaneada por Pratini de Moraes,
montaram um cenário modernizante tendo como alicerce a secular hegemonia de uma
elite rural latifundiária e excludente. Sendo, portanto, necessária uma
reflexão sobre o perfil da presente modernização das instituições políticas
brasileiras, indicando a forma pela qual existe uma persistente capacidade de
readaptação das elites agrárias brasileiras ao processo de modernização da
estrutura política do Estado brasileiro, ressaltando nesse perfil as formas
pelas quais o pacto federalista é operado como instrumento político de
manutenção de uma hegemonia social ruralista.
No tempo presente, o Brasil é uma sociedade
capitalista. O mercado, a propriedade privada e as relações contratuais são os
principais responsáveis pela organização do sistema de produção e distribuição
de bens. O sistema de trocas através da compra e venda de mercadorias é o
elemento constitutivo central de sua rede de sociabilidade e da performance
cotidiana de seus atores societais.
Entretanto, o capitalismo no Brasil está assentado
sobre um conjunto de instituições sociais que têm no patrimonialismo (Faoro,
1979) e na propriedade de terra sua principal racionalidade (Prado Jr., 1987).
E é essa persistência da cultura política brasileira que edifica a base da
exploração social, o poder dos grupos dominantes e a corrupção como paradigma
de prestígio e instrumento de compra e venda de “mercadorias políticas” (Misse,
1999).
O mundo
agrário mercantil no Brasil do passado e seu desdobramento para o capitalismo
contemporâneo globalizado apoiou-se em valores tradicionais, em redes sociais
familiares, corporativas ou de natureza religiosa e afetiva (Faoro, 1994). A
tipologia do capitalismo no Brasil, em meu entendimento, está assentada na
vitória política do projeto das elites coloniais portuguesas, que tinham o
arcaísmo como projeto de futuro (Fragoso e Florentino, 1993).
As marcas da estrutura social brasileira são a
heterogeneidade e as desigualdades acentuadas pelo distanciamento provocado
pelos padrões de acumulação de capital (Martins, 1999). O acesso diferenciado
aos bens de consumo coletivo é talvez o principal elemento de estabelecimento
de diferenças sociais. A utilização pela sociologia e pela estatística dos
tradicionais indicadores de renda familiar ajuda pouco a compreender a maneira
pela qual os bens públicos e coletivos são apropriados de forma privada e
excludente por uma pequena parcela da população, pois a dinâmica da sociologia
política brasileira indica que quem tem mais renda reúne os recursos políticos
mais apropriados e eficazes para se acercar e usufruir dos bens de consumo
coletivo, através de um sistema de práticas políticas que privilegia as
relações de dependência pessoal. Marca da cultura agrária colonial brasileira
(Prado Jr., 1987).
Esse acesso diferenciado a serviços de consumo
coletivo, como saúde, educação, segurança, que são em geral proporcionados pelo
moderno Estado brasileiro, acentuam esta especificidade da cultura política
brasileira. Esses desníveis ampliam-se e consolidam-se com o crescimento
demográfico e a urbanização acelerada.
A excludente diferenciação social brasileira é
fortemente marcada pelos desníveis regionais e pela utilização quase que
monopolista dos espaços territoriais (Lefebvre, 1999). A população mais pobre e
a maioria dos excluídos concentram-se nas regiões Norte, Nordeste e
Centro-Oeste, nas zonas rurais e nas periferias “quilombolas” das regiões metropolitanas
(Cerqueira Filho, 1982).
Os clássicos Henri Lefebvre, José de Souza Martins e Caio
Prado Junior nos ajudam a compreender como se deu o dinâmico processo de
modernização conservadora da sociedade brasileira e as maneiras pelas quais o
sistema agrícola se adaptou ao acelerado desenvolvimento científico e
tecnológico, mantendo uma estrutura fundiária fortemente concentrada. Esse estratagema das elites rurais
brasileiras provocou o deslocamento de milhões de brasileiros das áreas rurais
para as cidades, em ritmo acelerado a partir dos anos 30, e em escala
exponencial a partir dos anos 60 do século XX.
A estrutura fundiária brasileira representa um
estigma. É o emblema da exclusão, tendo papel decisivo na consolidação de uma
cultura política produtora de desigualdades e opressão (Martins, 1994). A
distribuição espacial desigual da população e da pobreza no território nacional
é geradora de tensões no sistema político, na medida em que as populações
urbanizadas, mesmo com baixa capacidade de mobilização política e submetidas às
práticas de uma política urbana clientelista (Diniz,1982), vêem aumentado seu
poder de reivindicação e pressão, induzindo, mesmo que de forma precária, um
acesso ampliado a bens coletivos e serviços, assim como a emergência de atores
políticos que os representem no cenário das instituições federalistas
republicanas.
As elites rurais, através de suas coalizões
políticas parlamentares e das práticas reconfiguradas de um tradicionalismo
patrimonial, manobram tais tendências emergentes através de mecanismos que
compensem o deslocamento desses “privilégios”, fruto das negociações e
repactuações sociais que visam arrefecer as tensões populacionais e políticas
no meio urbano.
Um desses mecanismos compensatórios utilizados
pelas elites rurais reconfiguradas é o pacto federalista, que tem como
conseqüência um domínio da representação parlamentar no Congresso Nacional,
tendendo a supervalorizar a representação política dos Estados do Norte,
Centro-Oeste e Nordeste, em contraposição aos Estados do Sul e Sudeste, ao
engenheirar um desequilíbrio no sistema de representação política dos Estados
mais urbanizados e populosos em relação aos de menor densidade demográfica e
alta concentração na propriedade de terra. Este nível de desigualdade na representação
institucional favorece a prática de um neopatrimonialismo, reconfigurando a
tradição na cultura política de uma sociedade em rede digitalizada, consagrando
o sentimento e a idéia de que o eixo central da estratificação social
brasileira é o acesso desigual e concentrado aos bens de consumo coletivo
administrados pelo poder público estatal. Uma observação atenta dos episódios
recentes constatados na atuação institucional dos órgãos de fomento ao
desenvolvimento regional, como SUDENE e SUDAM, fortalece os indícios de um
patrimonialismo reconfigurado pela modernização do Estado.
A trajetória social e política da sociedade
brasileira aponta para uma apropriação privada quase que permanente dos
mecanismos institucionais do Estado brasileiro (Faoro, 1979). A reflexão sobre como o pacto federalista é
um dos instrumentos de manutenção da hegemonia política das elites agrárias
reconfiguradas leva-me a indicar pontos para uma discussão sobre as relações
atuais entre questão agrária, estrutura fundiária e sistema político no Brasil.
A descentralização e o municipalismo fundaram o
novo pacto federativo iniciado com a Constituição de 1988. A prática federativa
brasileira recente, quando comparada com outras federações, nos aponta para
algumas contradições e o estabelecimento de vícios tendenciosos no sistema
jurídico-político brasileiro, particularmente a identificação de um vazio
institucional no plano das relações regionais e nas relações
intergovernamentais entre Estados e Municípios. Pois, de forma original, a
Federação brasileira tem três entes federados, os Municípios, os Estados, um
Distrito Federal equivalente a um Estado e a União, fortalecendo no nível das
práticas políticas as elites municipais locais e sua rede de interesses
intra-regionais, que tem no latifúndio e na propriedade de terras sua principal
caracterização sociológica (Martins, 1994).
Os Estados federados têm seu poder político
fragilizado pela concorrência institucional delegada aos Municípios e,
hipoteticamente, existe uma janela de possibilidades para indução ao
enfraquecimento do poder nacional e para a neutralização de um projeto de
nacionalidade, sobretudo quando se universaliza o conceito de cidade mundial
(Castells, 2000) e de autonomia absoluta do Local (Sirkis, 1997) sobre o Estado
nacional. Conceitos e idéias que são extremamente apropriados para a
consolidação de um sistema político neoliberal globalizado que desregulamenta e
ressignifica o sentido do Estado-Nação clássico, como foi feito pelas reformas
constitucionais empreendidas ao longo dos governos Fernando Henrique Cardoso.
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Resumo:
Neste artigo, apresento
sob a forma de ensaio acadêmico breves reflexões sobre a política agrícola dos governos
Fernando Henrique Cardoso, em particular a etapa capitaneada pelo ministro
Pratini de Moraes, que ancorou sua agenda na temática do agronegócio, do
desenvolvimento sustentável e da exclusão social no Brasil contemporâneo.
Procuro evidenciar como as tradicionais formas de hegemonia política se
modernizam, ao mesmo tempo que indico a natureza desta modernização.
Para tal, ensaio uma breve reflexão sobre o perfil da
modernização das instituições políticas brasileiras, indicando a persistente
capacidade de readaptação das elites
agrárias brasileiras ao processo de modernização da estrutura política do
Estado brasileiro, ressaltando as formas pelas quais o pacto federalista é
operado como instrumento político de manutenção de uma hegemonia social.
Palavras-chave:
agronegócios, desenvolvimento sustentável, pacto federalista, tradição.
* O autor é sociólogo, cientista
político e professor da UFRJ.