SOBRE O MODELO POLÍTICO BRASILEIRO NA ERA FHC

 

Aluizio Alves Filho *

 

1 – Sobre o conceito de “modelo”.

Uma consulta aos principais trabalhos sobre a formação social brasileira publicados na primeira metade do século XX deixa patente que o termo “modelo” não fazia parte das categorias usuais no período.   Foi no fim da década de sessenta que o termo ganhou grande evidência e começou a ser largamente utilizado no linguajar de cientistas sociais brasileiros que passaram a falar amiúde em “modelo econômico”, “modelo político”, “modelo político econômico” etc. Vale convir que novos conceitos não surgem e tornam-se usuais ao sabor do acaso.

Dentre as razões do surgimento do conceito de modelo, e de seu largo uso no campo intelectual brasileiro em momento histórico preciso, destaco duas que me parecem fundamentais:

A primeira prende-se ao fato de o conceito ter entrado na ordem do dia e se tornado popular com o advento da chamada “sociedade de consumo”, acontecimento marcante no desabrochar da segunda metade do século XX. Para fundamentar melhor o raciocínio, observo que o advento da dita “sociedade de consumo” teve por força motriz o crescimento exponencial da “revolução técnico-científica” (RTC) no pós - 45.  Desta forma, na medida em que dinamizava as forças produtivas do modo de produção capitalista, a RTC criava as condições de uma cada vez maior globalização consumista pela colocação no mercado internacional de um conjunto de produtos tipificados pela diversidade de ofertas e marcas.

No bojo desse intenso processo de mudanças nos hábitos de consumo foi se popularizando o conceito de “modelo”. O processo competitivo entre as empresas visando a conquistar e ampliar o mercado consumidor levou-as a investir mais e mais em pesquisa científicas. O propósito era produzir o “modelo novo”, atraindo público para o consumo de novidades. Tal foi a magnitude deste processo que comprar (possuir) o “modelo do ano” (do carro, da geladeira, do aparelho de som, da TV etc.) funcionava como símbolo de status no interior de sociedades massificadas, indicativo da posição social elevada ocupada na estratificação sócio-econômica pelo “feliz proprietário” da bugiganga adquirida. Em fins da década de sessenta e na de setenta, os apelos propagandísticos voltados para o consumo do “novo modelo”, do “modelo do ano”, invadiram as telinhas das TVs, as páginas dos classificados e as vitrines e paredes das lojas e magazines, inculcando desejos consumistas e fazendo a palavra “modelo” espalhar-se no uso cotidiano.

A segunda razão relaciona-se com a primeira e dela deriva. O conceito de modelo invadiu o universo semântico das ciências sociais em meados da década de sessenta. Invadiu não apenas em função da popularização do termo, alavancado pela ideologia do “novo”. Invadiu também em função de especificidades vivenciadas no campo intelectual, mormente a decorrente da necessidade sentida por cientistas sociais de valer-se de novos conceitos para tentar compreender a nova, inesperada e enigmática conjuntura brasileira, trazida à baila pelo golpe de 1964. Golpe seguido por outros de natureza e propósitos similares e que, em poucos anos, transformaram a América Latina no paraíso das multinacionais, tendo sua ação de rapina avalizada pelos então chamados, com eufemismo, “regimes autoritários” – fortemente apoiados pelos Estados Unidos e pelo empresariado em geral.

Para bem alicerçar a razão apresentada no parágrafo anterior, faz-se necessária uma fundamentação mais acurada. Objetivando fazê-la, parto do princípio de que a mera alusão à macro acontecimentos - como a Abolição (1888) e a República (1889) - é suficiente para indicar o quadro referencial no qual floresceu o pensamento social brasileiro do século XX e, desta forma, prover de significado sociológico o conjunto de raciocínios que imediatamente se seguem.

Abolição e República deram um bom pontapé nas bases organizacionais em que se alicerçava o Brasil Império. Entre outras quinquilharias, mandaram às favas a escravidão e os privilégios da nobreza. O 13 de maio redefiniu o status dos afro-brasileiros, que passaram de escravos a cidadãos (1). Com a Constituição de 1891, decorrente do 15 de novembro, caiu por terra a eleição à base de renda, passando o povo a ser o soberano do processo político – ao menos na letra da lei. Ao lado dos ideais da democracia representativa, a 1a Constituição Republicana adotava o liberalismo e o federalismo como princípios ordenadores. Apesar das esperanças colocadas em curso, o anunciado progresso sempre esteve longe de fazer-se real. Esta situação pode ser ilustrada pela mera lembrança do título de um livro publicado pouco após a revolução de 1930: Brasil errado (1932), de Martins de Almeida.

Entre a Proclamação de 1889 e o golpe de 1964, o Brasil conheceu quatro Constituições que, produto de lutas e contradições, procuraram ordená-lo de formas bem diferenciadas: 1891, 1934, 1937 e 1946. Como um todo, pode-se dizer que o pensamento social e político brasileiro - que atravessa o longo período 1889/1964, em que pesem especificidades conjunturais, diferentes orientações teóricas e opções ideológicas de tantos “interpretes”-  procura responder a um conjunto de questões que possuem um núcleo comum.

1a Quais as conseqüências da “herança colonial” sobre a formação social brasileira?

2o Qual é a identidade do brasileiro?

2a Quais são as peculiaridades da nossa formação social, e como estas lhe deram uma configuração específica, tendo em vista a “herança colonial” e a identidade nacional?

4a Quais são os efeitos da importação das idéias nas instituições políticas brasileiras?

5a Como superar o “atraso” e modernizar o país, levando em conta suas peculiaridades, inclusive a dependência externa?

6a Qual a melhor forma de organizar a nação, tornando-a próspera e combatendo a pobreza?

Todas estas questões, que ganham tons e cores tão diversas em diferentes autores e momentos históricos determinados, apontam sempre para um mesmo centro de preocupações comuns: o da construção de um Estado Nacional, concretamente soberano e independente. O golpe de 1964, atrelando mais e mais o Brasil à dependência externa, fez com que a problemática urdida ao longo de décadas ruísse de uma hora para outra, como se fora um castelo de cartas.

Foi durante a longa noite em que o país mergulhou durante as décadas estranhamente batizadas como da “revolução redentora” e do “milagre brasileiro” que economistas, politicólogos e outros estudiosos do social lançaram mão de novas ferramentas para tentar compreender a inusitada situação. Foi neste contexto que noções e conceitos como “populismo”, “colapso do populismo”, “ideologia nacional-desenvolvimentista”, “dependência”, “teoria da dependência”, “modelo”, “modelo econômico”, “modelo político-econômico” e “modelo político” irromperam, substituindo outras e se tornando recorrências muito usuais.

Durante a República e até 1964 a questão que se fazia central nas pesquisas e debates sobre Estado e sociedade no Brasil tinham por propósito tentativas de compreender o que estava dentro para ordenar o nacional. Após 64, o problema – cada vez mais fabricado pela mídia e imposto pela dita “elite bem pensante” - era como adequar o interno aos interesses do capital alienígena, que se tornaria cada vez mais voraz e globalizador.

 

2 – Alguns estudos sobre “modelo”, no pós - 64.

         Com o propósito de ilustrar como o termo “modelo” tornou-se recorrência no pós - 64, mas sem nenhuma intenção de esgotar o assunto, lembramos o título de algumas publicações - livros, artigos e mesmo o título do capítulo de um livro (já clássico) – que vieram a lume nas décadas de sessenta e setenta: Sistemas políticos e modelos de poder no Brasil (Almeida, 1966), Modelo brasileiro de desenvolvimento (Campos, 1970), Análise do modelo brasileiro (Furtado, 1972), O modelo político brasileiro (Cardoso, 1973), Radiografia de um modelo (Sodré, 1974) e O modelo autocrático-burguês (Fernandes, 1976). (2).

         Nenhum dos autores, nos trabalhos citados, chega claramente a definir o que compreende por “modelo”, embora as linhas centrais que dão sentido ao conceito possam ser apreendidas na leitura destes textos. Grosso modo, e apartadas especificidades, a expressão composta “modelo econômico” aponta para o estudo da maneira como uma formação social determinada produz e reproduz suas relações de produção.  Por “modelo político-econômico” deve-se entender a articulação entre a instância política e a econômica da formação social considerada. Finalmente, por “modelo político” deve-se entender os mecanismos sociais de que se vale e engendra quem detém o cetro do poder político para manter e exercer o mando (legitimamente ou não), tendo em vista limites legais impostos, correlação de forças, sistema de alianças, compromissos com as bases de sustentação social e outras peculiaridades internas e externas, como desigualdade social e dependência, respectivamente.

Em que pese a complexidade e a qualidade teórica dos trabalhos citados, é no texto O modelo político brasileiro, que Fernando Henrique Cardoso originalmente apresentou em seminário da Universidade de Yale (EUA), em 23 de abril de 1971, que encontramos rico manancial metodológico útil aos nossos propósitos analíticos no presente artigo.

 

3 – Algumas características do “modelo político brasileiro” nos governos militares, segundo FHC.

Os chamados “marxistas dogmáticos” julgam bastar “catar” citações em Marx - estudioso que viveu no século XIX, tendo a sua obra, obviamente, por referencial empírico o capitalismo industrial que então desabrochava na Europa - e, por analogia e dedutivismo, “pregar” tais citações em situações historicamente vivenciadas em outro continente, mais de século depois, para assim elaborarem explicações que acreditam consistentes e convincentes para o entendimento dos fenômenos sociais. Pobres almas!

No reverso da medalha, situam-se imbecis raivosos que imaginam que métodos que não entendem nem estudam perdem a eficácia, na medida em que são xingados e amaldiçoados por eles. Pobres diabos!

Fernando Henrique Cardoso, cientista político bem apetrechado teoricamente e ex-presidente da República do Brasil, entende de outra maneira. Entende que método é método e, sendo assim, é para ser utilizado como tal – quando vem ao caso – no exame de situações sociais concretas. É o que faz ao utilizar, no artigo “O modelo político brasileiro”, instrumental legado por Marx para produzir conhecimentos úteis para a compreensão do “modelo político” posto em curso em abril de 64.

         É apoiado em algumas das fecundas ferramentas analíticas construídas pela genialidade de Marx que Fernando Henrique Cardoso formula uma explicação sociológica capaz de acender um feixe de luz sobre as razões da ruptura institucional ocorrida em 1964.

Uma delas é a que concerne a determinação da política pela economia. Ou dizendo de maneira mais precisa: a determinação, em última instância, da superestrutura pela infraestrutura, com autonomia relativa da primeira em relação à segunda.

Outra hipótese de que também se vale é a de que são as forças produtivas que articulam e determinam a natureza das relações de produção. Com base neste referencial, Marx elabora algumas situações “típicas ideais”, entre as quais a seguinte: mudanças qualitativas ocorridas nas forças produtivas materiais supõem um remanejamento nas bases sociais de sustentação do poder político. Remanejamento imprescindível para assegurar, na instância do poder, a necessária adequação entre o ritmo das mudanças nas forças produtivas materiais e a reprodução ampliada das relações de produção. (3)

É sem dúvida tendo por referencial os postulados em questão que Fernando Henrique Cardoso considera que a gênese do golpe de 64 deve ser procurada em mudanças ocorridas nas forças produtivas materiais durante o governo Juscelino Kubitschek (1956 – 1961).

Por certo, essa alteração deu-se antes de 1964 no que diz respeito ao estilo de desenvolvimento econômico; desde o governo JK perdera força o modelo de desenvolvimento que, nascido no final dos anos 30 – com a siderurgia de Volta Redonda, se se quiser dar um marco – ganhara força durante a guerra e se transformara em orientação política relativamente clara durante o segundo governo de Vargas. (1950 –1954).

Argumenta ainda Fernando Henrique Cardoso que, a partir do Estado Novo:

“o papel do Estado nos investimentos para a construção da indústria de base e em setores pioneiros da produção de bens de consumo durável era decisivo (...) Estado, capital nacional e investimento externo (principalmente através do financiamento de obras públicas), nesta ordem, constituíam as molas para o desenvolvimento”. (Cardoso: 1973; pp. 53 e 54).

Em contrapartida, no período JK:

Com a política econômica de Kubitschek, de rápida industrialização e de ampliação do consumo de massas (isto é, de classes médias urbanas), começou a haver uma inflexão no que diz respeito aos grupos que atuavam nas decisões sobre a política econômica, na forma como se dava o investimento e no seu controle. As bases sociais e políticas sob as quais se assentava o regime populista (...) começaram a deixar de corresponder, em forma variável, aos setores de classe que controlavam as forças produtivas”. (Cardoso: 1973; p. 54).

Ou seja, em contraste com o modelo de desenvolvimento posto em curso por Vargas, onde o Estado tinha o papel de “locomotiva do progresso”, secundada pelo capital nacional e pelo externo, com a política de rápida industrialização adotada por JK (cujo slogan era “Fazer 50 anos em 5”) foi sendo rapidamente invertida a ordem dos investimentos que, como numa espécie de “efeito gangorra”, passou de: Estado, capital nacional e capital externo para capital externo, capital nacional e Estado.

Sintetizando, Fernando Henrique Cardoso entendia que o golpe de 64 – em sua essência e para além das aparências – substituiu as velhas bases sociais em que se alicerçava o poder do Estado Nacional, montado na era Vargas, pelo poder emergente de novas forças políticas como produto da necessidade de compatibilizar o poder político com as forças produtivas postas em curso nos anos JK e, desta forma, dar livre curso ao deslanchar das relações de produção que cada vez mais encheriam com as burras do dinheiro o capital alienígena.

Dizendo de outra forma: tratava-se de “desmontar” o dito “pacto populista”, “paralisar o protesto social” (Cardoso: 1973, p. 67) e afastar o fantasma de um pretenso golpe que Jango daria para implantar uma “República anarco-sindicalista” (segundo o jargão usual nos órgãos da imprensa que funcionavam como os corneteiros do rei), para, assim, dar livre trânsito ao capital monopolista.

O desmantelamento das organizações de classe dos assalariados, e a ‘tranqüilidade política’ obtidas com a repressão facilitam, naturalmente, a retomada do desenvolvimento, isto é, a acumulação capitalista em escala ampliada” (Cardoso; 1973; p. 67).

         No novo bloco do poder, constituído com a queda de Jango:

         ... ganharam importância os grupos sociais que expressam o capitalismo internacional, sejam eles compostos por brasileiros ou por estrangeiros, por empresas brasileiras que se associam às estrangeiras ou por estas diretamente (...) Também ganham influência os setores das Forças Armadas e da tecnocracia que – por serem antipopulistas – estavam excluídos do sistema anterior, mas que, em função de suas afinidades ideológicas e programáticas com o novo eixo de ordenação política e econômica, constituíram-se em peça importante do regime atual. (Cardoso: 1973; p. 54 e 55).

         Até aqui juntei elementos que julgo suficientes para considerar que entre os eixos centrais que estruturam a interpretação que Fernando Henrique Cardoso oferece para o golpe de 1964 – no texto O modelo político brasileiro - estão que as modificações ocorridas no controle das forças produtivas materiais entre os governos Vargas e JK fizeram surgir uma nova correlação de forças que tinha o capital externo, e não mais o Estado, como mola propulsora das relações de produção. O golpe assegurou, na instância política, a passagem da velha ordem alicerçada no “pacto populista” para a nova ordem (autoritária) capaz de dar livre curso às relações de produção. Nesta, a burguesia nacional deixava explicito “aceitar” o papel de coadjuvante do capital alienígena. É com tal sentido que o cientista político escreve:

Eu não penso, entretanto, que a burguesia local, fruto de um capitalismo dependente, possa realizar uma revolução econômica no sentido do conceito. A sua ‘revolução’ consiste em integrar-se no capitalismo internacional como associada e dependente”. (Cardoso: 1973; p. 71).

À luz da chamada “teoria da dependência”, Fernando Henrique Cardoso chama a atenção para o fato de que, além dos condicionamentos internos, é necessário examinar os condicionamentos externos para compreender a configuração que ganha o modelo de desenvolvimento implantado logo após a derrubada do governo João Goulart (1961–1964). É neste sentido que após apontar para as grandes transformações pelas quais passam os pólos hegemônicos do sistema capitalista internacional na segunda metade do século XX, entre as quais, uma maior diversificação da produção e o deslocamento de fábricas para países subdesenvolvidos, como o Brasil, considera:

“Disso derivou maior interdependência na esfera produtiva internacional – visto o sistema econômico mundial do ângulo dos centros de decisão - e uma modificação nas formas de dependência que condiciona os estilos de desenvolvimento dos países que se integram à periferia do capitalismo internacional”. (Cardoso: 1973; p. 54).

Considera ainda que em 1964, tendo em vista as transformações internas e externas em curso e as novas bases de sustentação do poder correspondentes as tais transformações:

“... tratava-se da necessidade de recompor os mecanismos de acumulação e de recolocar esta última num patamar mais alto capaz de atender ao avanço verificado no desenvolvimento das forças produtivas. Esse processo requereu, entre outras políticas, a de contenção salarial e desmantelamento das organizações sindicais e políticas que, no período populista, haviam permitido que os assalariados lutassem e conseguissem diminuir os efeitos negativos que a acumulação inicial exerce sobre os salários”.  (Cardoso: 1973; 51).

Em decorrência:

... o modelo de desenvolvimento dependente que está sendo posto em prática permite dinamismo, crescimento econômico e mesmo mobilidade social, pelo menos no setor urbano industrial da sociedade. É certo que ele provoca atrito entre as classes, é provavelmente ‘marginalizador’ e seus efeitos não impedem as desigualdades: concentra rendas e aumenta a miséria relativa” (Cardoso: 1973; 65). (GN).

Quanto a natureza e objetivos do modelo econômico implantado no pós 64, Fernando Henrique Cardoso, com muita propriedade, contrapõe-se à interpretação então bastante corrente. Segundo esta, os militares tinham origens nas classes médias e, assim sendo, seu projeto político-econômico centrava-se em interesses das classes médias. Contrapondo-se, Fernando Henrique Cardoso observa que:

É de pouca valia saber se os militares são de ‘classe média’ ou se a burguesia está ‘à margem do mecanismo de decisões’. Porque este está nas mãos de um grupo funcional composto por militares e tecnocratas etc. Bem como consiste um falso problema insistir que os protagonistas do golpe de 64 pertenciam á classe média e que o aparelho de Estado está controlado por grupo e indivíduos da classe média. Em que sociedade capitalista não é assim? Só por exceção os cargos do Estado, mesmo os de cúpula, são preenchidos diretamente por empresários. A questão não está em saber quem ocupa funções no Estado, mas que tipo de políticas podem ser implementadas dentro de um quadro estrutural que reflete a relação de forças das classes sociais. Esta relação de forças se expressa, no plano mais geral, pelo que hoje se chama de um modelo de desenvolvimento”. (Cardoso; 1973; p.56).   

 

4 – Dos governos militares ao governo FHC: antecedentes históricos.

As águas de um oceano rolaram por baixo das pontes desde que, no início dos anos 70, Fernando Henrique Cardoso – à época professor aposentado da Universidade de São Paulo pelo decreto 477/68 - apresentou em um seminário acadêmico seu estudo sobre o modelo político brasileiro, até que o mesmo fosse eleito e reeleito presidente da República do Brasil, exercendo a presidência entre 1995 e 2002.

Tarefa hercúlea e fora de qualquer propósito, nos limites de um artigo, pretender inventariar o conjunto de acontecimentos dotados de forte significação histórica e sociológica que permitem ligar os dois fios da meada, ou seja: o modelo autoritário implantado em 64 e o emergente na era FHC. Entretanto, para melhor compreensão, algumas palavras necessitam ser ditas.

O modelo político implantado em 64 nasceu marcado por uma contradição interna que gerava tensões e que, pela lógica de seu funcionamento, não tinha como solucionar: a contradição inerente ao problema da legitimidade. O modelo político adotado concentrava poderes ditatoriais no Executivo que, entre outras medidas arbitrárias, podia editar atos institucionais e cassar mandatos,  estando tais mecanismos em evidente contradição com princípios básicos da democracia representativa – pedra de toque do ideário das sociedades ocidentais.

Quanto ao modelo econômico, os governos militares também acabaram inseridos em grandes contradições. As razões pelas quais encabeçaram o movimento de abril de 64 eram bem diversas das dos demais grupos que constituíram o bloco no poder. Os militares julgavam estar não só libertando o Brasil do “perigo vermelho” assim como criando condições materiais para que o país se transformasse numa potência no início do novo século que se avizinhava. Isto os levou, ambiguamente, a escancarar o país para o capital externo sem deixar de fazer crescer o setor público. O grande capital internacional apoiava o movimento armado entendendo que este criava as condições ideais, no contexto da guerra fria, para ampliar seus negócios e solidificar mais ainda a área de dominação imperialista. A burguesia nacional, assustada com a mobilização das massas urbanas e rurais, mais e mais aceitava ser uma “burguesia associada e dependente” – para usar uma expressão tão a gosto de Fernando Henrique Cardoso – e, abdicando do projeto nacional, não veria com bons olhos o crescimento do setor público. A tecnocracia, apoiando o golpe, desvencilhava-se dos limites que lhe são impostos pelos poderes existentes no Estado de Direito, para assim poder impor à nação, sem restrições, os seus projetos elitistas e mirabolantes, refestelados no ar refrigerado.

Enquanto durou o chamado “milagre brasileiro”, o modelo político manteve coesas as suas principais bases de sustentação social – burguesia externa e interna, militares e tecnocratas palacianos - sendo o poder suficientemente forte para neutralizar ou esmagar todas as formas de oposição surgidas. Com o aumento do preço do petróleo - produto das crises internacionais de 1974 e 1979 - e a decorrente multiplicação do endividamento externo em progressão geométrica - pela “arapuca” dos “juros flutuantes” (4) - o modelo econômico começou a fazer água. A aguda crise econômica da década de 80 colocou o caráter artificial do modelo inteiramente desnudo: o que era dito “milagre” virou pesadelo. Os altos índices de crescimento econômico foram abruptamente substituídos pelos do endividamento externo e os da mega-inflação. Foi nesta ocasião que ganharam corpo os debates sobre a crise do Estado, sobre “projetos faraônicos” e sobre pedido de moratória. A agudeza da crise econômica associada ao aumento do protesto político provocou fissuras nas bases sociais de sustentação política, colocando na agenda política a urgente necessidade de mudanças na estratégia desenvolvimentista e o retorno ao regime democrático.

         Aos militares seguiu-se o governo de “transição conservadora” do presidente José Sarney (1985 – 1990), o desastre Fernando Collor de Mello (1990 –1992), Itamar Franco (1992 – 1994) e os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, entre (1995 – 2002).

         Fernando Henrique Cardoso, por circunstância fortuita, veio a ser Ministro da Economia de Itamar Franco e, nesta qualidade, ganhou de mão beijada o direito de propagandear nos meios de comunicação de massa um “plano” do qual não participara da confecção: o chamado “plano real” - elaborado pela equipe econômica do governo Franco, visando a debelar a inflação, que há muito passara da casa dos dois dígitos mensais e era apresentada pela mídia como “o grande problema nacional”.

         Valendo-se do “plano real” como idéia-força e de palavras de ordem vagas e genéricas – saúde, educação, segurança, emprego e agricultura - Fernando Henrique Cardoso sairia vitorioso das eleições presidenciais de outubro de 1994, derrotando com relativa facilidade seu principal opositor.

 

5 – O modelo político brasileiro na era FHC.

         Para compreender o funcionamento e os propósitos de um modelo político, o cientista social Fernando Henrique Cardoso sugere – conforme argumentei - que centralmente duas variáveis devem ser examinadas, ou seja: as bases sociais de sustentação do poder e a especificidade da situação de dependência. Trata-se de variáveis que, embora possuam suas próprias determinações intrínsecas, são amplamente interpendentes.

Sugere também, nas pegadas de Marx, que a gênese da substituição de uma forma de dominação político-econômica por outra, de novo tipo, deve ser procurada em transformações anteriormente ocorridas na estrutura econômica da sociedade (5). Transformações que necessitam reordenar o poder político de tal forma que suas bases de sustentação sancionem o livre desabrochar das forças produtivas postas em curso, ao invés de tentar contê-las. Fernando Henrique Cardoso procede desta maneira ao indicar que a gênese do movimento armado, que em 1964 derrubou o governo constitucional de João Goulart, encontra-se nas transformações econômicas ocorridas durante o governo JK, no sentido alhures comentado.

Sem dúvida, é de boa monta o instrumental analítico de que se valeu Fernando Henrique Cardoso para examinar alguns aspectos do modelo político brasileiro à época do dito “milagre econômico”. Por esta razão me apoiarei no mesmo instrumental – mas não só – com o propósito de tentar produzir conhecimentos úteis sobre aspectos do modelo político brasileiro construído e operacionalizado na era FHC. Assim considerando, julgo que para compreender a natureza, os propósitos e as especificidades do referido modelo, algumas questões centrais devem ser propostas e examinadas:

1 - Que aspectos estruturais dão o desenho das conjunturas interna e externa dos anos 90?

2 – Levando em conta a relação interna/externa, qual a especificidade da situação de dependência na década de 90?

3 – Quais são as bases sociais de sustentação política do governo FHC?

Em relação à conjuntura interna, pode-se esquematicamente dizer que, transcorridos cerca de uma década entre a “abertura” e a eleição de 1994, o Brasil não encontrara um caminho para tirá-lo da crise econômica em que estava inserido desde o fim do “milagre”. Crise agravada nos anos 80 – que ficariam conhecidos como “a década perdida” - quando o endividamento externo levou a bancarrota à quase totalidade dos Estados latino-americanos. No Brasil, a crise econômica agravou mais ainda a perene crise social (6), juntando-se a estas a crise política, que conduziu ao impeachment de Collor de Mello em setembro de 1992.

Quanto à conjuntura externa, em linhas gerais, pode-se dizer que em função do total desmantelamento do bloco socialista do leste europeu, como é indicativo o fim da União Soviética em 1991, os Estados Unidos ficaram a cavaleiro como potência militar e econômica única, e em condições de levar às últimas conseqüências o seu histórico projeto de expansão imperialista, passando a pressionar, com intensidade redobrada, governos de países do 3o mundo para que submetessem interesses nacionais aos externos.

Na situação reinante, a dependência entrara em nova fase. Diferente do que ocorrera nas décadas de 60 a 80, não mais bastava ao capital monopolista exportar multinacionais para a periferia do sistema, onde governantes de “regimes autoritários” lhes concediam “incentivos fiscais”, asseguravam polpudas remessas de lucros e garantiam mão-de-obra dócil e barata, contendo movimentos reivindicatórios pela força das baionetas. Não bastava, igualmente, apenas “fabricar” endividamentos pela via de emprestar “dinheiro parado” – a juros flutuantes - para financiar “megalomanias” que tecnocratas palacianos de países latino-americanos vendiam aos seus chefões. Em meados dos anos 90 – pomposamente apelidados na mídia de “década da esperança”, em oposição à anterior, “a década perdida” - a situação de dependência já era outra. Cada vez mais quebrados e endividados, os países latino-americanos deveriam agora alienar patrimônio público, riquezas naturais e precarizar mais ainda as já tão precárias condições de trabalho existentes, aviltar mais e mais o preço da mão-de-obra  para gáudio do deslanchar das relações de produção capitalistas na época em que um consultor da Rand Corporation e do governo dos Estados Unidos qualificou como a do “fim da história”. (Fukuyama: 1989).

         Diferença substantiva entre o “bloco no poder” nos governos Fernando Henrique Cardoso e no dos militares, é que estes, antes detendo o cetro do mando; na era FHC – rotulados na mídia de “nacionalistas”, e apresentados como responsáveis únicos não só pelos arbítrios ocorridos durante as duas décadas que estiveram no centro do poder, mas também pela espiral inflacionária que conduzira o país a índices de crescimento negativo nos anos 80 – seriam bastante alijados do sistema de tomada de decisões políticas. Em suma, com o processo da “abertura democrática”, enquanto os políticos profissionais, organizados em torno de novas siglas partidárias, recuperaram posições na esfera do poder, os militares voltaram às casernas, passando a vivenciar basicamente seus papeis profissionais tradicionais, deixando a “arena política”.  Na nova composição do poder, muitos dos velhos tecnocratas que tantos “serviços” haviam prestado ao “regime autoritário”, “jogaram fora” a antiga pele ditatorial comprometedora e – inversamente ao lobo da fábula de La Fontaine – rapidamente vestiram a de “democratas bonzinhos”, ciosos por novos cargos ou por mandatos parlamentares. No cenário político surgiram novos tecnocratas – saídos dos cassados de 1964 e de 1968 – que, agora partícipes do bloco do poder, apresentavam o “desmonte da nação” (Lespaubin: 1999) como terapia perfeita para curar de seus males a enferma economia brasileira.

As mesmas bases sociais que fundamentalmente deram sustentação política aos governos militares, também deram aos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, ou seja: o capital externo e o interno - este sempre na qualidade de “burguesia capacho”, associada e dependente. Entretanto, quando o “capital interno” é comparado como base de sustentação dos governos militares e dos governos Fernando Henrique Cardoso, há pelo menos uma sutil diferença que deve ser colocada em evidência. Refiro-me à fração de classe da burguesia nacional que é proprietária de meios de comunicação (mormente da imprensa escrita). Esta fração – como parte da burguesia - apoiou o “golpe” e o modelo político-econômico implantado em 1964. Mas na medida em que a censura e a repressão frontalmente atingiram a imprensa, impedindo-a de publicar certas matérias – com a decretação do AI-5/68 –, os proprietários de alguns dos jornais de maiores tiragens do país entraram em rota de colisão com o “regime militar”, fazendo-lhe primeiro oposição velada e, a partir do governo Geisel (1974 –1979), oposição cada vez mais “aberta”. No caso do apoio dado a Fernando Henrique Cardoso, os jornais da grande imprensa apenas o criticavam em questões pontuais. Concretamente, deram apoio ao seu governo desde que se formou o consenso empresarial em torno de sua primeira candidatura presidencial, até o último dia de seu mandato.

Fazendo parte das bases sociais que apoiavam as candidaturas e os dois governos Fernando Henrique Cardoso, e como arauto ideológico delas, o discurso produzido na mídia, durante todo esse período, satanizava o Estado e as empresas públicas (sobretudo as mais lucrativas, como a Petrobrás, o Banco do Brasil e a Vale do Rio Doce), defendendo a adoção, em larga escala, das ditas políticas neoliberais – “privatização”, “ajuste fiscal”, “flexibilização da legislação trabalhista”, “fim dos monopólios estatais e da estabilidade dos servidores públicos”, “internacionalização do capital” etc. Estas políticas, espécies de panacéias “pós-modernas”, eram afiançadas como sendo a única maneira de, uma vez adotadas, finalmente, como num passe de mágica, colocar o país na rota do desenvolvimento econômico e da prosperidade social. Ao mesmo tempo, barnabés apavorados com a possibilidade de verem minguar mais ainda seus depauperados salários eram estereotipados, na mídia, como “privilegiados” e “corporativistas” e, políticos rotulados de “populistas” - Lula, Brizola, Itamar Franco - eram ditos “símbolos do atraso e da irracionalidade”.

Eleito e reeleito presidente da República, Fernando Henrique Cardoso cumpriu à risca o fio do bordado. A política que implementou durante seus oito anos de mandato presidencial sempre foi – em suas linhas centrais – absolutamente afinada com os interesses objetivos de suas principais bases de sustentação social: o capital financeiro e a burguesia tupiniquim. E, justiça seja feita, com competência comparável à que criticava e opunha-se aos “governos autoritários”, o presidente Fernando Henrique Cardoso conduziu o processo de desmonte da nação. O produto final de seus dois governos tem sido analisado por estudiosos que seriamente se debruçaram sobre o assunto. Como síntese deste produto final, valemo-nos das palavras de abertura, escritas por Ivo Lesbaupin e Adhemar Mineiro, da Apresentação de um livro que recentemente publicaram:

Ao longo de seus dois mandatos, o governo Fernando Henrique Cardoso conseguiu realizar uma façanha que nenhum dos seus antecessores havia conseguido realizar até então: destruir ou atingir seriamente parte considerável do que havia sido construído ao longo de 60 anos de história republicana brasileira, dos anos 30 ao fim dos anos 80: desde os serviços públicos (energia elétrica, saúde, universidade, educação em geral, habitação, assistência social, transporte) às empresas estatais – estratégicas ou não (Eletrobrás, Telebrás, Vale do Rio Doce, Companhia Siderúrgica Nacional, Banespa, Centrais Elétricas São Paulo etc.) – até a legislação trabalhista e a Constituição Federal de 1988 (a famosa “Constituição Cidadã”). (...) O Brasil de hoje é muito pior do que era quando FHC assumiu o governo: desde o crescimento econômico medíocre, as maiores taxas de desemprego da nossa história, passando pela queda constante do rendimento médio real dos assalariados, até o aumento da dívida externa e a decuplicação da dívida interna (dívida  mobiliária federal), os dados são assombrosos”. (Lesbaupin e Mineiro: 2002; p. 7).

         Para que o presidente Fernando Henrique conseguisse apresentar resultados tão “brilhantes”,  segundo a ótica das suas bases de sustentação  social, além da política de privatização das empresas nacionais mais lucrativas e da quebra de monopólios estatais e a da “flexibilização” dos direitos trabalhistas, colocou em curso os projetos da reforma da previdência (que deverá será “completada” pelo governo Lula) e o da reforma administrativa. As conseqüências sociais destas reformas são bem sabidas. Os servidores públicos (que passaram 8 anos sem reajuste salarial, coisa inimaginável até nas mais torpes das ditaduras), vivenciam uma progressiva proletarização. Após a reforma da previdência, tais foram as exigências criadas que, para quem está começando ou vai começar a trabalhar, aposentar-se se tornou mais difícil do que acertar na quina da loto. Além disto, mais do que nunca, aposentar-se se transformou em algo similar a cometer um crime e ser condenado a uma “dura pena”: uma velhice miserável após uma vida de trabalho. Quando aos lucros do capital basta observar, com um mínimo de atenção, qualquer um dos balanços que por força de lei os bancos periodicamente publicam em jornais pra concluir que tais lucros são fantásticos. Fabulosos!

         O “desmonte da nação” já era de tal monta ao fim do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso que a propaganda utilizada na campanha da reeleição “esqueceu” promessas anteriormente feitas: “saúde, educação, segurança, emprego e agricultura” – tendo suprimindo-as. Ora, com os hospitais públicos caindo aos pedaços, as Universidades Federais mais arrasadas do que o World Trade Center após o ataque de 11 de setembro de 2001, índices estatísticos sobre o aumento da violência e do desemprego batendo seguidos recordes e os preços dos produtos rurais pela hora da morte, como os marketeiros do presidente poderiam querer lembrar ao eleitorado  promessas feitas no passado? Bem melhor esquece-las, suprimi-las.  A propaganda utilizada na reeleição apegou-se à necessidade de reeleger o presidente para que o plano real fosse mantido e o “fantasma da inflação não voltasse”. Apegou-se também a grotescas “denúncias” que o principal candidato oposicionista era ligado a CUT e “populista” e, sendo assim, caso eleito, seu governo seria uma catástrofe.

         Finalmente, uma última questão. Para colocá-la, estabeleço um breve paralelo entre diferença na imposição de decisões nos governos militares e os de FHC, observando que se localizam em terrenos políticos institucionais inteiramente distintos.

Os militares governaram num regime político fechado, alicerçados em medidas de exceção que dotavam o Executivo de poderes draconianos; e Fernando Henrique Cardoso governou num regime político aberto, segundo os parâmetros das democracias representativas. No primeiro caso, o dos governos militares, é “fácil” compreender como decisões políticas eram empurradas na “goela da nação”. No segundo, a questão tem outra complexidade. Nas democracias representativas é necessário que o governo tenha maioria parlamentar para poder aprovar os seus projetos. Os cidadãos têm liberdade para articular interesses e colocar demandas no sistema político, pressionando as decisões. Além disto, podem questionar a constitucionalidade de políticas implementadas pelos governantes junto ao Poder Judiciário. Apesar destas e de outras limitações que visam impedir que o Executivo empurre decisões “goela abaixo da nação”, Fernando Henrique as empurrou.

Não contando com mecanismos similares aos que contavam os governos dos militares para simplesmente impor, de cima para baixo, decisões à nação, o modelo político implantado pelo governo FCH mascarou a questão da “imposição” de medidas com maquiavélica habilidade. Neste particular, o modelo político construído na era FHC possui algumas singularidades que convém desnudar.

A primeira singularidade deste modelo político é que além de contar com maioria parlamentar, obtida pelo tradicional sistema de alianças partidárias - muitas vezes costurada pela política do favor e da régia distribuição de cargos e de outras benesses aos aliados (conforme farto noticiário publicado na imprensa) - o governo Fernando Henrique Cardoso (também segundo farto noticiário estampado em páginas dos próprios jornais que o apoiavam) era profundamente “generoso” com parlamentares que votavam, assegurando a aprovação de emendas constitucionais impopulares como as relacionadas às mudanças nas regras da previdência social e na “flexibilização” dos direitos trabalhistas. Também por ocasião da aprovação da emenda constitucional que permitiu a reeleição, criando as condições legais para que o presidente em exercício conquistasse o segundo mandato, a imprensa publicou diversas matérias denunciando o tipo de “diplomacia” que foi utilizada para amaciar e conquistar os votos de “rebeldes” nas bases políticas governamentais.

A segunda singularidade diz respeito à redução que foi feita do ideal democrático a um mero debate onde os interlocutores eram apenas os parlamentares.   O modelo construído fazia passar gato por lebre, “fabricando” a democracia como um regime político onde o direito dos cidadãos limita-se – na prática - a escolher seus representantes, devendo depois assistir passivamente ao resultado do “jogo político”, como quem assiste, sem participar, a uma partida de futebol pela TV. No processo de doutrinação da população visando forjar consenso, em torno da questão de que a “verdadeira democracia” é a das massas silenciosas e silenciadas, a mídia teve papel ímpar. Não só por apresentar outras formas de democracia como quinquilharias e obtusidades; mas também, porque já sabe a priori que qualquer greve que consiga mobilizar uma categoria profissional a ponto de pressionar o sistema central de tomada de decisões, não passa de “baderna”, e deve  ser anunciada e politicamente tratada como tal, sem nenhuma necessidade de examinar suas razões. (7)

A respeito do direito de greve, vale recordar que nos primórdios de seu primeiro mandato, Fernando Henrique Cardoso se negou a cumprir o acordo referente a reajuste salarial, que seu antecessor na presidência da República – Itamar Franco – assinara com sindicatos petroleiros. Em decorrência do descumprimento do acordo, houve greve. O presidente tratou-a com puro maquiavelismo, terminando por quebrar a espinha dorsal do sindicalismo brasileiro. Os sindicados petroleiros, que estão entre os maiores do país, saíram do movimento de mãos vazias e bolsos arrasados: não conseguiram fazer valer o acordo que à época firmaram com a maior autoridade do país e, tendo a greve sida considerada ilegal pela Justiça, os sindicatos petroleiros foram condenados a pagar pesada multa pelos dias em que estiveram parados.  Quando o Senado aprovou um projeto de anistia para que os sindicatos petroleiros não quebrassem, o presidente Fernando Henrique Cardoso vetou.  Valeu-se de prerrogativa constitucional que confere exclusivamente ao presidente da República o direito de conceder anistia. Usou dois pesos e duas medidas; pois logo após a posse, concedera anistia ao senador Humberto Lucena, condenado pela Justiça a ressarcir dinheiro público que utilizara com finalidades pessoais, eleitorais. Poucas luas depois negou anistia aos sindicatos petroleiros. Desta forma, deixava patente, no alvorecer do primeiro mandado, sua intenção de cooptar políticos pela prática do favor assim como o tipo de tratamento que receberiam movimentos reivindicatórios dos trabalhadores. No fim das contas, com as tais “reformas do Estado”, era o bolso deles que seria reformado...

Outra singularidade, é que sem ter em suas mãos instrumentos comparáveis aos dos governos militares para impor decisões políticas à nação, Fernando Henrique Cardoso  valeu-se da edição e reedição de enxurradas de medidas provisórias. Instrumento que, a considerar por palavras que escreveu, primam pelo caráter antidemocrático e, portanto, ditatorial.

“O Executivo abusa da paciência e da inteligência do país quando insiste em editar medidas provisórias sob o pretexto de que, sem sua vigência imediata, o Plano Collor vai por água abaixo e, com ele, o combate a inflação. (...) Com esse ou com pretextos semelhantes, o governo afoga o Congresso numa enxurrada de medidas provisórias. O resultado é lamentável: Câmara e Senado nada mais fazem do que apreciá-las aos borbotões (...) É certo que, seja qual for o mecanismo, ou o Congresso põe ponto final no reiterado desrespeito a si próprio e à Constituição, ou então é melhor reconhecer que no país só existe um ´poder de verdade´, o do presidente. E daí por diante esqueçamos também de falar em democracia”.   (Cardoso: Folha de São Paulo; 7/6/1990; p. 2).

  

Notas:

(1) Acrescento, adquiriram cidadania apenas formalmente, como deixa patente o estrutural deboche das classes dominantes com o destino da população afro-brasileira, em particular, e o da pobre, em geral.

(2) “O modelo autocrático-burguês” é o título do capítulo VII, do livro A revolução burguesa no Brasil (1976), de Florestan Fernandes.

(3) Se tal adequação não for conseguida: “De formas de desenvolvimento das forças produtivas , estas relações de produção se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social. A o mudar a base econômica , revoluciona-se, mais ou menos rapidamente , toda a imensa superestrutura erigida sobre ela” (Marx: 1956, p. 301).

(4) A cláusula dos “juros flutuantes”, constante em contratos de empréstimos feitos por governos latino-americanos junto aos grandes banqueiros internacionais, mormente na década de setenta, teve papel impar na fabricação do alto montante das dívidas externas que contraíram. Por esta estranha cláusula contratual, quando mais o devedor paga, mais deve. Uma excelente abordagem sobre o assunto encontra-se em Kucinski e Branford (1987).

(5) Este questão é tratado no capítulo XXIV (A chamada acumulação primitiva) do 1o volume de ‘O capital (Marx). O autor considera que para só é possível escapar de um aparente circulo vicioso - “acumulação do capital pressupõe mais valia, mais valia a produção capitalista e esta a existência de grandes quantidades de capital e de força de trabalho nas mãos dos produtores de mercadoria” - admitindo “uma acumulação primitiva anterior a acumulação capitalista”, ou seja “uma acumulação que não decorre do modo capitalista de produção, mas é o seu ponto de partid – ‘previous accumulation’, segundo Adam Smith”. (Marx: 1968; v. 1; p. 828).

(6) Além do processo que culminou com o impeachment de Collor de Melo, o ano de 1992 foi marcado por sucessivos saques a supermercados, pelo massacre do Carandiru e por diversas denúncias de extermínio de meninos de rua. A respeito ver: Alves Filho (1999).   

(7) A exceção é quando a greve é nitidamente orquestrada pelo capital visando inviabilizar governos legitimamente constituídos, mas que não fazem “reformas neoliberais”. Neste caso, o movimento grevista nunca é rotulado como ”baderna”. No jargão adotado na imprensa, em tais circunstâncias, o fato é anunciado como “tumulto”, sendo o próprio governo apresentado como responsável por ele, por ser “populista”.

 

Bibliografia:

 

ALMEIDA, Cândido Mendes. “Sistemas políticos e modelos de poder no Brasil”. Rio de Janeiro: Dados – vol. 1; 1966.

ALMEIDA, Martins de. Brasil errado. Rio de Janeiro: Schmidt – Editor; 1932.

ALVES FILHO, Aluizio. “O Brasil no  Clarín – um olhar argentino sobre uma crise brasileira”. Rio De janeiro: Comum – publicação das Faculdades Hélio Alonso; vol. 4; n. 13, 1999.

CAMPOS, Roberto. “O modelo brasileiro de desenvolvimento”. Série de artigos publicados no jornal O Estado de São Paulo; entre os dias 7 e 24 de julho de 1970. 

CARDOSO, Fernando Henrique. O modelo político brasileiro. 2a ed; São Paulo: Difusão Européia do Livro; 1973.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: 1976.

FUKUYAMA, Francis. “O Fim da história”. Jornal do Brasil; Idéias; 10/12/1989.

FURTADO, Celso. Análise do modelo brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1972.

KUCINSKY, Bernardo e BRANFORD, Sue. A ditadura da dívida. São Paulo: Editora Brasiliense; 1987.

LESPAUBIN, Ivo e MINEIRO, Adhemar. O desmonte da nação em dados. Petrópolis: Editora Vozes; 2002.

MARX, Karl. O capital – vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1968.

---------------- “Prefácio à Contribuição à crítica da economia política”. In; Marx & Engels - vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Vitória; 1961.

SODRÉ, Nelson Werneck. Radiografia de um modelo. Petrópolis: Vozes; 1974.

 

Resumo:

O propósito do artigo é, a partir de um prévio exame da utilização do conceito de modelo político, investigar o modelo político construído e posto em curso durante a “era FHC”.

    

Palavras-chave: modelo político, bases sociais, poder, dependência e neoliberalismo.



* Doutor em Sociologia pela FLACSO/UnB. Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ. Professor e Chefe do Departamento de Ciência Política do IFCS/UFRJ.

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