SOLIDÃO, DESIGUALDADE E SUCESSO: AS MÚLTIPLAS POSSIBILIDADES DA VIOLÊNCIA CONTEMPORÂNEA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

 

Paulo Bahia*

 

A maioria dos sociólogos, quando fazem alusão ao futuro, o fazem com muitas restrições.

Revisitar o passado. Reinterpretá-lo, produzir novas compreensões tendo como referência a experiência vivida do hoje é a base para pronunciar-se sobre o futuro, como “campo de possibilidades”.

Assim, observo apreensivo a euforia das análises que apontam, com garantia e uma certa petulância, a formulação de que o século XXI alcançará uma plataforma política de compreensão, de civilidade e uma multidiversidade salutar e includente. Fazemos acreditar que os avanços científicos e tecnológicos serão o fundamento de uma sociabilidade na qual o respeito às diferenças será a principal evidência, um cenário social onde haverá igualdade na diversidade. Este é um sonho acalentado pelo humanismo desde o século XVII.

Como contraponto, percorro as trilhas que indicam que o século XXI consolida-se em um campo minado de múltiplas possibilidades, científicas, políticas e culturais, todas fundamentadas na intolerância ao “outro”.

O século XXI consolida-se como o século da solidão.

Em estudo recente que realizei sobre o voluntariado, constatei vários tipos de comportamento que levavam voluntários a ações pessoais em várias áreas. Agem sinceramente, acreditam que estão a construir um mundo mais feliz e rompendo a alienação e a violência impostas a imensas parcelas da população. Estes voluntários estão, ao agir, rompendo a própria solidão, assim me relataram. Os casos estudados não estabeleciam vínculos sociais de permanência. O voluntariado está dirigido à própria solidão dos militantes, vítimas assemelhadas aos assistidos, pois suas sociabilidades tornaram-se etéreas.

Sobre o voluntariado, faço ressalvas para os movimentos coordenados pelas várias religiões e igrejas, pois constatei que neste universo do voluntariado a religiosidade é um fundamento poderoso de construção de redes de sociabilidade e civilidade, agindo de forma eficaz como confrontador da ética da violência e do enriquecimento fácil e ilícito via mercado de drogas.

O futuro parece-me anacrônico, com uma racionalidade centrada no medo, diante do poder crescente da “lúmpen-elite” sobre o Estado e a sociedade e do monopólio do MERCADO financeiro mundializado especulativo.

Os cenários presumíveis para as populações no século XXI no Brasil não são bons, são sombrios, incertos e violentos.

As diferenças no mundo são de tal ordem de grandeza, que parece-me inevitável o extermínio das populações africanas, pela fome, pela AIDS e pelo escravismo contemporâneo. No Brasil, o século XXI, a “lúmpen-elite” emergente, não poupará brasileiros excluídos, incluídos e privilegiados. Todos, de forma diferenciada, correm perigo.

Posso acalentá-los, dizendo que estes cenários são “mapas de possibilidades”; e pode-se reconfigurar sonhos que ficaram para trás, andando devagar, desde o século XVIII, em uma Paris de 1789. Pode-se abrir os olhos, e não acreditar tanto no que promete a revolução científico-tecnológica, e procurar enxergar tendências em que a solidariedade, a igualdade e a liberdade forneçam luz para nossas “retinas cansadas”.

Na solidão dos tempos contemporâneos não se produz solidariedade, pois este conceito é anacrônico em um tempo de auto-realização, que, para a maioria, transforma-se em autodestruição, pelas drogas, pelo ócio, pela solidão.

Tendo a afirmar que o lugar social do ser humano no século XXI está definido pela legitimação do desenvolvimento científico; pelo genoma, pela bioquímica, pelo proteoma e pela deliberada confusão no estabelecimento de identidades sociais; a cada dia torna-se mais difícil obter um grupo de pertencimento. Mesmo que este grupo seja a sua família, e mesmo a formação do menor micro-grupo social, que é um casal, é cada dia mais difícil.

Devemos nos confrontar já com as variadas formas de individualismos fundamentalistas. Não com o do conceito generoso de Max Weber, que vê no indivíduo um ser coletivo, capaz de construir uma civilização. Falo de um individualismo egocentrado, narcísico e solitário, falo do indivíduo que Lair Ribeiro tão bem descreve e compreende.

Creio que o confronto com um mundo de indivíduos auto-realizáveis, para uma “sociedade de indivíduos”, como percebeu Norbert Elias, passa por uma reflexão profunda do sofrimento humano e das diferenças impostas a uma multidão de desvalidos.

Enfrentar este desafio é uma tarefa dolorosa, e não nos traz nenhuma garantia de sucesso; sequer esperanças.

Enfrentar o envelhecido século XXI é uma atividade perigosa, contudo necessária. Pois o século XXI tornou inexorável o fim de uma ética social, baseada no trabalho; que orientou a organização social de múltiplas sociedades, inclusive a do Brasil, produziu conflitos sociais, lutas de classe e esperanças, alimentou sonhos. O trabalho, ao deixar de ser a base de organização da sociedade, transforma o ócio em mercadoria simbólica; insuflando desejos primitivos de uma multidão de desesperançados, a participar como consumidores de um mundo que os exclui. O conceito de cidadania é transmutado para o de consumidor.

Forma-se um modo de produção ilícito e paralelo, aonde fabricam-se de remédios e CDs a biscoitos e macarrões falsos, linhas de ônibus, kombis e vans piratas ocupam o espaço público, enfim, todos os itens de uma pauta industrial e de serviços. Um comércio lucrativo, informal e ilegal de todos os tipos de mercadorias roubadas, falsificadas e de drogas é capilarizado em nossos territórios. Estando ao alcance de todos.

O fim da ética do trabalho produz um cenário obscuro para o futuro, pois as regras do mercado são as regras do capital, e este cada vez mais é gerado por redes criminosas hierarquizadas em escala mundial.

Como diz a socióloga Aspásia Camargo, retrocedemos à Idade Média, em que o poder das armas e da coerção legitima as ações. A cidade do Rio de Janeiro tem comandos paralelos, mais presentes e coercitivos que o do Estado de fato. Quem conhece o Rio de Janeiro sabe quem é que manda.

O Estado transforma-se em uma vasta máquina policial mantenedora da ordem pública. Este talvez seja o produto mais visível da desregulamentação dos Estados e das sociedades a nível mundial. E mesmo assim ele é cooptado pela dinâmica social imposta pelo “narcopoder” e pelas “lúmpen-elites”.

Enfatizo que a tendência à desregulamentação do Estado acarreta uma desregulamentação das redes de sociabilidade na sociedade, que dilui os fundamentos éticos, tendo como decorrência uma ditadura da produção gerada por um sistema paralelo ilícito, que, apesar de paralelo, converge para o mercado financeiro mundializado. E constato que as crianças são seduzidas pelos ganhos produzidos pela delinqüência e por um sistema de produção de capital cujos valores se assentam na violência e na barbárie. Buscar proteção em redutos de solidão e individualidade é estabelecer fossos de proteção contra os “outros”. A realidade cotidiana nos mostra que as blindagens são inócuas para uma violência que é de novo tipo. Ela faz parte da regra do jogo do envelhecido século XXI, tempos de violência e solidão.

 

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Resumo:

Este artigo discute as questões da violência, do individualismo, da solidão, da perversidade, e como estas idéias, no mundo contemporâneo, produzem práticas políticas e sociais conflituosas e desestruturadoras das sociabilidades tradicionais fundadas na ética do trabalho e do Estado clássico liberal ou social-democrata.

Este texto foi apresentado no seminário Maquina Mortífera II, organizado pelo Laboratório Cidade e Poder da UFF, no ano de 2001.

 

Palavras-chave: Violência, individualismo, perversidade, sociabilidade, Estado.



* O autor é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ.


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