A ODISSÉIA
AFRO-BRASILEIRA: TRABALHO E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Sérgio Abreu*
"Nós trabalhamos porque precisamos do dinheiro
para sobreviver. Mas também trabalhamos porque isso contribui para a nossa
dignidade, o nosso valor como pessoas. (...) Toda sociedade que exclui pessoas
do trabalho por qualquer motivo – sua deficiência ou sua cor ou seu gênero –
está destruindo a esperança e ignorando talentos. Se fizermos isso, colocaremos
em risco todo o futuro”. Robert White (MacFadden, 1994)
A
problemática da discriminação racial no campo do Trabalho tem sido uma dos
maiores reivindicações da comunidade afro-brasileira no combate a exclusão e na
adoção de políticas públicas de diversidade no campo laboral.
Pretendo
neste artigo provocar algumas questões de cunho metajurídicos, que espero
ofereçam melhor compreensão à histórica exclusão do afro-brasileiro no mercado
de trabalho. Os defensores mais acérrimos das soluções legalistas para a
problemática da discriminação racial no campo do emprego e do trabalho, não
podem mais se entrincheirar nos argumentos exclusivamente juspositivistas, dado
o caráter interdisciplinar que envolve o racismo e seus desdobramentos.
As
Declarações de Direitos trouxeram em seu bojo a questão da diferença,
especialmente as Declarações de 1789 e a de 1948, - onde o binômio homem e cidadão está encapsulado no
conceito ocidental de homem: branco, adulto e proprietário e outras designações
dominantes. A idéia de tolerância, enquanto acolhimento à estranheza em relação
ao outro, coloca-nos diante da ética dos direitos humanos de reconhecimento da
diferença, portanto, respeito à alteridade, e em última instância à dignidade
da pessoa humana.(Siqueira e Bandeira, 2001: 117).
É nesse
sentido, que se funda o aparente paradoxo entre a universalização da igualdade
(concepção Kantiana) e os mecanismos de (re)produção da exclusão racial,
oriunda do eurocentrismo iluminista, reconhecidamente, fundador das matrizes
racistas que imperam, em certa medida, até os nossos dias, pulverizadas no mais
amplo espectro das relações sociais. O discurso da igualdade liberal, "Ao mesmo tempo, descaracteriza o
discurso estatal da ‘universalidade’, na medida em que se consolida uma
sociedade excludente, em que a figura do Estado vai se caracterizar mais no
sentido de uma ‘ausência’, do que numa ‘presença’, para parcelas substanciais
da população".(Nunes, 2001: 156).
A
discriminação no trabalho e no emprego possuiu suas raízes no passado
escravista e colonialista que nunca se emprenhou em inserir, aqueles que foram
escravizados, no mercado de trabalho assalariado, nem tampouco equalizar as
disparidades educacionais e sócio-econômicas dos afro-descendentes. Quando a
questão racial é abordada, ela se situa no campo do individualismo, centrado
numa "terapêutica" dos comportamentos equivocados, politicamente
incorretos, desconsiderando o ponto central que é o racismo. A lógica do
discurso liberal, faz com que o direito venha a adotar uma farmacologia
jurídica visando tão somente as práticas racistas, desprezando o racismo enquanto
inércia institucional e estrutural que tem como produto as práticas
discriminatórias, ou ainda, a adoção de estratégias para se eximir da
responsabilidade internacional dos instrumentos jurídicos por ele ratificados e
atender a retórica diplomática do direito internacional dos direitos humanos.
Verifica-se
que o racismo, exaltação onírica da superioridade racial, não obstante o
descrédito científico das teorias de hierarquização racial, permanece ainda
como concepção arcaica da aristocracia liberal pós-moderna. (Abreu,1999: 152).
Importante
no enfrentamento da discriminação no trabalho e no emprego é a organização do
movimento social. A elaboração de relatórios paralelos elaborados pela
sociedade civil evidenciam as denúncias de violação dos Tratados e Convenções
de Direitos Humanos. A internacionalização dos direitos humanos evidenciou que
"Quem fala pelo outro controla as
formas de falar dos outro" (Silva,2001: 34).
A imagem do
trabalhador negro, seja qual for o campo de atividade, está impregnada de estereótipos,
ligados ao passado. Embora entendam alguns que o passado está desarticulado com
o presente, no que diz respeito ao racismo, o conceito de "boa
aparência" está ligado a noção de imagem. "Assim como a noção de estereótipo pressupõe um confronto com uma
realidade da qual o estereótipo seria a reprodução distorcida, a noção de
imagem pressupõe a existência de uma realidade que a imagem simplesmente
reproduz. De certa forma, o estereótipo é um caso particular de imagem"
(Silva, 2001: 53).
O Núcleo de
Pesquisa e Informação da Universidade Federal Fluminense – DATAUFF – efetuando
pesquisa, encomendada pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas -
CEAP, financiada pela Fundação Ford, apontou o percentual de 93% de racismo
entre brasileiros. A referida pesquisa publicada pelo Jornal do Brasil do dia
12 de maio de 2000 (pág. 5), indica, também, a dificuldade de convivência no
trabalho, reconhecida por 77% dos entrevistados.
O periódico
francês “Le Monde Diplomatique” (março de 2000, pág. 7) publicou matéria
intitulada "Discrimination raciale à la française" (Discriminação
racial à francesa), na qual afirma que a comissão britânica CRE (Commission for
Racial Equality – Comissão Para Igualdade Racial) obteve mais de 2.000
condenações e reparações por discriminação no emprego, enquanto na França, as
condenações não ultrapassaram a três. A matéria enfoca três pontos
fundamentais: a reparação dos danos as vítimas da discriminação, a sanção aos
autores de práticas discriminatórias e a modernização dos textos legais. Em
"Questionner le racisme", Dominique Schnapper e Sylvain Allemand
apontam que a França foi um dos primeiros países a adotar dispositivos em
matéria civil e penal em combate ao racismo atendendo a Convenção Internacional
sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1966). É oportuno
lembrar que a legislação anti-discriminatória na França remonta o século
passado.
A
problemática racial, polifacética, não se restringe à emblematização dos
Direitos Humanos, mas necessita de um enfrentamento interdisciplinar da
questão, articulando o doutrinário-acadêmico ao cotidiano-profissional
(Perelman). Isto representa maior eficácia social no tratamento da legislação
anti-discriminatória visando o aperfeiçoamento da Hermenêutica dos Direitos
Humanos, especialmente, em matéria racial. Notas-se que o itinerário do
princípio da igualdade aporta na afirmação dos direitos humanos. As camadas
sociais relegadas a indigência e a vulnerabilidade – por debilidade
econômico-social e por sofrerem permanente violação de direitos fundamentais –
merecem proteção particularizada de acordo com a Conferência Mundial de
Direitos Humanos realizada em Viena no ano de 1993 (Abreu, 2001:265).
As aludidas
matérias evidenciam que a intolerância racial no campo do trabalho, se
constitui numa "maladie hontese"
(humilhação), ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana. Os
instrumentos internacionais de proteção particularizada às populações
vulneráveis recomendam aos Estados-Partes que adotem medidas jurídicas, legislativas
e políticas públicas de combate às práticas discriminatórias que aviltam o
princípio da igualdade.
A análise
estatística das relações raciais serve para constatarmos o quanto o escravismo
influenciou na estratificação social, sobretudo na concentração racial da
riqueza. Os dados publicados pelo IBGE, na PNAD de 1987 apontam que nas
categorias sócio-ocupacionais o dado estereotipador interfere sensivelmente nas
proporções entre raças e ocupação no mercado de trabalho. Em 1998, o IBGE, na
síntese de indicadores sociais, revela que em 1997 "a população branca ocupada tinha um rendimento médio de 5
salários mínimos, enquanto os pretos e pardos alcançavam valores em torno de 2
salários mínimos, ou seja, menos da metade dos rendimentos médios dos brancos.
Estas informações confirmam a existência e a manutenção de uma significativa
desigualdade de renda entre brancos, pretos e pardos na sociedade
brasileira".
O Instituto Sindical
Interamericano pela Igualdade Racial - INSPIR, em trabalho publicado em outubro
de 1999, intitulado Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho, concluiu
que:
"os resultados da pesquisa trazem um conjunto
de informações que demonstram uma situação de reiterada desigualdade para
negros, de ambos os sexos, no mercado de trabalho das seis regiões estudadas,
independentemente da maior ou menor presença da raça negra nestas regiões. A
coerência dos resultados em nível nacional demonstra, sem qualquer sombra de
dúvida, que a discriminação racial é um fato presente, cotidiano, interferindo
em todos os espaços do mercado de trabalho brasileiro.
Nenhum outro fato, que não a utilização de
critérios discriminatórios baseados na cor dos indivíduos, pode explicar os
indicadores sistematicamente desfavoráveis aos trabalhadores negros, seja qual
for o aspecto considerado.
Mais ainda, os resultados permitem concluir que a
discriminação sobrepõem-se à discriminação por sexo, combinando-se a esta para
constituir o cenário de aguda dificuldade em que vivem as mulheres negras,
atingidas por ambas".
No mesmo
sentido, a Inter-American Commission on Human Rights, no relatório sobre a
situação dos direitos humanos no Brasil, cap. IX – Discriminação Racial,
informa, no item a.2, que "a
expressão principal dessas disparidades raciais é a distribuição desigual da
riqueza e de oportunidades. No que se refere à renda dentro do nível de
pobreza, 50% dos negros auferiam renda mensal inferior a dois salários mínimos
(US$ 270) em 1995, ao passo que 40% dos brancos estavam nessa situação.
Inversamente, quanto aos salários altos, ao passo que 16% dos brancos recebiam
mais de dez salários mínimos, a proporção entre os negros era de 6%. Os
trabalhadores brancos ganham 2,5 vezes mais do que os trabalhadores negros e
quatro vezes mais do que as trabalhadoras negras".
Na análise
estatística das desigualdades raciais, em "Os Descaminhos da
Tolerância", concluo que "nossas
iníquas estruturas sociais relegam aos afro-brasileiros posições subalternas,
tanto no campo ocupacional quanto no educacional. Assim a concentração racial da
riqueza é um sintoma mais do que significativo da inexistência da propalada e
mitológica democracia racial".
Os mais
expressivos encontros da comunidade afro-descendentes, denunciam as
desigualdades raciais no campo do trabalho. Representantes de entidades do
movimento sindical encaminharam, em 1994, denuncia a OIT, quanto ao
descumprimento da Convenção n.º 111 (Discriminação no Emprego e na Profissão),
ratificada em 1965 e promulgada pelo Decreto 62150, de 19 de janeiro de 1968.
Em 1965, na 83º Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra, "o governo brasileiro assumiu
oficialmente a existência de discriminação no trabalho, solicitando a
cooperação técnica da OIT. Em 1995, o Programa de Cooperação Técnica do
Ministério do Trabalho e Emprego/OIT, coordenado pela Assessoria Internacional
para Implementação da Convenção n.º 111, inclui como parceiros o Ministério da
Justiça, o Ministério Público do Trabalho e a Organização Pan-Americana da
Saúde (OPAS/OMS), que compartilham os
mesmos objetivos no combate à discriminação e na promoção de igualdade de
oportunidades", fazendo parte do Programa Nacional De Direitos
Humanos. Integram o Programa de Cooperação o Grupo de Trabalho para Eliminação
da Discriminação no Emprego e na Ocupação - GTEDEO e o Grupo de Trabalho
Multidisciplinar - GTM.
As
Conferências Mundiais de Direitos Humanos de Teerã (1968) e Viena (1993)
consagraram a proteção particularizada às populações vulneráveis, recomendando
aos Estados partes que adotassem medidas reparatórias e instrumentos legais
equalizadores das distorções sofridas pelos grupamentos sociais vitimados pelas
desigualdades históricas e permanentes dos direitos humanos. A Convenção n.º
111 "inspirada na Declaração de
Filadélfia, 1944, e na Declaração Universal dos Direitos Homem , 1948, - e na
Convenção n.º 105, de 1957, onde ficou consagrado a abolição do trabalho
forçado como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa-
proclamou, de forma ampla, o princípio da não discriminação em matéria de
emprego e profissão" (Süssekind).
Segundo a
Convenção "emprego" e "profissão" significam "o acesso, formação profissional, ao
emprego e às diferentes profissões, bem como, as condições de emprego"
(art. 1º, § 3).
Articulam-se
a essa Convenção todos os demais instrumentos internacionais de proteção
particularizada (Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial, Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo
de Ensino, Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio e
Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra
a Humanidade), ratificados pelo Estado brasileiro, e incorporados à ordem
jurídica interna, e por se tratarem de instrumentos internacionais de Direitos
Humanos, têm aplicação imediata (dispositivo self-executing), por força dos §§ 1o e 2o, do
artigo 5o, da Constituição Federal.
A Lei
Federal no 9.029, de 13 de abril de 1995, que “proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras
práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da
relação jurídica de trabalho”, e a Lei Estadual (do Estado do Rio de
Janeiro) no 2.406, de 07, de junho de 1995, que “dispõe sobre a proibição da expressão “boa aparência” nos anúncios de
recrutamento e seleção de pessoal e dá outras providências correlatas”, são
alguns exemplos de legislação anti-discriminatória em nosso País, no campo do
trabalho, após a edição da Lei Caó.
A
Conferência Mundial contra o Racismo Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerâncias Correlatas, sediada na cidade de Durban na África do Sul, no ano
de 2001 instou os Estados participantes a adotarem medidas jurídico-políticas
de proteção particularizada àquelas populações vulnerabilizadas pelo processo
histórico-escravista.
A discriminação
racial no campo do trabalho, segundo as estatísticas reveladas no início do
artigo, demonstram que a discriminação ergue barreiras à mobilidade social.
Tais obstáculos são opostos tanto no ingresso, ascensão quanto nos critérios
demissionais.
A vulnerabilidade
dos grupamentos étnico-culturais minoritários tem sido - nos Estados Unidos, na
Comunidade Européia, Africana (África do Sul) e Asiática (Malásia) - enfrentada
através da denominada controvertida afirmative
action ou discriminação positiva, atendendo às cláusulas dos instrumentos
internacionais, bem como, as recomendações das Declarações de Direitos Humanos
de proteção particularizada aos grupos vulneráveis. Nesse sentido, a proteção
particularizada as populações vulneráveis atende também ao princípio
aristotélico de Ética e Justiça: "O
que é equitativo, sendo justo, não é justo segundo a lei, mas uma correção da
justiça legal. A razão é que a lei é sempre geral, e que há casos específicos
aos quais não é possível aplicar com toda a certeza um enunciado geral (...)
Vê-se assim claramente o que é eqüitativo, que ser eqüitativo é ser justo e que
é superior a um certo tipo de justiça”.
Tais
estratégias atendem aos princípios firmados, enunciados no Preâmbulo
Constitucional, bem como aos Princípios Fundamentais da dignidade da pessoa
humana, dos valores sociais do trabalho, ao projeto de construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, à erradicação da pobreza, da
marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais, promovendo o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação. Todos esses princípios foram fagocitados pelos
princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana reitores de toda ordem
Constitucional, garantidores do Estado Constitucional Democrático de Direito.
Bibliografia:
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________Documentos de Identidade.
2ª ed. Belo Horizonte: Autência, 2000.
Resumo:
O artigo analisa a problemática
da discriminação racial que atinge os afro-brasileiros no trabalho e no
emprego. A reflexão sobre a temática racial é vista sob a perspectiva
interdisciplinar, centrando o seu foco de análise nos instrumentos jurídicos
internacionais de proteção aos direitos humanos, especialmente, a Convenção nº
111 da Organização Internacional do Trabalho e a sua eficácia jurídica e
social.
Palavras-chave:
Afro-brasileiro; identidade étnico-racial; racismo; discriminação; direitos
humanos; direito internacional do trabalho.