CULTURA POLÍTICA, PRÁTICA IDEOLÓGICA E FORMAÇÃO DE SERVIDORES PÚBLICOS NO BRASIL

 

                                                                  Gizlene Neder* 

                                     

O debate sobre a desestatização dos serviços públicos, inscrito no processo de crise do Estado e globalização da economia desta virada de século/milênio, repõe no palco das nossas discussões, de um lado, a eficácia dos serviços prestados ao público no Brasil. De outro lado, e num sentido mais universal, repõe também algumas temáticas relacionadas à pobreza e à exclusão social que, paradoxalmente, explodem exatamente num momento de crescimento e desenvolvimento das forças produtivas[1].

         Deixando de lado as questões relacionadas ao debate sobre as virtudes do capital financeiro versus aquelas atribuídas ao capital industrial produtivo e ao mimetismo obediente às tendências do neoliberalismo, convém especular por algumas problemáticas de fundo cultural e ideológico que vêm entravando a aplicação de políticas públicas eficientes em nosso país. As dificuldades de observância dos entraves de ordem cultural e ideológica decorrem, no nosso entender, de um entendimento limitado e monolítico do caminho de modernidade a ser seguido, pois a direção política hegemônica (neoliberal e fiel seguidora das diretrizes dos organismos internacionais) vem-se apresentando como a única portadora de um projeto de modernidade, com uma única e exclusiva via de inserção no mercado mundial. O principal efeito deste entendimento é a ausência gritante de projetos político-institucionais sintonizados com as especificidades dos problemas da sociedade brasileira.

         Defenderemos neste artigo a necessidade de estudos e projetos de intervenção institucional que levem em conta a história das idéias políticas e sociais e a historia da cultura política no Brasil. Tais estudos e projetos deveriam ter como alvo as várias áreas estratégicas para consolidação de uma ordem republicana radical e democrática no tempo presente: educação, assistência social, saúde e segurança pública (polícia e justiça). A reflexão sobre aspectos culturais e ideológicos presentes nas instituições públicas pode levantar questões sobre a história institucional no Brasil, nestes mais de cem anos de implantação da ordem republicana. Tem havido, grosso modo, uma avaliação geral e apressada sobre a ineficácia dos serviços públicos no Brasil, com ênfase em aspectos econômicos e sociais. Faz-se necessário, entretanto, tentar interpretar as implicações culturais e políticas contingentes do fracasso das políticas públicas.

         Seria interessante introduzir neste debate uma indagação mais profunda sobre as estruturas curriculares de nossos cursos de nível médio e superior que preparam os profissionais para a prestação de serviços públicos, estejam eles ligados a instituições públicas ou a organizações não-governamentais de todos dos tipos: as novas (recém criadas no bojo das transformações sociais e políticas desta virada de século) e outras mais tradicionais e antigas, de assistência social à pobreza como as casas (santas) de misericórdia, por exemplo, de existência secular. Evidentemente, quando referimo-nos à formação destes profissionais, estamos pensando nos cursos de formação de normalistas, nos cursos de formação de praças, soldados e oficiais das instituições policiais e de defesa civil e nas universidades, responsáveis pela formação de inúmeros profissionais (professores, médicos, assistentes sociais, promotores, juizes, etc.).

         A despeito da pertinência da demanda por maiores investimentos nos serviços públicos básicos (Educação, Saúde e Segurança), e da discordância política na eleição das prioridades tracejadas (seja no governo do PSDB, seja no governo do PT), devemos ser capazes, neste momento, de identificar problemas estruturais na condução das políticas públicas.  Em que medida os profissionais que prestam serviço ao público estão preparados para atendê-lo, do ponto de vista técnico e do ponto de vista cultural e existencial? Ou ainda, todos estes profissionais são informados/formados sobre a diversidade étnico-cultural presente na sociedade brasileira? Uma resposta fácil e superficial sobre este último ponto nos levaria a afirmar que sim.  Contudo, as estruturas curriculares passam ao largo desta temática.

Quando a Escola Normal criticou e substituiu o currículo tradicional (da palmatória), o fez segundo os moldes do pensamento educacional liberal francês, de cunho psicologizante. As professoras (na sua grande maioria, o professorado do primeiro segmento do ensino fundamental é composto de mulheres), todavia, continuaram (continuam ainda) esperando encontrar na sala de aula um determinado tipo de aluno. De preferência, que este aluno se encaixe no modelo de criança oriunda do modelo de família patriarcal, ditado pela confluência de dois projetos de família: de um lado, aquele esculpido pela cristandade ocidental desde o Concílio de Trento no século XVI (pai-mãe-filhos), consagrado pelo matrimônio e corriqueiramente chamada de regular; de outro, aquele da família nuclear, burguesa que vem, igualmente, obedecendo a padrões disciplinares e moralistas rígidos, ditados pelos saberes positivistas, ditos científicos e modernos, de médicos, juristas e psicólogos.

         Movendo nossas lentes de observação para outro lado, encontraremos outros profissionais que lidam diretamente com o público, como aqueles ligados a instituições policiais, que não conhecem a história da cidade; nem a história política da ocupação e da circulação dos vários grupamentos étnico-culturais pelos espaços da cidade. Tampouco (tal como os profissionais da área de educação) conhecem a história social que os remeteria a um estudo sobre as estruturas de parentesco que subjazem à composição demográfica de cada cidade. Seria oportuno contrapor à estrutura de parentesco hegemônica de origem ibérica (patriarcal) e consangüínea, a estrutura de parentesco por linhagens (matrilineares ou patrilineares), presente em várias etnias africanas que sofreram migração compulsória para o Brasil até meados do século XIX, por exemplo. Com certeza, a identificação desta pluralidade na organização das famílias no Brasil ajudaria a definição de políticas públicas mais adequadas, que não contivessem no seu núcleo operativo convicções dogmáticas que estigmatizassem uma grande maioria da população brasileira como sendo oriunda de uma família irregular. Esta estigmatização tem produzido efeitos de indisposição psico-afetiva que vêm caminhando, a passos largos, na direção da intolerância política. Podemos, assim, afirmar que uma parte considerável dos motivos do fracasso escolar ou da truculência policial deve relacionar-se ao desconhecimento histórico-sociológico e conseqüente inadequação das estratégias de ação para destas políticas públicas.

         Em alguma medida, a tomada de consciência deste entrave, que é fundamentalmente de ordem ideológica e cultural, mas que é, também, de ordem psicológica, poderá produzir efeitos políticos importantes na direção de um processo social de construção identitária, tanto do público a ser atendido, quanto dos próprios servidores públicos.

         Pensamos que vários dos problemas que vivenciamos hoje no campo das políticas voltadas para educação e para o atendimento de famílias e de crianças e adolescentes (prostituição infantil, abuso sexual, estupro, violência doméstica, abandono), por exemplo, não podem ser solucionados sem que tenhamos clareza do processo histórico-cultural subjacente, que molda a cultura política.  A despeito de não deixarmos de considerar aspectos econômico-sociais relacionados à pobreza e à exclusão social[2], a cultura política constitui campo importante quando pensamos o encaminhamento de políticas governamentais.

Podemos afirmar, ainda, que os impasses das políticas públicas nestes mais de cem anos de ordem republicana (seja no campo assistencial, judicial, policial, ou educacional) se devem em boa parte, à forma tímida como o Estado (paradoxalmente, no mais das vezes, forte e autoritário) se incumbe de sua responsabilidade parental[3].

Por responsabilidade parental estamos entendendo, junto com Pierre Legendre, o conjunto de práticas políticas e ideológicas encetadas a partir de um lugar de poder dentro de uma dada lógica institucional. A expressão aparece no conjunto da obra de Legendre[4] sob a forma de “fonction parentale”, ou seja, função parental. Para o autor, a conceituação não é problematizada do ponto de vista da teoria sociológica funcionalista (pelo menos conscientemente), uma vez que ele trabalha muito mais sob influência do estruturalismo, e da psicanálise de corte lacaniana. Fazemos um pequeno deslocamento conceitual, afirmando a idéia de responsabilidade parental, exatamente porque apreendemos o significado do conceito usado por Legendre, que, na nossa leitura, está muito mais próximo da idéia de responsabilidade do que de função. Sobretudo, porque Legendre, trabalhando de forma multidisciplinar (com a História, o Direito e a Psicanálise) descortina em seus livros as marcas da cristandade latina na cultura política européia (e seus prolongamentos ultramarinos). Neste ponto, o autor busca na história da Idade Média aspectos constitutivos da identidade cultural européia (e, portanto, ocidental), para os quais a Igreja Romana e seus ritos, alegorias e ideologias são indiscutivelmente fundamentais.

         Dentre estes aspectos histórico-culturais que mais se fazem notar quando compulsamos uma rica fonte documental, destacamos a forma ambígua e indecisa de como o poder foi exercido pelas autoridades do terceiro ou quarto escalão do serviço público na formação política brasileira. Não se trata propriamente de uma completa ausência ou omissão no exercício das responsabilidades parentais do Estado - seja no período monárquico, seja no republicano -, onde poderíamos pontuar o abandono em detrimento da assistência. Constatamos, contudo, uma falta de clareza ideológica e política quanto à assunção destas responsabilidades, na maioria dos segmentos institucionais observados. Diferenciamos, entretanto, os operadores da área médica, que vocalizaram uma demanda por assistência pública profissional, cientifica, e responsável no sentido republicano.

É como se, no conjunto, o processo de passagem à modernidade e de estruturação da arquitetura político-institucional periférica do Estado estivesse a meio-caminho, onde algumas permanências histórico-culturais que moldaram o processo de ideologização colonial e escravista convivessem com a introdução de algumas estratégias e procedimentos da modernidade republicana.

Queremos com isto dizer que, em alguma medida, a cultura político-institucional no Brasil dá um suporte ideológico limitado à atuação política do Estado republicano.

Esta limitação decorre da ação de duas outras forças político-institucionais que disputam, com vigor, a primazia ideológica e política sobre estas políticas. De um lado, a Igreja e as forças do conservadorismo clerical. Mesmo considerando a separação entre Igreja e Estado empreendida após a proclamação republicana, a Igreja no Brasil vem disputando uma fatia significativa de interferência – no plano político e no plano ideológico – pelo menos em dois campos importante: a assistência social e a educação.  De outro, a instituição familiar, onde o paterfamilis é considerado, por natureza, responsável e respeitável, corresponda ele ou não à realidade. Neste ponto, a naturalização de corte tomista, que se fundamenta na idéia de direito natural, atua no processo de simbolização e, também, inibe a ação do Estado e das políticas governamentais. Todo poderoso no texto da lei jurídica[5], açambarca sob as abas de seu chapéu uma parentela extensa (mulher, filhos, parentes, afilhados, criados e agregados) que, para além dos efeitos macro-políticos (já bastante enfocados pelos estudos no campo da Ciência Política[6]), produz efeitos ideológicos e políticos que obstam a institucionalização e a profissionalização de políticas públicas eficazes.

Em outras palavras, os asilos (de alienados, de velhos), os orfanatos, as prisões (inclusive para jovens infratores) e o sistema de educação pública não atuam em sua plenitude, de forma a garantir o suporte ideológico necessário para o exercício da responsabilidade parental do Estado; ou seja, ideológica e afetivamente, estas responsabilidades são atribuídas ao paterfamilis, que deve proteção (em troca de obediência) e/ou à caridade, que é articulada e mobilizada pelas instituições religiosas, mormente da Igreja católica.

Pelo exposto, pensa-se a necessidade de valorização das famílias, enquanto locus de produção de identidade social, tendo em vista a formação de uma cidadania ativa. A construção desta identidade, individual e coletivamente, deve, contudo, passar pela tolerância com a diversidade étnica, social e cultural da sociedade brasileira. Dito de outro modo: deve se evitar a referência, muito impregnada, que opõe família regular X família irregular, responsável, em larga medida, pelos preconceitos que levam ao fracasso escolar, a displicência e o descaso no atendimento médico e a truculência policial em relação às classes populares.

 

 



* Este texto insere-se em projeto integrado de pesquisa (iniciado em agosto de 2000), e intitulado Assistência, Abandono, Repressão e Função Parental do Estado, desenvolvido no Laboratório Cidade e Poder, da Universidade Federal Fluminense. Contamos com a participação de Gisálio Cerqueira Filho, Departamento de Ciência Política da UFF, nas discussões teóricas deste projeto integrado.

 

[1]A produção acadêmica recente tem revelado o aumento da preocupação com esta temática; a bibliografia levantada é vasta, e selecionamos algumas obras para citar: Françoise Barret-Ducrocq – Pauvretá, charité et morale à Londres au XIXe siècle: une sainte violence, Paris, P. U. F., 1991; Bronislaw Geremek – A piedade e a forca: história da miséria e da caridade na Europa, Lisboa, Terramar, 1995; Philippe Sassier – Du bon usage des pauvres: histoire d’un thème politique, Paris, Fayard, 1991; Michel Fatica – Il problema della mendicita nell’Europa moderna: secoli XVI-XVIII, Napoli Liguori Editore, 1992.

 

[2] Lícia do Prado Valladares – “Cem anos pensando a pobreza (urbana) no Brasil”, pp. 81-112, In Renato Boschi (org.) - Corporativismo e Desigualdade, a construção do espaço público no Brasil, Rio de Janeiro, Ed. Rio Fundo/IUPERJ, 1991.

 

[3] Pierre Legendre  – Les Enfants du Texte: Étude sur la fonction parentale des États,  Op. Cit..

 

[4] Pierre Legendre – Les Enfants du Texte, Étude sur la fonction parentale des États, Paris, Fayard, 1992, 471p.

 

[5] Gisálio Cerqueira Filho – Ideologia do Favor e Ignorância Simbólica da Lei, Rio de Janeiro, Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 1993.

 

[6] Francisco de Oliveira Vianna – Instituições Políticas  Brasileiras, 3ª edição, 2 volumes, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1974.

 

Resumo: O artigo chama a atenção para a necessidade de estudos e projetos de intervenção institucional que levem em conta a história das idéias políticas e sociais e a historia da cultura política no Brasil.

 

Palavras-chave: desestatização do serviço público, globalização, eficácia, cultura e ideologia.

 

* A Autora é professora do Departamento de História da UFF e Coordenadora do Laboratório CIDADE E PODER

gizlene@antares.com.br  

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