Viviane Gouvêa **
1 -
INTRODUÇÃO
No início do século passado os países capitalistas
defrontavam-se com duas questões cruciais cujas tentativas de solução acabariam
por levar o mundo a um período de radicalismo e violência.
A primeira refere-se à inclusão
política e controle social: uma crescente massa urbana de trabalhadores
(operários, todas as classes médias, etc) conseguia ampliar cada vez mais seu
direito de voto e participação política, ao mesmo tempo em que aprendia a
organizar-se para defender seus interesses no campo econômico. Tais mudanças,
ocorridas principalmente na Europa, traziam um questionamento da democracia
liberal: as formas de controle social e decisão política desse sistema seriam
suficientes para manter o status quo? Seria uma forma de organização política
eficiente nesse novo contexto? A classe trabalhadora que começava a se
organizar também se perguntava se a democracia seria de fato o melhor caminho
para alterar suas condições.
A
segunda questão refere-se à gestão do capital, em um ambiente em que a economia
se expandia além das fronteiras nacionais, as companhias tornavam-se cada vez
maiores e o capital financeiro preponderante. A participação do Estado neste
processo, seu maior ou menor poder de intervenção nos mercados e seus deveres
sociais seriam mais seriamente discutidos a partir dos anos dez e vinte, quando
tornou-se mais claro que "a mão invisível do mercado" não era tão
inteligente assim.
A
crise não se restringiu aos países de capitalismo mais avançado, e ficou claro
que a economia e a política formavam uma rede complexa que englobava vários
países. Movimentos e propostas políticas surgiram em vários lugares, inclusive
no Brasil. Tentavam responder essas e outras questões, específicas de seus
países. Um destes movimentos foi o integralismo, que durante a primeira metade
dos anos 30 mobilizou milhares de pessoas que tinham por objetivo "salvar
o Brasil".
O
integralismo foi em parte um movimento de negação: anticomunista, antiliberal,
antiimperialista. Assim como as ideologias fascistas na Europa, ele teve um
caráter de oposição a uma série de elementos que na época dominavam a cena
política e cultural, em muitos casos elementos que estavam desacreditados (os
ideais burgueses, o pacifismo, a própria democracia). Mas não devemos exagerar
esse componente "anti", nem na Europa, nem no Brasil - por motivos
diferentes.
Além
de se contrapor às instituições liberais que desde o século XIX governavam o
Brasil e ao incipiente movimento comunista, o integralismo foi uma proposta -
talvez a primeira - de construção do Brasil como Nação do século XX. Contando
com uma participação popular até então inédita (1), o movimento penetrou nas
cidades e no campo, organizando-se de uma forma que não havia sido feita antes
em termos nacionais. Na época, os partidos políticos - e esta inclusive era uma
das críticas mais contundentes à democracia, especialmente no Brasil - não eram
organizações permanentes na vida popular, não contavam com estruturas nacionais
e muito menos com participação ativa de quem não estava diretamente envolvido
no processo eleitoral. O movimento integralista foi, portanto, o primeiro
movimento de massas organizado ocorrido no Brasil.
Os
integralistas partiam de uma narração histórica de como o país constituiu-se ao
longo dos séculos para mostrar que o resultado final, o momento que vivia, não
satisfazia os ideais de pátria, nação, soberania: tinha antes desembocado em um
estado fraco, em instituições políticas inadequadas para o Brasil e em um povo
dividido, sem noção de unidade nacional.
As
concepções integralistas de Estado, história, nação, etc, sofreram grande
influência de intelectuais brasileiros como Oliveira Vianna, Alberto Torres, e
também de leituras de teóricos europeus, como Sorel e Manölesco, muitos deles
ligados ao corporativismo e ao fascismo. Não foi um movimento tão homogêneo
quanto se pensa, em termos de idéias e propostas, pois dirigentes como Gustavo
Barroso pregavam abertamente o anti-semitismo, enquanto o próprio Plínio
Salgado - chefe maior do movimento - defendia a mistura de raças e etnias tão
caro ao nacionalismo brasileiro; no início do movimento, monarquistas
alinhavam-se com os integralistas; em algumas áreas rurais mais atrasadas, os
integralistas alinhavam-se com o trabalhador rural, e nas mais desenvolvidas,
acabavam em aliança com as oligarquias.
As
razões para tais diferenças são muitas e não é o objetivo desse trabalho
analisá-las. Minha proposta é outra:
I.
Tentar compreender o apelo do integralismo;
II.
Contrapor duas figuras fundamentais para o movimento e tentar expor algumas das
diferenças que existiam entre eles: o grande chefe e fundador do movimento
Plínio Salgado, e o Secretário de doutrina Miguel Reale.
Um
breve resumo do momento político pelo qual o Brasil e o mundo passavam faz-se
necessário para que possamos compreender estes dois personagens e o apelo do
movimento que defendiam.
2 - A
IDEOLOGIA FASCISTA
Os
movimentos de extrema-direita que se espalharam pela Europa na primeira metade
do século passado tinham alguns pontos fundamentais em comum, embora Portugal
de Salazar e a Alemanha de Hitler apresentassem diferenças cruciais. No
entanto, tais movimentos têm em comum a defesa de um estado mais que
autoritário (2), o nacionalismo exacerbado e o anti-liberalismo, em sua
concepção mais ampla.
As
bases das teorias fascistas são muito complexas, tendo sido antes uma
convergência de várias teorias que encontraram um solo fértil em um momento
histórico muito específico do que uma doutrina muito coerente, homogênea, com
propostas claras. O nacionalismo
tribal, desligado da política e vinculado a uma identidade orgânica entre
indivíduos do mesmo grupo, e a exaltação da força e da guerra como expressões
deste nacionalismo já não eram novidade na Europa central no século XX. Embora
o racismo, elemento muito ligado a esse tipo de nacionalismo corrompido, não
fosse necessariamente componente de todos os fascismos, despertar nas massas um
sentimento de identidade “nacional” acima de interesses de classe ou
partidários seria fundamental para catalisar sua força e dar-lhes um objetivo
comum.
A
reação ao racionalismo iluminista e aos ideais da Revolução Francesa (tidos
como abstrações inúteis e expressões meramente burguesas) também fertilizaram o
solo onde o fascismo viria a germinar. Intelectuais franceses já questionavam
os "ideais burgueses" e o mundo que havia resultado depois de décadas
de liberalismo europeu. Seu questionamento, entretanto não era do tipo
marxista, pois na verdade não criticavam a propriedade privada dos meios de
produção ou o sistema que sobre ela se assentava, mas sim, o materialismo
burguês e a mecanização/mercantilização de todos os aspectos da vida. Mas
alguns revisionistas marxistas entraram nesta linha ao criticar tanto o
materialismo que o marxismo compartilhava com o liberalismo quanto à adesão de
correntes do marxismo ao jogo eleitoral, à disputa parlamentar, à democracia
enfim. Segundo Zeev Sternhell (3), a ideologia fascista, suas teorias,
expressavam uma síntese de um nacionalismo tribal orgânico com a revisão do
marxismo como foi proposta por Sorel na virada daquele século.
Os
movimentos europeus valorizavam a exaltação e a participação popular, não no
sentido democrático: o povo e suas expressões tinham valor na medida em que
refletiam a espontaneidade irracional na qual tais movimentos tentavam se
apoiar. O fracasso de outros movimentos que se dispunham a mobilizar a massa
para uma revolução, baseados em pressupostos racionais, científicos, levou à
busca de outros catalisadores, outros fatores de mobilização: estes não seriam
mais "racionais", no sentido iluminista, não estariam mais ligados ao
materialismo histórico marxista e ao "acirramento da luta de classes que
levaria à revolução". Mas estaria em um apelo emocional às massas, à
nação: a paixão, a guerra, os mitos enfim despertariam a fúria revolucionária.
Tendências
corporativistas também viriam a ser parte da ideologia fascista, e já em 1910 o
nacional-socialismo italiano considerava a democracia parlamentar como mera
expressão do domínio burguês que favoreceria a fragmentação da sociedade e o
conflito de interesses particulares em detrimento do todo. Em seu lugar eles
propunham um regime baseado em hierarquias "naturais" que construiria
interesses comuns entre as classes: um regime de produtores que visasse o bem
da nação, a participação na esfera política ligada à produção.
Alguns
destes componentes estariam fortemente presentes no integralismo (como o
corporativismo e a força dos mitos sociais) e outros estariam ausentes (como a
influência do revisionismo marxista); mas ele partilhava dos princípios básicos
destas ideologias. O apelo aos brasileiros que dele se tornaram adeptos tinha
muitas semelhanças com o apelo às massas européias.
3 - A
DÉCADA DE 1930
O
mundo estava em crise em 1930: crise política e econômica. Talvez encruzilhada
fosse um termo melhor: os mercados mostravam-se desorganizados e a gestão do
capital tornou-se uma questão premente. A democracia liberal estava encurralada
pela revolução russa e pelo seu antagonista, os movimentos fascistas.
No
Brasil a situação não era muito diferente. A velha política que dominara desde
a proclamação da república já não tinha a ressonância suficiente para continuar
inalterada: o país crescia, urbanizava-se, e embora as oligarquias rurais
continuassem a ser a força política e base econômica do país, novos grupos -
elites urbanas, intelectuais e profissionais, trabalhadores e operários que
aumentavam em número nas grandes cidades - começavam a questionar a velha
política oligárquica baseada na força dos estados, na verdade de alguns estados
mais poderosos economicamente (Minas e São Paulo). O antigo sistema já não dava
conta da nova realidade brasileira, e na verdade a sufocava: a crise do final
dos anos vinte viria a ser apenas a gota d'água, deixando bem claro que o mundo
encontrava-se em fase de intensas transformações das quais o Brasil não poderia
ficar à parte.
Durante
e depois da Primeira Grande Guerra o país começa a passar por um período de
industrialização mais sistemática, por pressão mesmo de grupos que haviam se
beneficiado do boom de produção causado pela necessidade de substituir
importações durante a guerra. Embora tal fenômeno seja de importância
fundamental para compreendermos as mudanças políticas, sociais e culturais da
época, não devemos superestimar tal industrialização, pois o país continuou a
ser exportador de produtos agrários e esta era sua base econômica.
Nos
anos 20, algumas camadas urbanas - classes médias e trabalhadores - começam a se
expressar com mais força e o sistema político dominado pelo setor
agrário-exportador começa a perder legitimidade. Mesmo porque, ele já não dava
conta dos anseios de uma parcela expressiva de uma oligarquia paulista que
começava a se modernizar, além de deixar à margem as elites agrárias de outros
estados da federação (4). Esta expressão das classes urbanas se daria em vários
campos (surgimento de sindicalismo, vanguardas artísticas, movimentos políticos
como o tenentismo), e também entre intelectuais. Nas primeiras décadas do
século, a produção acadêmica e literária voltada para reflexões sobre o Brasil
foi bastante intensa: Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Manoel Bomfim,
Alberto Torres, Francisco Campos, Oliveira Vianna, para citar alguns dos mais significativos.
A
crise que começa no início dos anos 20 e explode definitiva e violentamente em
1929 põe o modelo agrário-exportador em xeque e coloca em evidência o mercado
interno e a economia urbana como pólo dinâmico da economia. A industrialização
ocorrida desde o princípio do século e a imigração estrangeira ocorrida para
impulsionar esta industrialização compuseram um operariado que começava a se
organizar e dar sinais iniciais de uma consciência proletária em formação.
A
crise que se abateu sobre o país e o mundo, a urbanização crescente, o aumento
do número de trabalhadores, e o crescimento (em número e em atividade) de
grupos intelectuais urbanos tornariam o terreno fértil para contestações
políticas e novas propostas de organização. Pela primeira vez o Brasil enfrenta
a questão social, marca de sociedades capitalistas e urbanas, e tem que lidar
com problemas de organização do sistema produtivo, que começava a deixar de ser
exclusivamente agrário-exportador para voltar-se também para a produção interna.
4 - OS
BRASILEIROS
A
chamada República Velha, que vai da proclamação em 1889 ao golpe de 1930, foi o
período em que a esfera política esteve dominada exclusivamente pelas
oligarquias rurais estaduais, com ocasionais insurreições de alguns grupos
ligados às forças armadas. A estrutura política brasileira funcionava em torno
de partidos estaduais e disputas locais, e as divergências entre as
oligarquias, em diversos níveis, eram fator de conflito e disputas em torno das
eleições presidenciais, que em geral deveria equilibrar os interesses das
diversas oligarquias estaduais.
Nos
anos depois da primeira guerra houve dissidências e cisões nesta situação, com
alguns partidos "democráticos" surgindo, denunciando a existência de
setores liberais burgueses dentro da própria classe latifundiária (São Paulo e
Rio Grande do Sul).
Também
foi no pós-guerra que as classes médias urbanas começaram a tomar maior
consciência política e a tentar "definir seu papel". Pensar o Brasil,
em termos de propostas para o novo século e para a nova sociedade que se
anunciava ganhou importância e daria origem a grupos políticos à esquerda e à
direita; analisá-lo de forma sistemática, tentando fugir do diletantismo esnobe
que marcara o século XIX expressava a tentativa de criar um pensamento autônomo
para solucionar nossos problemas. Inquietações e revoltas militares
(tenentismo), embora não possam ser enquadrados em movimentos políticos
inovadores da classe média, sendo mais uma apelo às mudanças no próprio sistema
antes que este viesse e ser desafiado pelo povo, também refletiam insatisfações
com o regime dominante e acabariam por fornecer elementos para outros
movimentos, como a Coluna Costa-Prestes e o próprio movimento integralista.
O
início do século XX foi um período em que novas interpretações do país se
faziam necessárias, por conta de transformações na sociedade brasileira (fim do
escravismo e do Império, mudanças no contexto internacional que atingiam o
Brasil) que tornavam os antigos discursos algo anacrônicos. Os Sertões
de Euclides da Cunha buscava mais do que descrever: buscava compreender e
aceitar a realidade brasileira. O brasileiro urbano, boa vida e europeizado tem
que encarar de frente que, queira ou não, vive em um Brasil muito distante da
tão idolatrada França; que a realidade e o povo brasileiros têm especificidades
marcantes.
Ao
mesmo tempo em que intelectuais expunham com crueza a realidade nacional -
Monteiro Lobato, Euclides da Cunha, Alberto Torres - obrigando um povo a se
encarar, engendravam uma admiração por essa realidade, pelo povo que nela
vivia, tão cheio de potencial e tão abandonado por um governo que só atentava
para os interesses das elites rurais e do capital financeiro internacional.
O
nacionalismo viria a ganhar força com a primeira guerra mundial, em um impulso
que continuaria no período de paz, colocando para o país questões relativas à
segurança e independência em um cenário internacional conturbado. O sentimento
de inferioridade que tradicionalmente fazia com que as elites intelectuais
desprezassem abertamente o povo e se vissem "obrigadas a conformar-se com
o atraso" deu lugar ao orgulho e ao sentimento de que afinal, o Brasil era
uma terra jovem onde tudo estava por ser feito, e poderia de fato ser feito sob
o comando certo.
Nos
anos 20 o nacionalismo ganhou mais força - em harmonia também com as tendências
mundiais - e amplitude: tinha dimensões cívicas mas também econômicas, e os
movimentos artísticos da década de 20 acrescentariam a preocupação artística e
quase antropológica com uma identidade nacional, e uma exaltação às origens e à
originalidade do povo brasileiro.
As
vanguardas envolvidas com estas iniciativas e com a criação deste novo
nacionalismo iriam muitas vezes envolver-se politicamente (embora nem sempre
diretamente), mas muitas vezes em lados diferentes do mesmo lado. Muitos
artistas tornaram-se comunistas, outros integralistas. Por exemplo, o líder da
Coluna Costa-Prestes (Carlos Prestes) acabaria no Partido Comunista, e alguns
tenentes iriam aderir ao integralismo.
O
sistema político das velhas oligarquias começa a ser questionado na sua base.
Se o liberalismo e o sistema representativo estavam em xeque em seu próprio
berço, a Europa, que dizer do Brasil, onde - segundo os críticos - tal sistema
jamais funcionara devidamente? Massas urbanas cresciam e andavam em busca de
expressão: a poucos parecia que eleições, da forma como ocorriam e já tão
desmoralizadas por fraudes e cabrestos, poderiam ser canal eficiente para
participação e para criar uma unidade nacional que muitos percebiam faltar no
país.
5 - O
APELO INTEGRALISTA
Por
que o integralismo teve tanto apelo?
Os
movimentos fascistas europeus em geral deram-se em ambientes de classe operária
constituída (5), muitas vezes com movimentos comunistas e socialistas
relevantes e organização sindical forte. Eram sociedades já industrializadas em
que a própria burguesia sentia-se acuada pela desorganização dos mercados e
pela organização do proletariado.
Um
dos antagonistas do fascismo na Europa era a democracia liberal (6); no Brasil,
como no resto da América Latina, os governos democráticos quase inexistiam,
tinham pouca tradição, ou funcionavam em fachada - caso do Brasil. Por quê
então aqui, ambiente que, aliás, era tão pouco propício a qualquer ideologia
dissonante com a oficial, o fascismo teve influência suficiente para inspirar
um movimento de tal amplitude? Mais: se o outro grande inimigo - comunismo -
estava pouco presente, a ideologia fascista não teria um contraponto
consistente que impulsionasse a sua formação; por que, no entanto, ele
conseguiu formar uma identidade própria?
Na
verdade esta questão é uma falácia; se a democracia liberal só existia no
Brasil como fachada, mais um motivo para que pessoas em busca de uma
alternativa abraçassem ideologias do tipo fascista. Não devemos esquecer que o
fascismo foi um componente importado do integralismo - que possuía muitos
outros componentes -, e foi adaptado e absorvido pelo movimento nacional. O
autoritarismo sempre esteve presente na política brasileira, assim como o
elitismo: nada mais confortável, portanto, que adotar uma doutrina que, embora
exaltasse a participação popular - participação como força, como paixão, e não
como decisão ou comando - baseava-se na autoridade e na hierarquia
estritas.
O
movimento comunista - outro grande inimigo do fascismo -, embora tenha
adquirido força surpreendente principalmente no movimento sindical dos anos 20
e 30, não tinha raízes no Brasil - e como vimos, o fascismo estava também
ligado à negação do comunismo, tanto por opor-se à solução criada pela
Revolução Russa para as crises do capitalismo (acabando com o próprio) como por
ter sido influenciado pelo revisionismo marxista da virada do século (7). A
Rússia estava muito longe do Brasil, e aqui também não havia tradição nenhuma
de discussão do marxismo.
Entretanto,
talvez aí resida a outra explicação para a popularidade do integralismo, pelo
menos nas classes médias e entre intelectuais: entre estes grupos, estava
difundida a noção de que o liberalismo e o sistema representativo no Brasil não
estavam dando certo. Se o sistema liberal democrático tinha telhados de vidro
em todo o mundo, no Brasil a casa inteira era de vidro e estava à espera que
lhe jogassem pedras: escritores, artistas, burocratas, jovens políticos,
profissionais liberais, a classe média urbana enfim, fez uso da pedra mais
conveniente e familiar que estava à mão. Mesmo porque, a outra alternativa para
o regime liberal seria o comunismo, ou o socialismo - ambos, herdeiros da
tradição marxista. Ora, tais correntes não tinham nenhuma tradição aqui, e,
portanto, jamais encontrariam ressonância em grupos de classe média que, bem
intencionados que fossem (8), não compreenderiam uma ideologia que tanta
importância dava ao proletariado. Não devemos esquecer que o proletariado
brasileiro era novo, não tinha a força do proletariado europeu; e não nos
esqueçamos também que a tradição brasileira sempre considerou o povo como grupo
inferior. O fato de ter surgido uma nova visão a respeito do homem brasileiro,
cheio de potencialidades, mas abandonado pelo governo, não quer dizer que tal
visão admitia que este povo soubesse se governar, soubesse o que fazia. Era um
povo que precisava ser conhecido, admirado e guiado, e chamado a participar
apenas como "massa entusiasmada".
Se
o Brasil apenas começava a urbanizar-se, era por outro lado um processo rápido:
nos anos 20 e 30, havia já uma massa urbana sedenta não só de participação
política formal; para estas massas, ou pelo menos para algumas camadas delas,
era fundamental constituir um novo projeto, uma nova idéia de nação. O
nacionalismo fascista seria muito bem vindo em um contexto de crise política e
cultural, em que um novo país - o país em que as cidades começavam a ser
importantes - nascia e ganhava força com uma rapidez surpreendente. Classes
médias moralistas e conservadoras também acolheriam com prazer uma doutrina que
lhes desse uma opção e uma defesa frente à massa de trabalhadores - e
subtrabalhadores, sempre presentes neste país - que crescia com a indústria e
com as cidades, algumas vezes tentando se organizar, às vezes com a
participação de militantes comunistas, outras vezes, sob maior influência dos
anarquistas.
Embora
o integralismo tivesse de fato maior adesão junto às classes médias urbanas,
tendo sido inclusive fundado por um grupo predominantemente formado por
intelectuais, entre os cerca de 500.000 mil filiados certamente encontraremos
também trabalhadores, rurais e urbanos. Nas áreas rurais empobrecidas, algumas
vezes os integralistas se alinharam com os trabalhadores rurais e contra
grandes proprietários: áreas em que as oligarquias e seus partidos regionais,
tão criticados pelos integralistas, dominavam o povo como arma eleitoral,
impedindo a constituição de um país, uma nação unificada.
O
movimento integralista talvez tenha sido o primeiro a perceber como se faz
política em uma sociedade de massas: a noção de serem as idéias válidas não
pela sua verdade, mas pela sua força e eficiência é a chave para entendermos o
uso que os integralistas faziam das "idéias-mito". A bandeira, os
hinos, uniformes, saudações, livros de doutrina, tudo isso construiu o sucesso
de um movimento que compreendeu que o sentido de sua existência estaria na
adesão integral dos seus militantes,
e fundamentalmente, de muitos militantes.
6 -
PLÍNIO SALGADO E MIGUEL REALE
Plínio
Salgado e Miguel Real nasceram na mesma cidade: São Bento do Sapucaí, interior
de São Paulo. O primeiro nasceu no fim do século XIX, o segundo no início do
século passado. Plínio foi fundador e grande chefe da Ação Integralista Brasileira
(AIB), e Miguel Reale, Secretário de Doutrina. Embora ambos estivessem do mesmo
lado e partilhassem a mesma doutrina, algumas diferenças podem ser apontadas na
forma com que se dirigem ao público, na ênfase que davam a certos aspectos da
doutrina e na sua argumentação.
Plínio
Salgado pertencia a uma família bastante tradicional, e estava ligado à
política da Velha República por conta desta tradição. Seu pai, chefe político
local, era filiado ao Partido Republicano Paulista. Ele próprio acabaria por passar
a juventude filiada a este partido, atuando na política local. Esta conexão com
a velha política que posteriormente viria tanto a criticar perduraria até mesmo
depois de seu engajamento ideológico modernista. Rompeu com o partido somente
em 1930.
Desde
o início dos seus estudos políticos Plínio mostrou a ambigüidade do seu caráter
que também iria refletir-se em sua atuação política posterior. Ao mesmo tempo
em que se interessa pelo materialismo histórico, não deixa de ser católico.
Viria depois a aproximar-se do espiritualismo, que o acompanharia por toda a
vida e seria um dos responsáveis pelo seu apelo mais moralista e subjetivo.
Sua
participação na política local e o período inicial de reflexões sobre a
problemática brasileira levaram-no a defender as comunidades locais,
questionando o desequilíbrio que havia entre o poder central, os Estados e os
municípios. Nesta época também Plínio já demonstrava o ardor nacionalista que
marcaria sua atuação na AIB.
Como
resultado de conflitos políticos na cidade onde morava, ele é obrigado a ir
para São Paulo, onde apesar de ainda ligado ao Partido Republicano Paulista,
começou a se envolver com intelectuais que defendiam uma renovação política,
liam Spencer, Sorel, Le Bon, e aí inicia também a sua carreira artística.
O
artista e o político; o espiritual e o material; o líder e o ideólogo. Plínio
passou a vida entre estas ambigüidades, que explicam muito da sua trajetória: a
relutância em aceitar o papel de chefe, sentindo-se mais à vontade na de
ideólogo; o esforço em unir o catolicismo ao integralismo; o passado ou o
futuro do Brasil como sendo pólo de inspiração para o nosso nacionalismo.
A
experiência no tradicional partido paulistano acabaria por dar-lhe base sólida
para as críticas que viria a fazer. Em dado momento, ele percebeu que o partido
- como todos os outros partidos regionais que eram a base da república
brasileira na época - não passava de uma máquina eleitoral de fazer senadores e
deputados, que vendia seus candidatos ao público como se estivesse vendendo um
produto qualquer; afirmava que toda discussão de projetos para o país, todo
projeto de formação ideológica, questões doutrinárias e principalmente, as
grandes questões nacionais haviam sido colocadas de lado em nome de interesses
particulares e regionais.
Em
1930 ocorreu o rompimento com o partido; viajou para a Europa e ali suas
reflexões, sob influência dos acontecimentos na Europa, ganharam o contorno do
integralismo. Mesmo assim, ao voltar para o Brasil depois do golpe não
considerou oportuno o momento para iniciar um movimento deste tipo. A AIB só
viria a ser fundada em 1932, inicialmente como "agremiação cultural e
intelectual", e não como partido político para disputar eleições, de
acordo com as seus princípios anti-liberais. Desde o início Plínio foi o chefe
do movimento, a figura carismática necessária ao integralismo, o grande líder a
guiar incontestavelmente os militantes da AIB.
Miguel
Reale tem uma formação jurídica que o diferencia de imediato de Plínio, o
artista. Ele entra para a AIB pouco depois da sua fundação, embora desde antes
estivesse em contato com o grupo que viria a fundar o movimento, o SEP (9).
Viria a ocupar a Secretaria de Doutrina da AIB, e é em seus escritos que
encontramos com mais clareza a proposta de um Estado integralista.
A
secretaria ocupada por Reale era de importância estratégica para a AIB, pois
este era um movimento que acreditava na "educação das massas", no
sentido de envolvimento e engajamento do povo com a vida pública, em oposição
ao sistema liberal, onde o homem passa todo o tempo alienado da política, só
tomando conhecimento desta no momento de votar. O discurso de Reale é mais
explicativo, talvez mais técnico do que o de Plínio. Talvez por Plínio ter sido
o homem que falava diretamente às massas, sentia-se mais à vontade para
convencer e apaixonar do que para explicar e sistematizar.
Plínio
enfatizava muito o homem e sua transformação espiritual, ("Assim, repito,
em relação ao Homem, que ele deva ser tomado na verdade mais profunda de sua
essência. E não foi por outra cousa que tracei, antes de tudo, o quadro das
finalidades humanas, antes de entrar no estudo do político"); seus apelos
eram dramáticos; finalidades morais ("O Integralismo quer a nação unida,
forte, próspera, feliz, integrada no Estado, com superior finalidade
humana") e espirituais, Deus, a família eram conceitos centrais para
fundamentar o Estado. Embora tais preocupações não estivessem ausentes em
Miguel Reale, ele não partia destes princípios nem os enfatizava a todo o
momento para legitimar suas idéias. Suas análises centravam-se na história, nas
estruturas e instituições. Seu apelo era intelectual, ao passo que o apelo de
Plínio era emocional ("Ponha cada um a mão na consciência, medite um
pouco, examinando os seus mais íntimos anseios").
Enquanto
Plínio refere-se ao novo Estado e à nova sociedade que viriam com o
integralismo em termos genéricos, hiperbólicos e apaixonados, Reale usa da
precisão para descrever o Estado sindical-corporativista que seria a expressão
mesma da nação ("As corporações, portanto, não serão no Brasil,
subordinadas a um poder político de origem não-corporativista: as próprias
corporações são o Estado"). Preocupa-se em definir seus conceitos, e não
apenas em fazer uso retórico deles. Se a base do Estado são os produtores em
Reale, em Plínio é a família, que antecede mesmo o Estado.
Diferenças
de análise histórica também estão presentes: enquanto Plínio vê na Idade Média
um período de espiritualidade, Reale vê o momento do nascimento do capitalismo,
com suas corporações divisionistas ("a Corporação moderna não é, porém,
fechada e exclusivista como eram as corporações na Idade Média que só olhavam
para o interesse interno da classe") e o surgimento do mercantilismo.
Citar a tradição do povo brasileiro, seus valores e sua história é mais
recorrente em Plínio, já que Reale tenta enfatizar a construção do novo Brasil
em termos de analisar o que está errado e alterar o que for preciso - uma visão
técnica, que não se fundamenta em tradições ("Que querem esses homens todos
de nomes ressoantes, paulistas, gaúchos e mineiros há centenas de anos? Qual
deles saberia responder? E será que nada deseja o povo brasileiro? ...Se a
nossa pátria tem muito ainda que construir, por qual motivo são cegos e mudos
os seus representantes?").
Também
na crítica ao próprio capitalismo o discurso difere: Reale analisa o sistema e
suas contradições, as crises por ele provocadas; já Plínio preocupa-se com a
moral (ou falta de: "Si vamos para o communismo e a anarchia, terá de
submeter-se a uma ordem moral que não é a tua"), com a corrupção, com a
perda de valores tradicionais ("Espicaçou-se a cólera do proletariado
contra os requintes de uma civilização de plutocratas sem alma. Estimulou-se
nestes o instinto conservador de crueldades e deshumanidades") e da fé em
Deus. Reale afasta-se de algumas tradições cristãs, embora jamais rompa com
elas: não é preocupação sua, como é a de Plínio, integrar o catolicismo e o
integralismo ("Quero que leias com atenção estas páginas e venhas, em
seguida, labutar neste serviço de deus e da Nação".).
Se
pensarmos que a organização e a propaganda eram as peças chave do integralismo,
a atuação de Plínio como orador inflamado poderia ser encarada como o lado
"propaganda" da Ação; e o papel de Reale como esmiuçador e
sistematizador pode ser visto como o lado "organização" do movimento.
Mudar
o homem, seu espírito, é preocupação muito cara a Plínio; a Reale, mais cara é
a preocupação com as instituições que possibilitarão a expressão da nação em um
Estado. O primeiro centra-se na decadência do espírito ("...tendo como
resultado a diminuição do sentimento de moralidade e o abaixamento do índice
espiritual das multidões"), o segundo nas contradições de um sistema.
7 -
RESSALVAS
As
diferenças que aqui tentei mostrar referem-se especialmente aos textos
"ABC do Integralismo", de Miguel Reale, e "O que é o
integralismo" de Plínio Salgado. Gostaria de salientar que não existem
grandes contradições entre os autores, mas, como foi colocado, uma variação no
discurso, ênfases e apelos. Os trechos citados foram extraídos destes livros, e
quis expô-los neste trabalho para ilustrar um pouco a linguagem de cada um.
Acredito
que as diferenças entre as duas grandes figuras da AIB devam-se à formação e ao
papel de cada um dentro da organização. Plínio era o orador, o líder, o
catalisador das paixões do público, público este que era conservador - mesmo
crítico em relação ao sistema vigente -, católico e moralista. Embora Miguel
Reale também se dirija ao público - ambos abrem seus trabalhos com uma menção
ao povo, para quem escrevem - ele não era o catalisador, o aliciador, aquele
que deveria incendiar os militantes e convencer os não militantes a se
engajarem no movimento. Ele era o explicador, o que tinha idéias mais precisas
a respeito do que e como fazer. Ele não deixa de ser, de forma alguma, cristão
ou moralista, mas desloca o foco das explicações e conceituações para um campo
mais lógico e concreto.
8 -
CONCLUSÃO
O
integralismo foi talvez o primeiro movimento político organizado do Brasil
urbano. Polêmicas à parte, o que percebemos ao ler os textos de Plínio Salgado
e Miguel Reale é um interesse em fazer do povo uma nação, projeto que com
certeza não era exclusivo dos integralistas, mas que não se pode nem ter
certeza, mesmo hoje em dia, se chegou a se concretizar.
A
relevância de estudos que busquem compreender os movimentos políticos
brasileiros e suas propostas não diz respeito apenas à história: está ligada à
formação do fazer política, a compreensão da cultura política e até à constituição
do espaço público no Brasil.
Este
trabalho teve a intenção apenas de propor algumas questões sobre a popularidade
do integralismo e contrapor duas figuras emblemáticas do movimento, apenas
apontando possíveis caminhos para futuras reflexões.
Notas
1 Essa
participação não quer dizer, entretanto, um engajamento efetivo da população.
Quis apenas salientar que, em um país em que tradicionalmente a política não
deixava os gabinetes, foi uma novidade um movimento que levava o discurso
político para as ruas.
2 Não
gostaria aqui de entrar na discussão a respeito das diferenças entre o
totalitarismo alemão (nazismo) e os outros movimentos de extrema direita
europeus. Para todos os efeitos, o ponto comum é o nacionalismo, e não o
racismo e o nacionalismo tribal que seriam elementos da experiência mais
radical entre todos os movimentos do período.
3 The birth of fascist ideology, 1994:
Princeton University Press _ West Sussex, UK.
4 Estas
oligarquias sentiam-se lesadas pela forma com que a República funcionava,
dominada por um grupo fechado dentro da própria elite, e onde os estados tinham
uma autonomia que na verdade era uma fachada para o favorecimento dos estados
mais fortes da União.
5 Mesmo nos
países menos industrializados, como na península ibérica, as classes do mundo
capitalista, urbano, estavam mais bem delineadas do que no Brasil.
6 Mesmo em
países da Europa Central, recentemente livres de impérios onde as instituições
políticas democráticas não funcionavam e na prática uma burocracia autoritária
governava, fazia sentido uma oposição à democracia liberal porque este era o
sistema predominante nos países que eram vistos como inimigos. Além do mais, a
tentativa de impor estruturas típicas da democracia em países criados depois da
Primeira Guerra, países estes que mal tinham condições de se tornarem
Estados-Nações, só poderia ter acirrado a animosidade contra estas estruturas.
7 De acordo
com Sternhell, op.cit.
8 Boas ou más intenções não estão em discussão no
presente texto. Gostaria apenas de ressaltar que o integralismo aglutinou um
grupo de pessoas bastante heterogêneo, de conservadores católicos à artistas
influenciados pelo niilismo, de operários inexperientes em política e
organização à oportunistas de plantão.
9 Sociedade
de estudos políticos.
BIBLIOGRAFIA
REALE,
Miguel. "ABC do Integralismo", in Obras Políticas (1931/1937),
Brasília: Editora Universidade de Brasilia, 1983.
SALGADO,
Plínio. O que é o Integralismo. Rio de Janeiro: Schmidt Editora, 1933.
STERNHELL, Zeev _ The birth of fascist ideology,
Princeton University Press, West Sussex, UK; 1994.
TAVARES,
José Nilo. "Conciliação e radicalização política no Brasil".
Petrópolis: Editora Vozes, 1982.
TRINDADE,
Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo:
Editora Difel, 1979.
Resumo:
O texto discute algumas razões para que o integralismo fosse adotado por
representantes de variados setores da sociedade brasileira que se encontravam
insatisfeitos com a República Velha. Contrapõe também duas personagens fundamentais
do movimento (Plínio Salgado e Miguel Reale) e a forma com que se dirigiam aos
seus seguidores.
Palavras-chave:
Integralismo, anos 30, autoritarismo, AIB.
* A
versão original do presente texto, aqui modificada, foi apresentada como
trabalho do curso ministrado no mestrado de Ciência Política do IFCS, pelo
professor Aluizio Alves Filho, no primeiro semestre de 2002.
** A Autora
é mestranda de Ciência Política do PPGCP/IFCS/UFRJ.