VITIMIZAÇÃO CARCERÁRIA: Propostas e alternativas* 

 

Edna Del Pomo de Araújo**

  

         Muito se tem escrito sobre a crise do sistema penitenciário e a falência da pena de prisão; parece que já há um consenso a respeito. É extremamente sério o atual quadro do sistema prisional, caracteristicamente criminalizante e que atua no contexto de um conjunto arcaico onde subsiste uma escola para  a reprodução  do crime.  Na prática, apenas segrega, temporariamente o condenado, pela ótica exclusiva da repressão.  As conflitantes metas  punir, prevenir e regenerar não alcançam os fins a que se propõem. Porém, é preciso enfatizar que o problema se agrava quando se expõe uma crise sobre outra crise pois nos países latino-americanos com sérios problemas econômicos e sócio-políticos, a prisão torna-se objeto de urgente e indispensável intervenção. Isto porque a seletividade do sistema penal se exerce, majoritariamente, sobre as populações menos favorecidas econômica e socialmente, bastando conferir com os dados do Censo Penitenciário Nacional:  95% da clientela do sistema são de  presos pobres [1].Somando-se aos problemas decorrentes da superpopulação carcerária (causada principalmente pela inoperância tolerada do Estado) e dos fenômenos da prisionização e estigmatização do preso e do ex-preso (quando de seu retorno à comunidade livre), temos em nosso atual sistema penitenciário, centrado na pena de prisão em regime fechado,  uma das mais cruéis vitimizações praticadas  com  aval  institucional. 

         Pobres, prisionizados e com o estigma da lei penal, que lhe dificulta cada vez mais a reinserção social (na realidade a própria inserção social pois de fato nunca foram  socializados) o ex-preso dificilmente fugirá de comportamentos considerados ilícitos como estratégia de sobrevivência, engrossando o círculo perverso da reincidência  criminal que já atinge a cifra média de  85% no país. É importante frisar que  toda a sociedade se vitimiza com a reincidência criminal na medida que se ressente da  violência praticada pelo ex-preso.  

         Mas além de ineficiente, o sistema penitenciário brasileiro é caro, muito caro. Onera o contribuinte, sem nenhum retorno positivo.  O custo médio para a manutenção do preso no Brasil é de 3,5 salários mínimos por mês [2].

         É aí que se enquadra uma das maiores contribuições das “penas restritivas de direitos” ··, as chamadas “penas alternativas” que, além de evitar que o condenado sofra um processo de prisionização  (que o tornará incapaz para a convivência na comunidade livre), oferece uma real perspectiva de  reeducá-lo para o convívio social, além de propiciar uma reparação à sociedade  principalmente através das “penas de prestação de serviços à comunidade”.  Trata-se de um dispositivo legal da maior importância e que já deveria ser reconhecido  como a pena mais praticada no país ante não só a falência da pena de prisão mas principalmente, tendo em vista  as características dos crimes mais penalizados e que constituem a grande massa de nosso sistema penal. 

         Sem querer aprofundar na defesa das chamadas “penas alternativas”, observa-se que já  há uma  aceitação entre os magistrados de que elas representam uma saída para evitar os malefícios da cultura prisional mas, por que ela ainda é tão pouco aplicada?  O que a maioria dos Juizes Criminais relatam é o receio da impunidade tendo em vista  a inexistência de um órgão idôneo para a sua fiscalização. Isto significa dizer que se teme que não haverá o correto cumprimento da lei pois não existe um órgão controlador e fiscalizador previsto na legislação penal para as “penas alternativas”. Uma solução poderá ser a preconizada pelo Dr. José Carlos Maldonado de Carvalho, ex-Juiz Titular da Vara de Execuções Penais do Estado do Rio de Janeiro (VEP) que, com a experiência de quem foi Titular da 1° Vara Criminal de Niterói, responsável pela instalação do 1°  Conselho da Comunidade entre as  Comarcas  do interior, sugere que os Conselhos da Comunidade (art. 80 da LEP) possam acompanhar e fiscalizar o cumprimento das “penas restritivas de direitos de sua Comarca.  De fato, viabilizando a aplicação das sanções alternativas, o Conselho da Comunidade estaria impedindo que se mandasse para a prisão infratores primários, ainda perfeitamente recuperáveis, evitando o contágio da prisionização, além de criar reais possibilidades da efetiva reabilitação do infrator pela responsabilidade (e não pelo castigo).  E quem melhor que a própria comunidade, através de seus órgãos representativos e, em consonância com o art. 4 da LEP que recomenda que “o Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena”, poderia contribuir para propiciar uma efetiva possibilidade de reintegração social  daqueles submetidos a uma sanção penal? As experiências de instalação dos Conselhos da Comunidade, sinalizam uma ampla e positiva participação da sociedade civil organizada que, quando convocada  (sem objetivos políticos partidários), se motivam e apresentam soluções viáveis para uma proposta de parceria com os poderes  Judiciário e  Executivo na questão penal [3].

         Já vimos que o perfil sócio-econômico da  população penitenciária é de presos absolutamente pobres, portanto já vitimizados socialmente antes mesmo de ingressarem no sistema penal. Como parte integrante deste quadro, o nível educacional dos presos é extremamente baixo, indicando uma total ausência de oportunidades de estudo quando de  seu  ingresso  no  sistema. Assim, de acordo com o  Censo  Penitenciário  Nacional de  1994, no Brasil 12,30% dos presos são  analfabetos,  7.62% são alfabetizados, 54.63%  possuem até o 1° grau incompleto e 12,67% possuem o 1° grau completo [4].

Tendo em vista que não há nenhuma modificação deste contexto no decorrer do período de internação do apenado, se exerce aqui também  uma vitimização do condenado através da manutenção da ignorância. Muito útil por sinal, não só no período da prisão,  evitando  que o condenado questione as diversas violações de seus direitos a que é submetido durante o período de encarceramento,  como após o término  da  prisão,  uma das velhas formas de controle social. 

Entretanto, curiosamente a legislação penal acompanha a Constituição, que prevê como direito de todos o acesso à educação formal - 1° grau - indo mais além ao  abranger o ensino profissionalizante. Assim é que a LEP, na Seção V do capítulo II, art. 17, determina que “A assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado.” Mais recentemente, de acordo com as “Regras mínimas para o tratamento do preso no Brasil”, publicado em janeiro de 1995, em consonância com o que determinou o Comitê Permanente de Prevenção do Crime e Justiça Penal das Nações Unidas - do qual o Brasil é membro - na Sessão de maio de 1994 em Viena, na Áustria, determina em seu capítulo XII que: 

art.38. A assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso.

 art.39. O ensino profissional será ministrado em nível de iniciação e de aperfeiçoamento técnico.

art.40. A instrução primária será obrigatoriamente ofertada a todos os presos que não a possuam.

Parágrafo Único. Cursos de alfabetização serão obrigatórios e compulsórios para os analfabetos" [5].

Significa dizer uma política penitenciária voltada para a habilitação e conseqüente profissionalização, criando no interno bases para uma sobrevivência sadia e sem vícios. Em lugar do ambiente hostil, de aviltamento da pessoa humana,  o exemplo e a motivação para o desenvolvimento pessoal como parte integrante do processo educativo. 

Também o trabalho do preso deveria ser encarado como alicerce para uma futura profissionalização, ao contrário do “faxina”  criado para servir de forma humilhante a autoridade local, que degrada e induz a corrupção. Ou nas primorosas palavras do Dr. Pedro Demo, sociólogo e ex- Secretário dos Direitos da Cidadania e Justiça do Ministério da Justiça, em seu exemplar artigo sobre política penitenciária, “Não cabe o trabalho apenas como passa-tempo, faz-de-conta, porque não é pedagógico. Pedagógico é o trabalho que fundamenta a dignidade da pessoa como ente capaz de prover sua subsistência com autonomia e criatividade. É essencial que o preso tenha a experiência construtiva de que é possível e sobretudo digno sobreviver sem agredir os outros, por conta da capacidade própria  de encontrar soluções adequadas.[...] Isto quer dizer que o trabalho precisa representar atividade digna para fundar a dignidade da cidadania de alguém que encontra aí ocasião e motivação para mudar de vida.” 

Infelizmente  a lei existe apenas no papel pois a prática  consentida pelos poderes Executivo e Judiciário, viola e subverte constantemente a própria legislação penal. Por outro lado, sempre com a justificativa da falta de verbas, muitos projetos viáveis e de custo bem  acessíveis, não são implementados com a constante desculpa que as prioridades das verbas são para as construções das prisões e penitenciárias. Levando-se em conta o alto custo de uma penitenciária  orçada em  15 milhões de dólares [6] que atende apenas uma pseudo-satisfação à sociedade tendo em vista seu absoluto fracasso, é mister perguntar a que interesses servem  os gastos para a manutenção de uma política pública já tão desacreditada e ultrapassada. À sociedade deve-se uma satisfação que justifique projetos e políticas públicas que apontem para uma efetiva recuperação do condenado e não simplesmente o aumento do número de vagas nas penitenciárias que serve somente para justificar gastos públicos e incentivar a ótica prisional  da segregação tipificada de certos grupos sociais. Igualmente vítima se torna o contribuinte que financia um falido sistema carcerário e sua alta manutenção,  onde além de não atingir os objetivos a que se propõe,  só favorece o constante aumento da criminalidade. 

Ao se abordar algum aspecto do processo de vitimização dos presos pelo sistema penitenciário, não se pretende desviar o enfoque para esconder a violência dos atos praticados pelos condenados (discurso retórico que se ouve quando se expõem  as constantes violações dos direitos humanos mínimos do preso)  e sim para enfatizar que a “recuperação”  ou “ressocialização” do infrator só será de fato alcançada quando este se integrar no sistema social. Aí sim, tornando-o produtivo econômico e socialmente  poder-se-á pensar na melhor forma  de ressarcimento do dano causado à comunidade além de,  sem sombra de dúvida, ser a melhor satisfação que os órgãos públicos poderiam prestar  à  sociedade  com relação aos recursos investidos. 

Deixando de lado considerações críticas sobre o próprio conceito de “ressocialização”,  não se pode, ao mesmo tempo, segregar  pessoas e obter sua reeducação,  numa lógica absurda de confinar para reintegrar. Muito mais que o ideal  de “ressocialização”, que pressupõe a ideologia do tratamento, deve se substituir pelo conceito de reintegração social (ou quem sabe de integração?) onde há a suposição de um processo de comunicação entre a prisão e a sociedade, objetivando uma identificação entre os valores da comunidade livre com a prisão e vice-versa. Neste sentido e visando alcançar uma eficaz integração social daquele que foi condenado a uma sanção penal, torna-se imprescindível uma maior aproximação e conseqüente envolvimento da comunidade na busca da solução de seus conflitos sociais. E a participação da sociedade civil organizada, rompendo as grades das ilegalidades cometidas atrás dos muros da prisão, sem dúvida traria maior transparência e responsabilidade àqueles que detêm o poder de “custodiar” o próprio homem. 

Oportuno citar o Trabalho apresentado em 1992 pelo “Instituto das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente na América Latina” (ILANUD), cujo título é “Sistemas Penitenciarios y Alternativas a la Prisión en América Latina y el Caribe”, escrito por diversos professores da mesma  região, onde o prof. Luis Rodriguez Manzanera, do México, conclui vinte e tres Recomendações referentes aos países da América Latina, dentre as quais é importante citar pelo menos três:      

“n. 6- A execução penal deve abandonar os critérios retributivos para optar pelos de  prevenção ;                                                    

n. 16- Se deve dar maior arbítrio aos juizes, para que possam aplicar um amplo sistema de penas alternativas;

n.23-Se recomenda a colaboração de toda coletividade na solução do problema penal e penitenciário, para o qual deve-se fazer um programa de informação e sensibilização. Deve-se tentar o uso de voluntários nos programas de liberdade vigiada, assim como obter a cooperação dos centros sociais ou de instituições de ensino para  substitutivos de controle e serviços em favor da comunidade" [7].

Em síntese, algumas premissas poderiam ser adotadas para se evitar uma vitimização pelo sistema carcerário brasileiro: 

1- Incentivo à adoção da “pena alternativa” como medida de prevenção vitimológica:
Pena Alternativa => evita a prisionização e conseqüente vitimização do preso => reintegração social => evita a reincidência criminal => evita a vitimização da comunidade

2- Incentivo à criação de Conselhos da Comunidade pelos Juizes de todas as comarcas, principalmente com a orientação de acompanhar e supervisionar a aplicação das “penas de prestação de serviços à comunidade”

3- Incentivo à adoção de projetos que viabilizem a formação educacional e profissional do encarcerado, notadamente aqueles que contam com o apoio de instituições de ensino como as universidades, propiciando a participação de estagiários-estudantes no programa

4- Incentivo à adoção de projetos que viabilizem a profissionalização do encarcerado, notadamente aqueles que contam com o apoio da iniciativa privada, propiciando uma remuneração justa e digna

5- Incentivo à adoção  de projetos sociais em parceria com a comunidade, propiciando o envolvimento da sociedade civil  organizada  na busca de soluções para a problemática penitenciária.

 


Notas

 

[1] Cf. ítem 36: Nível sócio-econômico da clientela dos sistemas; Censo Penitenciário Nacional 1994; Ministério da Justiça/Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, 1994, p.65.

[2] Cf. ítem  34: Custo médio de manutenção do preso; opus cit., p. 63.

[3] Sobre o tema ver:  Edna Del Pomo de Araújo. Conselho da Comunidade: a participação da comunidade na execução da pena; In,   Déa Rita Matozinhos  (org). Execução Penal: Estudos e Pareceres. Editora Lumen Juris,1995, págs. 95-113.

[4] Cf. ítem  23: Presos por grau de instrução; opus cit., págs. 43-45.

[5] Ver “Regras mínimas para o tratamento do preso no Brasil”, Ministério da Justiça/Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária; 1995, págs. 25-26.

[6] OLIVEIRA, Edmundo. “O Censo Penitenciário e a Crueza Existencial das Prisões no Brasil”. Ministério da Justiça/ Conselho    Nacional de Política Criminal e Penitenciária. 1993, p. 13.

[7] CARRANZA, Elias; HOUED, Mario; LIVERPOOL, Nicholas J. O.; MORA, Luis P.; MANZANERA, Luis Rodriguez. “Sistemas  penitenciários  y alternativas  a  la prisión  en  América Latina y el Caribe”. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1992, págs. 80-83.


REFERÊNCIAS  BIBLIOGRAFICAS:


CARRANZA, Elias; HOUED, Mario; LIVERPOOL, Nicholas J. O,; MORA, Luis P.; MANZANERA, Luis Rodriguez - SISTEMAS PENITENCIÁRIOS Y ALTERNATIVAS A  LA  PRISIÓN  EN  AMÉRICA   LATINA   Y   EL   CARIBE.

Legislação Brasileira -  CÓDIGO PENAL

MATOZINHOS e outros - EXECUÇÃO PENAL : Estudos e Pareceres

Ministério da Justiça - CENSO PRNITENCIÁRIO  NACIONAL 1994

Ministério da Justiça - O CENSO PENITENCIÁRIO E A CRUEZA EXISTENCIAL DAS  PRISÕES  NO  BRASIL

Ministério da Justiça - REGRAS MÍNIMAS PARA O TRATAMENTO DO PRESO NO   BRASIL

Ministério da Justiça - REVISTA DO CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL  E  PENITENCIÁRIA, v. 1, n. 1

 

Resumo: O presente artigo busca analisar a crise do sistema penitenciário vigente no país em face a sua inadequação à realidade sócio-econômica que é caracteristicamente criminalizante e que atua no contexto de um conjunto arcaico onde subsiste uma escola para  a reprodução  do crime.  Na prática, apenas segrega, temporariamente o condenado, pela ótica exclusiva da repressão.

 

Palavras-chave: sistema penitenciário, inserção social, socialização, penas alternativas.

 

*Parte deste artigo foi publicado com o título “Vitimização Carcerária: Uma visão sociológica”, no livro

Vitimologia em Debate II. Rio de Janeiro: Editora Lumen  Juris Ltda, 1997. 202 págs.

 

**A autora é socióloga, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense e membro do  Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro (1991-1995). E-mail: ednadel@vm.uff.br.

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