OS NOVOS MOVIMENTOS DE CLASSE: REFLEXÕES E INTERROGAÇÕES SOBRE A ORGANIZAÇÃO  POLÍTICA E SINDICAL DOS TRABALHADORES BRASILEIROS

 

Jefferson Davidson Dias de Moura* 

 

1. Introdução

 O artigo ora apresentado é fruto da pesquisa e das reflexões realizadas a partir da elaboração da dissertação [1] defendida na conclusão do mestrado na Faculdade de Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, como parte do esforço em contribuir na qualificação da intervenção no movimento social e sindical.

 A análise e as discussões partem, dos aqui chamados “novos movimentos de classe" [2]. Busca-se articular elementos, que visam demonstrar o papel dos sujeitos organizados na luta por uma contra-hegemonia no campo das ações políticas, de organização da classe e no campo da gestão econômica em meio a uma conjuntura, em que o movimento sindical constituído, bem como, os partidos de esquerda organizados parecem não dar conta de responder.

 Como referência às novas ferramentas de lutas em construção, são consideradas as experiências do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) [3], do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) [4] e do Movimento Terra Trabalho e Liberdade (MTL) [5].

 A hipótese central passa por reconhecer, a incapacidade de parte dos segmentos organizados em incorporar os novos sujeitos, expressão real da classe trabalhadora, somada aos limites impostos pela agenda do novo liberalismo, que criou bases objetivas para novos protagonistas nas lutas políticas brasileiras.

Os novos sujeitos e as bases objetivas, sob as quais se constituem são expressão das contradições do “novo liberalismo”. A mundialização do capital (Chesnais, 1996) e a reestruturação produtiva [6] marcam o compasso das tentativas de superação da dinâmica de desacertos estruturais do capitalismo. A reflexão sobre a dinâmica de implementação do projeto neoliberal, por um lado; e a discussão de um projeto estratégico de transformação societária, que abarque o conjunto da classe trabalhadora, por outro, são parte dos problemas que se colocam ao movimento dos trabalhadores.

 A reflexão sobre o processo de organização dos trabalhadores passa pela realidade objetiva que os integra: precarizados e desempregados da cidade, sem-terra e sem-emprego do campo, indicando um quadro político-social, em que a classe trabalhadora define-se de forma diferente daqueles trabalhadores que, em fins de 1970 iniciavam as greves em São Bernardo do Campo.

 2. Os novos movimentos de classe e as transformações no mundo do trabalho

 Pode-se concluir que os novos movimentos de classe se apresentam e afirmam-se em meio às transformações no mundo do trabalho. Os impactos sócio-econômicos e a reestruturação produtiva transformam objetivamente a classe trabalhadora e essas mudanças na configuração da classe trazem novos desafios à sua organização política coletiva.


Uma dinâmica mundial, que no caso brasileiro — centro da análise apresentada — se desenvolverá de forma mais evidente a partir da década de 1990. A expansão do desemprego e o crescimento da miséria, que atinge milhões de trabalhadores representam um quadro novo inaugurando uma conjuntura de crise e explosões sociais. Neste contexto, observa-se o início de experiências de luta e organização política, de “novos movimentos de classe”, que se constituem em organizações de massa ao articular a luta pela sobrevivência imediata dos trabalhadores, com um projeto político estratégico de transformação societária. Esses movimentos expressam a realidade em que vivem os trabalhadores precarizados, os desempregados, os sem teto e sem terra.

 Os novos movimentos se constituem a partir das especificidades do desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Diferente do modelo “clássico” europeu ocidental, já em sua origem o capitalismo brasileiro apresenta, a combinação de formas não capitalistas de produção associadas ao capital internacional. A passagem da fase mercantil, agro-exportadora, para a fase de industrialização nacional traz a marca da “modernização conservadora” definida por Fernades (1977). 

Como expressão sócio-histórica das contradições do capital e diante das transformações no “mundo do trabalho”, os novos sujeitos se manifestam apresentando-se como parte da classe trabalhadora. Esses trabalhadores expressam as relações sociais constitutivas no capitalismo nesse início de século. Obrigados a vender sua força de trabalho sob condições, que em geral mal possibilitam a reposição do necessário à sua subsistência, desprovidos de direitos, contraditoriamente são cada vez mais parte ativa da produção capitalista. Ao contrário das análises centradas exclusivamente no proletariado industrial fabril, que afirmam a redução da classe trabalhadora, ao se considerar a extensão da proletarização e a expansão do exército industrial de reserva - EIR, se constata sua ampliação no Brasil e no mundo. 

O fato de que contingentes cada vez maiores estejam submetidos a condições de trabalho precárias, temporárias ou sem nenhum trabalho, não significa que estejam excluídos da produção e reprodução do capital. Expressão da classe trabalhadora, esses homens e mulheres, na cidade e no campo, anônimos nas estatísticas oficiais e nos exercícios de econometria, são parte integrante do sistema do capital. 

Partindo da sua condição fragmentada e da inserção precária na produção capitalista, esses trabalhadores afirmam-se e começam a dar voz à suas reivindicações. Os “excluídos” [7] portanto, não estão fora do sistema, não estão fora da lógica de acumulação capitalista. Em sua maioria são uma fonte de reserva de força de trabalho para o capital. São responsáveis por suprir as necessidades eventuais de maior ingresso de trabalho vivo na produção, bem como, por determinar a possibilidade de níveis salariais rebaixados garantidos pela pressão do desemprego em massa. 

Como resistência os trabalhadores se organizam, a luta dos movimentos pela reforma agrária, dos desempregados, dos sem teto e tantos outros indica as mudanças em curso. Ao entrarem em cena, esses sujeitos trazem à tona aspectos do capitalismo, que desnudam o agravamento da questão social. 

As novas ferramentas de luta, apresentadas como parte do processo de reorganização dos trabalhadores, tem a especificidade de articular a luta por uma contra-hegemonia no campo das ações políticas, de organização da classe e no campo da gestão econômica. Os novos movimentos de classe desenvolvem uma luta de novo tipo. Suas bandeiras vão ao encontro da formação de um projeto coletivo não corporativo. Ao integrarem distintos segmentos da classe trabalhadora, unificados na luta por condições mínimas de vida pautam uma dinâmica de reivindicações, que em geral, supera os limites do movimento sindical e dos partidos vinculados aos projetos de esquerda na atualidade. 

Ao se afirmarem, os novos movimentos de classe possibilitam a construção de outras ferramentas, para a formação de uma referência coletiva transformadora. Ferramentas estas, capazes de dotar as organizações dos trabalhadores na sociedade civil de uma política, que englobe as dimensões sócio-econômicas e culturais e resgate um projeto de sociedade sem exploradores e sem explorados. 

3. Desemprego e a luta pela terra, solo fértil para os novos movimentos de classe 

A realidade brasileira apresenta os resultados das políticas previstas na agenda do novo liberalismo. As transformações que vêm “impactar” o mundo do trabalho refletem-se diretamente sobre os trabalhadores. O quadro apresentado no cenário mundial gera uma conjuntura de “exclusão” de direitos e de possibilidades de vida digna para os trabalhadores. Esta realidade se constitui sob as novas bases do desenvolvimento capitalista, inevitável, segundo seus ideólogos. Trata-se de uma dinâmica que na prática visa submeter de forma ainda mais subserviente os trabalhadores ao julgo do capital. 

São os trabalhadores temporários, contratados sob regimes precários, os que conformam quase metade da força de trabalho brasileira. Esta imensa parcela da força de trabalho não está integrada ao mercado formal de trabalho. O número de trabalhadores precarizados, sem direito algum, cresce em escala geométrica rebaixando ainda mais os custos de produção. 

Desse modo, os trabalhadores redefinem sua condição de classe diante do capital mundializado. As contradições sociais transformam e modificam a classe trabalhadora, fazendo emergir novos sujeitos e novas lutas. Esses novos sujeitos, possuidores apenas de sua força de trabalho, submetidos à espoliação e abandonados por todos, começam a perceber seus interesses comuns. Nesse processo, a luta pela sobrevivência unifica e dá sentido à sua condição de classe. 

As condições econômicas transformaram, em primeiro lugar, a massa do povo em trabalhadores. A dominação do capital sobre os trabalhadores criou a situação comum e os interesses comuns dessa classe. Assim, essa massa já é uma classe em relação ao capital, mas não ainda uma classe para si mesma. Na luta, da qual indicamos apenas algumas fases, essa massa se une e forma uma classe para si. Os interesses que ela defende tornam-se interesses de classe. (Marx, 1982:05) 

Para entender a classe trabalhadora que se apresenta de modo ampliado formada por aqueles que necessitam vender sua força de trabalho para sobreviver, é necessário compreender que esta, se complexificou muito mais desde a predominância do taylorismo e do fordismo (Antunes, 1999). 

Contudo, a fragmentação do processo de trabalho na atual fase da produção não possibilita a unificação da classe em si em um projeto de classe comum para si. É preciso se levar em conta, o papel da experiência de lutas como um elemento determinante na conformação da classe e de sua afirmação coletiva, portadora de um projeto também coletivo, assim algumas pistas poderão ser percebidas nas novas lutas que estão se construindo. 

Contraditoriamente, se do ponto de vista dos processos de trabalho, a classe trabalhadora perde a unidade, sob o ponto de vista da produção, da valorização do capital, a classe se afirma. O trabalho diante da reestruturação produtiva apresenta-se mais fragmentado. As plantas produtivas mundiais permitem a produção de módulos e componentes em vários países, utilizando-se da força de trabalho e dos recursos naturais de acordo com seus interesses imediatos. Em contra-partida, os vários sujeitos envolvidos na produção, apesar das características e especificidades locais se unificam como produtores. 

As lutas abraçadas por este segmento se universalizam ao representarem um embate direto com os interesses do capital. Ainda que com programas e táticas diferenciadas, pode-se perceber em várias partes do mundo a afirmação de movimentos políticos desafiando os regimes neoliberais. De acordo com Petras (2000): 

Esses novos movimentos políticos, como o EZLN no México, o MST no Brasil, as FARC na Colômbia, os movimentos de camponeses-índios no Equador, na Bolívia e no Paraguai, estão desafiando abertamente os regimes neoliberais e seus patrocinadores imperialistas.(2000:56). 

A radicalidade da luta e as requisições que se colocam no dia-a-dia dessas organizações fazem com que elas assumam uma práxis que busca outra forma de organização social. É um desafio presente a tarefa de construir ferramentas orgânicas de intervenção na luta social, que articule os diversos sujeitos e amplie os espaços de intervenção, transformando as lutas específicas em programas políticos coletivos. Segundo Petras: 

A Velha Esquerda dos anos 70 e 80, atolada em disputas eleitorais e na acomodação social-liberal ao status, mostra pouca imaginação e menos audácia para organizar uma ruptura radical com o sistema, apesar de seu colapso. (....) O problema fundamental é transformar movimentos setoriais em formações políticas nacionais capazes de transformar lutas regionais em revoluções sociais. (2000:58)
 

Ao romperem com o corporativismo e o economicismo predominantes no movimento sindical e nos partidos “tradicionais” da classe trabalhadora, essas organizações inovam e resgatam as potencialidades e a atualidade do partido de novo tipo, como ferramenta imprescindível para a luta pela construção de uma nova sociedade. Elas já expressam, em seu programa e em suas ações, a tentativa de junção da luta imediata com um programa de unificação e ação conjunta para a construção de uma nova sociedade. Valendo-se também da disputa institucional afirmam uma nova realidade que demanda novas ferramentas de luta e reflexões.

 

Esses elementos brevemente traçados servem menos para discutir o passado e mais para pensar o futuro. Os novos movimentos sinalizam que há energia para a gestação de um projeto revolucionário de massas no Brasil. Demonstram o caminho para os trabalhadores brasileiros construírem uma alternativa de vida e de concepção de mundo vislumbrando um outro projeto societário. 



Notas

[1] A Dissertação: “Os novos movimentos de Classe: reflexões sobre a organização política da classe trabalhadora brasileira”, foi defendida e aprovada em fevereiro de 2004.

[2] Diferenciando-se dos movimentos sociais stricto sensu, das organizações não governamentais (ONGs), do sindicalismo e da maioria das experiências dos partidos constituídos até então, esses movimentos representam o início de uma dinâmica de organização da classe trabalhadora, ainda embrionária, mas que sinaliza grandes possibilidades.

[3] A formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, inicia-se ao final dos anos setenta e se desenvolve na década de 1980. Em setembro de 1979 no município de Ronda Alta, Rio Grande do Sul começam as discussões para formação do movimento ( Fernandes, 2001). No início da década de 1980, articula-se o Movimento. Seu encontro nacional de fundação foi em janeiro de 1984, em Cascavel, Paraná.

[4] O MTST, vem sendo estimulado pelo MST e tem sido um pólo de organização de trabalhadores urbanos.

[5] O MTL foi fundado em 2002, aglutinando dois movimentos nacionais de luta pela reforma agrária, MLST e MT, (in Fernandes 2001) e uma corrente de luta política e sindical oriunda do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). (Ver mtl.org.br).

[6] Em relação ao entendimento do conceito de reestruturação produtiva, vale ressaltar o apresentado por Ramalho e Santana (2003): “Faz-se necessário um alerta quanto ao uso extensivo do termo reestruturação produtiva, que se refere a uma diversidade de processos e muitas vezes acaba por não servir como categoria explicativa. Estamos usando o termo com o cuidado de indicar um conjunto importante de mudanças, mas também considerando que essas mudanças adquirem formatos diferentes a partir das diversas realidades, históricas e conjunturais às quais estão associadas.”

[7] Contraditoriamente ao aumento da miséria, a expansão da proletarização sob os setores médios, a fragmentação da classe trabalhadora vinculada à indústria e a expansão do exército industrial de reserva, com o desemprego em massa, um contingente de milhões de trabalhadores, uma massa de trabalhadores excluída de direitos, mas incluída no processo de produção se expande.

Referências Bibliográficas


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RAMALHO, José Ricardo. Precarização do trabalho e impasses da organização coletiva no Brasil, In: ANTUNES, Ricardo (org.) Neoliberalismo, trabalho e sindicatos. 3 ed. São Paulo: Boitempo, 1999.

  

Resumo: Os novos movimentos de classe e as transformações no mundo do trabalho. Desemprego e a luta pela terra.

 

Palavras-chave: novos movimentos de classe, novos sujeitos políticos, sem terra, organizações de massa.

 

*O autor é sociólogo e doutorando na Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente, é Coordenador Nacional do “Movimento Terra Trabalho e Liberdade” – MTL.

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