INDIGENTES, INVISÍVEIS E DESQUALIFICADOS: UMA
ANÁLISE DO ROMANCE PEDRO PÁRAMO, DE JUAN RULFO
Paulo Baía *
Um
conjunto significativo de obras literárias latino-americanas, produzidas a
partir da década de 50 do século XX, tem elaborado um texto narrativo que faz
da escrita uma representação quase que mimética da realidade social, tornando-os em semi-etnografias ou reportagens romanceadas.
Entretanto, a principal marca de criatividade, originalidade e inovação desta
tendência literária de forte conotação social tem sido a presença nos textos,
nas narrativas, de uma alegorização da realidade
cotidiana, que irrompe, de maneira desconcertante, nas tramas e nos enredos dos
textos, gerando um efeito de alforria nas narrativas, livrando-as das
impregnações ideológicas que marcaram o estilo realista do século XIX, o
realismo socialista dos anos 30 e 40 do século XX e as variadas formas de
regionalismo engajado, também da primeira metade do século passado.
Este
artigo tem por objetivo promover uma reflexão sobre a literatura de Juan Rulfo em sua novela Pedro Páramo,
procurando compreender os múltiplos descaminhos e trilhas utilizadas pelo autor
para produzir uma representação das sociedades latino-americanas em geral, e da
sociedade mexicana em particular, na qual ele apresenta um contexto temático do
mundo rural ibero-americano; e, atribui à sua narrativa um compromisso de
revelações, conferindo vozes aos recalcados pela dominação repressiva dos
discursos sociais, políticos, culturais e ideológicos europeizantes.
Em Pedro
Páramo, Juan Rulfo
busca uma forma especial e particularizada de compreender a totalidade das
sociedades colonizadas na América Latina, estabelecendo na escrita um
procedimento de identificação individual e social, em uma sociedade que tem, no
conjunto de suas redes de sociabilidade, uma característica já quase que
ficcional na investidura de seus entes enquanto atores sociais. Em Pedro Páramo, toda semelhança aponta para a aproximação da
história social com a ficção na América Latina.
Partindo
da premissa expressa no livro Sociologia do Romance, de Lucien Goldmann, de que
“o romance é,
necessariamente, biografia e crônica social, ao mesmo tempo; fato sobremodo
importante, a situação do escritor em relação ao universo que ele criou é, no
romance, diferente da sua situação em relação ao universo de todas as outras
formas literárias. A essa situação particular chama Girard humor; Luckács, ironia. Ambos estão de acordo em que o
romancista deve ultrapassar a consciência de seus heróis e que essa superação
(humor ou ironia) é esteticamente constitutiva da criação romanesca” (GOLDMANN,
1967, pp. 12-13).
A
novela Pedro Páramo, do escritor e intelectual
mexicano Juan Rulfo, publicada pela primeira vez em
1955, traz as características apontadas por Goldmann,
acrescidas de um universo simbólico e afetivo que promove uma arqueologia de
desejos, sonhos, medos e imaginário, do próprio escritor e da memória social
dos povos latino-americanos.
Juan Rulfo nasceu em 16 de maio de 1918, na cidade mexicana de
Acapulco, e vem a falecer em 8 de janeiro de 1986, na cidade do México. Sua narrativa contundente e desconcertante foi definitiva para a
formatação de um estilo original, inovador e criativo, para toda a
literatura e a escrituração da memória social ibero-americana.
Podemos
afirmar, com as devidas cautelas e contextualizações necessárias, que Juan Rulfo, embora tenha publicado diversos contos, como O
Planalto em Chamas em 1953, é autor de uma única obra: a pequena novela Pedro
Páramo, em que, através de uma idéia central
formadora de identidade pessoal para o escritor e social para a sociedade
mexicana, Juan Rulfo povoa o cenário latino-americano
com entes vivos e mortos, mortos e vivos, em uma alternância
de metáforas elegantes e dotadas de sutilezas e nuanças, ancoradas em
incursões à profundeza da alma humana (VILLASEÑOR, 1986).
Em Pedro
Páramo, mais que em qualquer outro texto de Juan Rulfo, estão os fundamentos da narrativa que passa a ser
conhecida e cultivada por diversos outros brilhantes escritores das Américas
como realismo fantástico.
A
narrativa de Pedro Páramo transforma a
escrituração da crônica social, da trajetória de vida de Juan Rulfo e dos imaginários individuais e coletivos das
sociedades latino-americanas, e, de maneira focada, da sociedade mexicana, em
uma “tela” impressionista ao mesmo tempo que
surrealista, pois o estilo narrativo é extremamente visual e cinematográfico.
Tal fato certamente está ligado à perspectiva de Juan Rulfo
como fotógrafo e precursor da sociologia visual e da etnografia fotográfica,
pois ao longo de mais de três décadas, dedicou-se a desvendar, compreender,
analisar e interpretar a história e a cultura dos diversos segmentos da
população mexicana, através de um ousado projeto de registro fotográfico do cotidiano popular, ambiental, arquitetônico e paisagístico do
Estado e da sociedade mexicana (VILLASEÑOR, 1986).
Pedro Páramo é uma novela ou um romance elaborado por
um poeta das lentes, das imagens, poeta este que usa a palavra para fotografar
o inconsciente de sua própria alma e da alma de seus fantasmas, de seus
companheiros, de seus algozes, da sociedade mexicana, da sociedade
latino-americana; e neste ato acaba por produzir uma representação que encaixa
a sociedade brasileira, e particularmente a sociedade carioca, com suas
inclusões, iniqüidades, generosidades, perversidades e, sobretudo, sua
orfandade.
Pedro Páramo traz uma narrativa densa, em que Juan Rulfo arremessa-se ao profundo poço da solidão do ser
humano, engendra uma escalada pelas escarpas de montanhas de esperanças
ausentes, e faz de seus personagens seres que praticamente só existem na
memória social e no imaginário individual, ou, utilizando a expressão de Júlia
Kristeva, “habitantes que povoam o fundo da vida” (KRISTEVA, 1994).
Juan Rulfo, com maestria,
intencionalidade e a ousadia de fazer do onírico realidade,
cartografa as experiências humanas, garimpando
cuidadosamente palavras que são imagens, e, ao mesmo tempo, por serem palavras,
fazem a legenda da visualidade da narrativa, estabelecendo com o leitor um
pacto de amor e ódio, de objetividades e ambivalências. Pois, ao estabelecer
uma narrativa deliberadamente cinematográfica e legendá-la com a criatividade
de um artesão de palavras, ele joga com múltiplas possibilidades de diálogo,
movendo-se em um tempo e espaço ora contextualizado, ora indeterminado e
eterno, ao mesmo tempo em que transita entre a razão de uma realidade histórica
palpável e o desejo e a sedução de um mundo inconsciente, quase fantasmagórico
e atemporal (SANT’ANNA, 1988).
Em Pedro Páramo,
Juan Rulfo descreve um cenário de muitos assombros,
povoado por vultos e seres que sempre emergem e desaparecem em sombras. O
espaço territorial imaginado por Juan Rulfo parece
ser construído por paredes e barreiras translúcidas, como vitrais de igrejas,
que permitem a passagem da luz mas a filtram, pela intencionalidade das cores e
das formas com que o autor constrói o mundo sólido e ambíguo dos personagens de
Pedro Páramo. E, nesta estratégia narrativa, a
palavra e o olho são fundamentais, pois pelo olhar do escritor processam-se as
mortes, as desgraças, as esperanças perdidas, as reminiscências de dor e os
ferimentos sempre abertos, sem, contudo, perder a fé de encontrar suas origens,
e a partir delas, alçar vôo à possibilidade de viver um devaneio de identidade,
definida pela precisão das palavras lavradas pela sensibilidade sintetizadora de poeta.
Juan Rulfo, em Pedro Páramo, abre uma nova perspectiva para a narrativa
ficcional e memorialista da literatura ibero-americana contemporânea. Ele é a
um só tempo sofisticado, rude em sentimentos, virtuoso em estimular desejos
contidos e escondidos em si próprio como escritor, assim como no conjunto de
seus leitores. Rulfo é novelista e romancista, mas é
no exercício do conto que expressa sua vocação de cronista do cotidiano,
historiador e etnógrafo da sociedade latino-americana, pois, de forma curta,
contundente, rápida e surpreendente, elabora uma escrita cujas palavras
adquirem o poder mágico de criar realidades subjetivas ou factuais, sempre em sintonia
com o mundo inconsciente dos desejos dos seres humanos.
Nesse sentido, Juan Rulfo
em Pedro Páramo alcança sua plenitude através
de um romance que tem estrutura de conto e palavras dispostas taticamente de
forma poética, e não em prosa. Essa característica absolutamente inovadora de
Juan Rulfo restaura o universo onírico e imaginário
da poesia de Homero na Grécia antiga, pois essa plenitude é conferida através
de uma linguagem que tem a poesia, e, portanto, a palavra, como principal signo
de construção dos universos sociais, culturais e afetivos. Rulfo
faz a imaginação alçar vôo através da “palavra-fotográfica”, daí seu texto
possuir poucas dezenas de páginas, páginas essas que contemplam a eternidade da
humanidade, a história mexicana e latino-americana em plenitude.
Em Pedro Páramo,
observamos que a poesia não está somente na precisão da linguagem, mas ela dá o
ritmo da ação do romance, no qual Juan Rulfo delimita
um território mítico, onde a realidade é um produto híbrido de fatos e
imaginações, no qual o instinto observador do etnógrafo fotógrafo é conduzido a
produzir uma verdade, e uma magia que se torna verdadeira, e, portanto,
refratária às verificações da retórica cientificista do iluminismo europeu
ocidental; é um território “mágico-realista”, interpretado de forma vivencial por todos aqueles que têm o instinto e os
sentidos de uma poética que se faz verdade pela revelação da palavra, ao lançar
luz às profundezas das almas humanas (FREUD, 1992).
Em Pedro Páramo,
Juan Rulfo modela sua narrativa promovendo um
sintético, porém abrangente, inventário das tragédias dos povos
latino-americanos, e de sua própria tragédia familiar. A obra de Rulfo constitui quase que um texto definidor da herança
social que é legada às sociedades ibero-americanas, cujo principal patrimônio é
a amarga e angustiante vida dos segmentos pobres das populações
latino-americanas. Pedro Páramo imortaliza as
iniqüidades e perversões mais profundas da vida rural das Américas portuguesa e
espanhola, revelando um universo não apenas pobre, mas rude e de violência
enraizada, como condição básica para a sobrevivência. E, neste sentido, as
esperanças de felicidade e melhor vida são antevistas através de frestas das
portas da fantasia do autor e dos povos latino-americanos, e mexicano em
particular.
No México, como na América Latina inteira, aí
incluindo o Brasil, e, em particular, a cidade do Rio de Janeiro, a vida e a
morte e mais, um imenso gradiente de etapas intermediárias entre estar vivo ou
morto, são esfinges assemelhadas dos dois lados de uma medalha da sorte, que
sela e chancela, pela brutalidade da colonização européia, os destinos
individuais e coletivos das sociedades ibero-americanas.
Juan Rulfo, ao traduzir
estes sentimentos em Pedro Páramo, escolhe
palavras apropriadas para configurar uma imagem de cores fúnebres, terríveis e
fantasmáticas de sua terra natal, que é uma síntese de todas as terras tornadas
ibero-americanas pela colonização européia. Aliás, a leitura de Pedro Páramo produz em nossa boca o sentimento de estar
saboreando terra e sangue, fazendo de Rulfo um
precursor qualificado e premonitório do realismo fantástico, que se tornará a
principal marca da literatura latino-americana contemporânea (LIMA, 1983).
Pedro Páramo é uma
novela que trata da vida cotidiana dos pobres mexicanos, mas que se estende aos
pobres paraguaios, argentinos, brasileiros e tantos outros nas Américas e no
continente africano. Contudo, esta novela exorciza qualquer tentativa de
transformar a cultura vivida em manifestação folclórica. Rulfo
não faz concessões, fala dos excluídos, dos indigentes, e seu proselitismo
poético tem como eixo uma ética e uma moral denunciadoras da perversidade das
elites espanholas, portuguesas, latino-americanas, mexicanas e, com efeito,
brasileiras. Entretanto, de forma absolutamente notável, Juan Rulfo afasta-se de juízos de valor. Fotografa, descreve, etnografa e, de posse deste material, promove a narrativa
do seu próprio sofrimento e do sofrimento de seu povo, e, sem tirar os pés do
chão, voa para o imaginário de uma verdade revelada pelo enredo da tragédia
humana (JENSEN, 1992).
Pedro Páramo é uma
novela cuja narrativa representa um ato radical de rompimento com os modelos
tradicionais da escrita ficcional e memorialista de padrões europeus. Nessa
direção, Juan Rulfo toma como parâmetro, que lhe
serve de base para esse estilo de escrita, que a literatura deve desempenhar um
papel político preponderante no processo de reconstrução da identidade das
sociedades colonizadas pelos padrões de dominação cultural e política dos
europeus (SAID, 1998). Rulfo cria a identidade social
mexicana e dos ibero-americanos, e junto com ela, a sua própria identidade
individual, dialogando com os fantasmas opressores do passado, e fazendo um
relato que, no tempo presente indefinido, os exorciza, ao restaurar os liames
com suas origens perdidas e desconfiguradas, rompe
sua orfandade pessoal e a orfandade da população pobre latino-americana.
Juan Rulfo, de forma
genialmente petulante, dá as costas à erudição e às regras literárias da
dominação européia, que ao longo dos anos estigmatizou os atores sociais latino-americanos e afro-descendentes de
forma inferiorizada e dependente; Rulfo, em Pedro
Páramo, promove uma ação libertária e subversiva
em forma de poesia, ao mesmo tempo em que revoluciona o formato literário
latino-americano. Alforria-se a si mesmo e oferece a todas as sociedades
dominadas pelo colonialismo europeu os instrumentos necessários à sua
independência cultural (SAID, 1998).
Juan Rulfo, em Pedro Páramo, faz da palavra um instrumento que tem o poder
de subverter os entendimentos consolidados, e ao mesmo tempo fornece os
elementos necessários para uma nova historiografia, que possa, de forma ousada
e criativa, enfrentar o discurso unívoco e discriminatório das memórias sociais
escritas pelos vencedores europeus (FREUD, 1992).
Em Pedro Páramo,
Juan Rulfo manipula conhecimentos da psicanálise e de
uma sociologia que se sustenta na chamada Escola de Frankfurt, cujos
pressupostos indicam para as inúmeras possibilidades de reescrita da história e
dos processos sociais, no qual passam a ser protagonistas e
terem voz outras versões sobre os mesmos fatos, sobretudo a fala dos
vencidos, dos desvalidos, dos marginalizados, fazendo com que estes fatos,
antes inquestionáveis, transformem-se em novos eventos, absolutamente distintos
daqueles do discurso dominante europeizado. Juan Rulfo
é a voz dos desvalidos, dos invisíveis, é a voz dos mortos, dos assassinados,
dos que nada têm, dos emudecidos pela história europeizada (KOTHE, 1985).
Juan Rulfo inaugura uma nova forma de dizer as coisas, na qual a
realidade social é tratada de forma a promover um rompimento com as formas
tradicionais de narrar, e, portanto, de conferir significado e prestígio
social.
Em Pedro Páramo, as relações entre
psicanálise, história, sociologia e literatura estão em cada palavra. Juan Rulfo opera essas relações, que, em sua narrativa, passam,
necessariamente, pelo enfoque psicanalítico do texto, relacionando autor e
forma literária do texto ficcional artístico, pois a psicanálise trabalha com a
oralidade e a descrição dos sonhos e do imaginário como base de promoção de uma
interpretação (JAMESON, 1992).
Juan Rulfo não se declarou um conhecedor da
psicanálise, nem da sociologia, entretanto a manipula de forma precisa, não a
usa como um leigo, e os assuntos presentes em Pedro Páramo
exercem sobre o leitor um efeito poderoso, sobretudo ao fazer da leitura uma
escritura dos desejos da coletividade das populações pobres e mestiças
latino-americanas, pois, ao usar a palavra, de forma poética e metafórica, Juan
Rulfo ultrapassa os limites da imagem, da fotografia,
e confere uma razão e um significado especial aos fatos narrados, sobre si
mesmo e sobre os outros, particularmente confere-lhes identidade própria.
Rulfo reage contra os aspectos
circunstanciais da obra literária clássica européia, confere ao texto literário
um status crítico, especialmente contra a utilização de elementos biográficos,
históricos e sociológicos convencionais; deste modo, abre deliberadamente novos
caminhos para a narrativa literária, histórica e sociológica. O texto de Pedro Páramo
ensina-nos a considerar o campo da produção artístico-literária não apenas em
sua especificidade estética. Ele aprofunda-nos nas qualidades intrínsecas de um
texto que é estético, ficcional, histórico, sociológico e
psicanalítico de forma concomitante (GOLDMANN, 1967).
A principal contribuição dessa reação de Juan Rulfo
é uma maciça e continuada produção literária latino-americana, que está
contribuindo para estabilizar uma noção não mecanicista da dinâmica política da
literatura. Uma leitura aprofundada e com olhar sociológico e político, e não
estritamente técnico-literário-estético, da novela Pedro Páramo,
transforma a visão microscópica de Juan Rulfo em excessivamente
“exagerada”, diria mesmo universalista, sem se correr o risco de exaurir o
texto de suas principais fontes geradoras de emoção e denuncismo
das condições de miséria da população mexicana.
Ao ler Juan Rulfo, devemos buscar um modo,
uma maneira, de estabelecer um patamar sociológico de observação, que promova a
inserção da novela Pedro Páramo em seu quadro
de referências históricas e territoriais. Sem descurar da estrutura da novela,
não poderemos igualmente omitir a perspectiva que promove a ligação de desejos
conflituosos, numa permuta ambivalente e infatigável de valores afetivos e
sociais, como se um carrossel fosse, de vidas vividas e por viver. Ora do
autor, ora das populações latino-americanas, ora dos leitores (JAMESON, 1992).
Com efeito, Juan Rulfo em sua obra literária e etnográfica, promoveu a
humanização dos derrotados. Sua narrativa consiste em estabelecer vínculos de
identidade entre o ser humano, a natureza e a sociedade, pois a noção de
civilização incorporada por Rulfo em Pedro Páramo acaba por promover uma mediação entre dois
universos culturais distintos e antagônicos, e esta mediação é feita por um
complicado labirinto de mitos, ideologias, imagens e fantasmas.
Juan Rulfo estimula que seus personagens promovam o reencontro
com suas humanidades perdidas, redistribuindo suas performances, seus objetos e
suas naturezas em um mundo recriado ficcionalmente, a fim de tornar efetivo o
domínio de entendimento que Juan Rulfo tem sobre si
mesmo, sobre o povo mexicano e sobre os povos latino-americanos, oferecendo à
humanidade uma oportunidade de reflexão sobre a desumanização
operada pela civilização ocidental européia, em seu processo de colonização em
solo americano (SEGAL, 1993).
Podemos dizer, ao ler Pedro Páramo,
que os homens estão organizados em variadas estruturas culturais e afetivas, e
que estas são descontínuas, pois constituem-se em
fragmentos de uma humanidade que lhes foi roubada pela brutalidade e a
violência da exploração, que são regidos por leis próprias, que ganham significação
específica nas redes de sociabilidade do grupo de referência observado e
narrado por Rulfo (MORIN, 2002).
Juan Rulfo investiga as causas das
descontinuidades, promovendo uma incessante e quase insana busca da origem
paterna. Nesse instante, seu texto rompe os limites estéticos ficcionais e
transforma-se em sociologia da tragédia popular
latino-americana, mexicana, brasileira, das favelas cariocas e dos invisíveis
miseráveis do Brasil. E é sempre conveniente frisar que a palavra favela
está diretamente ligada à guerra sertaneja de Canudos, no sertão da Bahia; um
episódio assemelhado ao cenário da novela Pedro Páramo
de Juan Rulfo.
A narrativa em Pedro Páramo apresenta
um conjunto variado de personagens de uma cultura que se põe em contato com
indivíduos e grupos desqualificadores dos padrões
culturais do povo pobre e desvalido do México enquanto Estado
Nação, assim como de todas as demais nações da América Latina, e a
partir desse cenário estabelece uma rede de comunicação digna para cada ator
social, sem, contudo, retirar-lhe o status de indigência.
Em Pedro Páramo, Juan Rulfo indica que no México, assim como no Brasil, vive-se
um pesadelo, ora sonhado, ora vivido, que o fim do sono não faz terminar, nem
sequer o sono eterno, a morte; o
pesadelo é constante. Ë um padrão da dominação política européia em toda
a latino-américa.
Quase sempre as análises sociológicas, sobretudo as marcadas pela
influência de Emile Durkheim e o estruturalismo de Claude Lévi-Strauss,
tendem a esquecer os indivíduos e sua rede de afetos, e enfatizar as relações
institucionais, formais ou informais (LIMA, 1983). Entretanto, para uma
compreensão mais apurada da novela Pedro Páramo,
torna-se fundamental colocar em primeiro plano as emoções, os afetos, os
sentimentos, os desassombros do autor e dos leitores, para então ter uma
dimensão mais apropriada do que está subjacente às relações sociais, e que lhe
conferem significado histórico e sociológico (JAMESON, 1992).
Portanto, esta leitura está inspirada pelo princípio da prevalência
das reminiscências afetivas do leitor de Pedro Páramo
e autor deste artigo, que conferem à leitura um determinado tipo de
interpretação e entendimento (JAMESON, 1992), fazendo-se necessária também uma
incursão à biografia de Juan Rulfo e ao contexto histórico-político
da produção de sua novela Pedro Páramo
(GOLDMANN, 1967).
Neste sentido, operamos uma caminhada que procurou fixar como objetivo
desta análise relacionar a trajetória de Juan Rulfo
como fotógrafo, etnógrafo, órfão e intelectual indignado com a iniqüidade
social e o status servil da sociedade e do Estado Nação
mexicano no início dos anos 50 do século XX.
E esta relação de Rulfo com a sociedade
mexicana, e suas inquietações e desejos, vieram a produzir uma narrativa
reprodutora da complexidade social de todas as sociedades latino-americanas, de
suas variadas formas de espoliação e destruição dos seres humanos, assim como
as estratégias de resistência desenvolvidas pelo “submundo” social e,
particularmente, pela pulsões de desejo de subverter a
ordem dominadora operadas por Juan Rulfo enquanto
intelectual engajado e comprometido com o destino dos desvalidos de toda a ibero-américa (ROBINSON, 1977).
A leitura da novela Pedro Páramo
leva-nos a crer que a obra literária de Juan Rulfo
constitui-se em uma modalidade especial de comunicação, e é portadora de uma
energia propulsora de ações desconstrutoras de
verdades absolutas, ao mesmo tempo que, como
narrativa, apresenta uma força comunicativa polivalente, apresentando-se como
artefato político de enorme potencial imaginativo e grande vigor conotativo de
busca de rupturas sociais.
O trabalho literário de Rulfo é vertido em
um estilo que é a um só tempo “convencional”, pois implica de alguma forma a
autonomia estética e artística, e “subversivo revolucionário”, pois contém um
código lingüístico gerador de inteligibilidade e produtor de identidade para os
múltiplos e variados grupos vulneráveis das diversas sociedades
latino-americanas.
Concluindo, vale a pena explicitar que a narrativa literária e ficcional
de Juan Rulfo em Pedro Páramo
não transforma a obra de arte em um epifenômeno
político sociológico, entretanto, não deixa margem para dúvidas de que sua narrativa concisa, contundente, rude e quase despudorada
representa uma poderosa variável que interfere diretamente nos processos de
construção das subjetividades individuais e coletivas, do mesmo modo que afeta
diretamente a organização social, ao tornar visível o que não existia, ao
transformar em som o que era silêncio, ao fazer imagem dura e cruel do que era
sombra e escuridão.
Referências
Bibliográficas:
FREUD,
S. “Escritores criativos e devaneios”,
in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1992.
GOLDMANN,
L. Sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. pp. 12-13.
JAMESON, F. O Inconsciente político: a narrativa como ato
socialmente simbólico. São Paulo: Ática, 1992.
JENSEN, W. Gradiva –
Uma fantasia pomperiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
KRISTEVA, J. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de
Janeiro: Rocco, 1994.
KOTHE, F.R. (org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática,
1985.
LIMA, L.C. Teoria da literatura em suas fontes. Rio
de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1983.
MORIN, E. A religião dos saberes – O desafio do século
XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
ROBINSON, W.P. Linguagem e comportamento social.
São Paulo: Cultrix, 1977.
RULFO, J. Pedro Páramo e o planalto
em chamas. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
SAID, E. Orientalismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998.
SANT’ANNA, A.R. Paródia, paráfrase & Cia. São
Paulo: Ática, 1988.
SEGAL, H. Sonho, fantasia e arte. Rio de Janeiro:
Imago, 1993.
VILLASEÑOR, R. V. Biobibliografia Juan Rulfo.
Gobierno de Jalisco: Secretaria General, Unidad Editorial, 1986.
Resumo:
Uma reflexão sobre a novela Pedro Páramo de
Juan Rulfo, procurando explicitar identidades e
esperanças de vida de desvalidos, indigentes e pobres das sociedades latino-americanas e brasileira, em particular, tomando a
novela de Juan Rulfo como um espelho das mazelas
sociais dos povos colonizados pela civilização européia e, particularmente, as
que foram formatadas pelos padrões de dominação dos portugueses e espanhóis em
terras americanas.
Palavras-chave: Violência,
invisibilidade social, indigência, conflito social.
Abstract: A reflection on Juan Rulfo’s Pedro
Paramo, trying to state identities and hopes of
destitute, indigent and poor people in latin american societies, particularly Brazil, taking Juan Rulfo’s novel as a social mirror of the disturbances of the
crowds colonized by the european civilization and,
particularly, the ones formatted by the portuguese
and spanish domination in american
lands.
Keywords: Violence, social invisibility,
indigence, social conflict.