INDIGENTES, INVISÍVEIS E DESQUALIFICADOS: UMA ANÁLISE DO ROMANCE PEDRO PÁRAMO, DE JUAN RULFO

 

Paulo Baía *

 

 

Um conjunto significativo de obras literárias latino-americanas, produzidas a partir da década de 50 do século XX, tem elaborado um texto narrativo que faz da escrita uma representação quase que mimética da realidade social, tornando-os em semi-etnografias ou reportagens romanceadas. Entretanto, a principal marca de criatividade, originalidade e inovação desta tendência literária de forte conotação social tem sido a presença nos textos, nas narrativas, de uma alegorização da realidade cotidiana, que irrompe, de maneira desconcertante, nas tramas e nos enredos dos textos, gerando um efeito de alforria nas narrativas, livrando-as das impregnações ideológicas que marcaram o estilo realista do século XIX, o realismo socialista dos anos 30 e 40 do século XX e as variadas formas de regionalismo engajado, também da primeira metade do século passado.

 

Este artigo tem por objetivo promover uma reflexão sobre a literatura de Juan Rulfo em sua novela Pedro Páramo, procurando compreender os múltiplos descaminhos e trilhas utilizadas pelo autor para produzir uma representação das sociedades latino-americanas em geral, e da sociedade mexicana em particular, na qual ele apresenta um contexto temático do mundo rural ibero-americano; e, atribui à sua narrativa um compromisso de revelações, conferindo vozes aos recalcados pela dominação repressiva dos discursos sociais, políticos, culturais e ideológicos europeizantes.

 

Em Pedro Páramo, Juan Rulfo busca uma forma especial e particularizada de compreender a totalidade das sociedades colonizadas na América Latina, estabelecendo na escrita um procedimento de identificação individual e social, em uma sociedade que tem, no conjunto de suas redes de sociabilidade, uma característica já quase que ficcional na investidura de seus entes enquanto atores sociais. Em Pedro Páramo, toda semelhança aponta para a aproximação da história social com a ficção na América Latina.

 

Partindo da premissa expressa no livro Sociologia do Romance, de Lucien Goldmann, de que

 

“o romance é, necessariamente, biografia e crônica social, ao mesmo tempo; fato sobremodo importante, a situação do escritor em relação ao universo que ele criou é, no romance, diferente da sua situação em relação ao universo de todas as outras formas literárias. A essa situação particular chama Girard humor; Luckács, ironia. Ambos estão de acordo em que o romancista deve ultrapassar a consciência de seus heróis e que essa superação (humor ou ironia) é esteticamente constitutiva da criação romanesca” (GOLDMANN, 1967, pp. 12-13).

 

A novela Pedro Páramo, do escritor e intelectual mexicano Juan Rulfo, publicada pela primeira vez em 1955, traz as características apontadas por Goldmann, acrescidas de um universo simbólico e afetivo que promove uma arqueologia de desejos, sonhos, medos e imaginário, do próprio escritor e da memória social dos povos latino-americanos.

 

Juan Rulfo nasceu em 16 de maio de 1918, na cidade mexicana de Acapulco, e vem a falecer em 8 de janeiro de 1986, na cidade do México. Sua narrativa contundente e desconcertante foi definitiva para a formatação de um estilo original, inovador e criativo, para toda a literatura e a escrituração da memória social ibero-americana.

 

Podemos afirmar, com as devidas cautelas e contextualizações necessárias, que Juan Rulfo, embora tenha publicado diversos contos, como O Planalto em Chamas em 1953, é autor de uma única obra: a pequena novela Pedro Páramo, em que, através de uma idéia central formadora de identidade pessoal para o escritor e social para a sociedade mexicana, Juan Rulfo povoa o cenário latino-americano com entes vivos e mortos, mortos e vivos, em uma alternância de metáforas elegantes e dotadas de sutilezas e nuanças, ancoradas em incursões à profundeza da alma humana (VILLASEÑOR, 1986).

 

Em Pedro Páramo, mais que em qualquer outro texto de Juan Rulfo, estão os fundamentos da narrativa que passa a ser conhecida e cultivada por diversos outros brilhantes escritores das Américas como realismo fantástico.

 

A narrativa de Pedro Páramo transforma a escrituração da crônica social, da trajetória de vida de Juan Rulfo e dos imaginários individuais e coletivos das sociedades latino-americanas, e, de maneira focada, da sociedade mexicana, em uma “tela” impressionista ao mesmo tempo que surrealista, pois o estilo narrativo é extremamente visual e cinematográfico. Tal fato certamente está ligado à perspectiva de Juan Rulfo como fotógrafo e precursor da sociologia visual e da etnografia fotográfica, pois ao longo de mais de três décadas, dedicou-se a desvendar, compreender, analisar e interpretar a história e a cultura dos diversos segmentos da população mexicana, através de um ousado projeto de registro fotográfico do cotidiano popular, ambiental, arquitetônico e paisagístico do Estado e da sociedade mexicana (VILLASEÑOR, 1986).

 

Pedro Páramo é uma novela ou um romance elaborado por um poeta das lentes, das imagens, poeta este que usa a palavra para fotografar o inconsciente de sua própria alma e da alma de seus fantasmas, de seus companheiros, de seus algozes, da sociedade mexicana, da sociedade latino-americana; e neste ato acaba por produzir uma representação que encaixa a sociedade brasileira, e particularmente a sociedade carioca, com suas inclusões, iniqüidades, generosidades, perversidades e, sobretudo, sua orfandade.

 

Pedro Páramo traz uma narrativa densa, em que Juan Rulfo arremessa-se ao profundo poço da solidão do ser humano, engendra uma escalada pelas escarpas de montanhas de esperanças ausentes, e faz de seus personagens seres que praticamente só existem na memória social e no imaginário individual, ou, utilizando a expressão de Júlia Kristeva, “habitantes que povoam o fundo da vida” (KRISTEVA, 1994).

 

Juan Rulfo, com maestria, intencionalidade e a ousadia de fazer do onírico realidade, cartografa as experiências humanas, garimpando cuidadosamente palavras que são imagens, e, ao mesmo tempo, por serem palavras, fazem a legenda da visualidade da narrativa, estabelecendo com o leitor um pacto de amor e ódio, de objetividades e ambivalências. Pois, ao estabelecer uma narrativa deliberadamente cinematográfica e legendá-la com a criatividade de um artesão de palavras, ele joga com múltiplas possibilidades de diálogo, movendo-se em um tempo e espaço ora contextualizado, ora indeterminado e eterno, ao mesmo tempo em que transita entre a razão de uma realidade histórica palpável e o desejo e a sedução de um mundo inconsciente, quase fantasmagórico e atemporal (SANT’ANNA, 1988).

 

Em Pedro Páramo, Juan Rulfo descreve um cenário de muitos assombros, povoado por vultos e seres que sempre emergem e desaparecem em sombras. O espaço territorial imaginado por Juan Rulfo parece ser construído por paredes e barreiras translúcidas, como vitrais de igrejas, que permitem a passagem da luz mas a filtram, pela intencionalidade das cores e das formas com que o autor constrói o mundo sólido e ambíguo dos personagens de Pedro Páramo. E, nesta estratégia narrativa, a palavra e o olho são fundamentais, pois pelo olhar do escritor processam-se as mortes, as desgraças, as esperanças perdidas, as reminiscências de dor e os ferimentos sempre abertos, sem, contudo, perder a fé de encontrar suas origens, e a partir delas, alçar vôo à possibilidade de viver um devaneio de identidade, definida pela precisão das palavras lavradas pela sensibilidade sintetizadora de poeta.

 

Juan Rulfo, em Pedro Páramo, abre uma nova perspectiva para a narrativa ficcional e memorialista da literatura ibero-americana contemporânea. Ele é a um só tempo sofisticado, rude em sentimentos, virtuoso em estimular desejos contidos e escondidos em si próprio como escritor, assim como no conjunto de seus leitores. Rulfo é novelista e romancista, mas é no exercício do conto que expressa sua vocação de cronista do cotidiano, historiador e etnógrafo da sociedade latino-americana, pois, de forma curta, contundente, rápida e surpreendente, elabora uma escrita cujas palavras adquirem o poder mágico de criar realidades subjetivas ou factuais, sempre em sintonia com o mundo inconsciente dos desejos dos seres humanos.

 

Nesse sentido, Juan Rulfo em Pedro Páramo alcança sua plenitude através de um romance que tem estrutura de conto e palavras dispostas taticamente de forma poética, e não em prosa. Essa característica absolutamente inovadora de Juan Rulfo restaura o universo onírico e imaginário da poesia de Homero na Grécia antiga, pois essa plenitude é conferida através de uma linguagem que tem a poesia, e, portanto, a palavra, como principal signo de construção dos universos sociais, culturais e afetivos. Rulfo faz a imaginação alçar vôo através da “palavra-fotográfica”, daí seu texto possuir poucas dezenas de páginas, páginas essas que contemplam a eternidade da humanidade, a história mexicana e latino-americana em plenitude.

 

Em Pedro Páramo, observamos que a poesia não está somente na precisão da linguagem, mas ela dá o ritmo da ação do romance, no qual Juan Rulfo delimita um território mítico, onde a realidade é um produto híbrido de fatos e imaginações, no qual o instinto observador do etnógrafo fotógrafo é conduzido a produzir uma verdade, e uma magia que se torna verdadeira, e, portanto, refratária às verificações da retórica cientificista do iluminismo europeu ocidental; é um território “mágico-realista”, interpretado de forma vivencial por todos aqueles que têm o instinto e os sentidos de uma poética que se faz verdade pela revelação da palavra, ao lançar luz às profundezas das almas humanas (FREUD, 1992).

 

Em Pedro Páramo, Juan Rulfo modela sua narrativa promovendo um sintético, porém abrangente, inventário das tragédias dos povos latino-americanos, e de sua própria tragédia familiar. A obra de Rulfo constitui quase que um texto definidor da herança social que é legada às sociedades ibero-americanas, cujo principal patrimônio é a amarga e angustiante vida dos segmentos pobres das populações latino-americanas. Pedro Páramo imortaliza as iniqüidades e perversões mais profundas da vida rural das Américas portuguesa e espanhola, revelando um universo não apenas pobre, mas rude e de violência enraizada, como condição básica para a sobrevivência. E, neste sentido, as esperanças de felicidade e melhor vida são antevistas através de frestas das portas da fantasia do autor e dos povos latino-americanos, e mexicano em particular.

 

No México, como na América Latina inteira, aí incluindo o Brasil, e, em particular, a cidade do Rio de Janeiro, a vida e a morte e mais, um imenso gradiente de etapas intermediárias entre estar vivo ou morto, são esfinges assemelhadas dos dois lados de uma medalha da sorte, que sela e chancela, pela brutalidade da colonização européia, os destinos individuais e coletivos das sociedades ibero-americanas.

 

Juan Rulfo, ao traduzir estes sentimentos em Pedro Páramo, escolhe palavras apropriadas para configurar uma imagem de cores fúnebres, terríveis e fantasmáticas de sua terra natal, que é uma síntese de todas as terras tornadas ibero-americanas pela colonização européia. Aliás, a leitura de Pedro Páramo produz em nossa boca o sentimento de estar saboreando terra e sangue, fazendo de Rulfo um precursor qualificado e premonitório do realismo fantástico, que se tornará a principal marca da literatura latino-americana contemporânea (LIMA, 1983).

 

Pedro Páramo é uma novela que trata da vida cotidiana dos pobres mexicanos, mas que se estende aos pobres paraguaios, argentinos, brasileiros e tantos outros nas Américas e no continente africano. Contudo, esta novela exorciza qualquer tentativa de transformar a cultura vivida em manifestação folclórica. Rulfo não faz concessões, fala dos excluídos, dos indigentes, e seu proselitismo poético tem como eixo uma ética e uma moral denunciadoras da perversidade das elites espanholas, portuguesas, latino-americanas, mexicanas e, com efeito, brasileiras. Entretanto, de forma absolutamente notável, Juan Rulfo afasta-se de juízos de valor. Fotografa, descreve, etnografa e, de posse deste material, promove a narrativa do seu próprio sofrimento e do sofrimento de seu povo, e, sem tirar os pés do chão, voa para o imaginário de uma verdade revelada pelo enredo da tragédia humana (JENSEN, 1992).

 

Pedro Páramo é uma novela cuja narrativa representa um ato radical de rompimento com os modelos tradicionais da escrita ficcional e memorialista de padrões europeus. Nessa direção, Juan Rulfo toma como parâmetro, que lhe serve de base para esse estilo de escrita, que a literatura deve desempenhar um papel político preponderante no processo de reconstrução da identidade das sociedades colonizadas pelos padrões de dominação cultural e política dos europeus (SAID, 1998). Rulfo cria a identidade social mexicana e dos ibero-americanos, e junto com ela, a sua própria identidade individual, dialogando com os fantasmas opressores do passado, e fazendo um relato que, no tempo presente indefinido, os exorciza, ao restaurar os liames com suas origens perdidas e desconfiguradas, rompe sua orfandade pessoal e a orfandade da população pobre latino-americana.

 

Juan Rulfo, de forma genialmente petulante, dá as costas à erudição e às regras literárias da dominação européia, que ao longo dos anos estigmatizou os atores sociais latino-americanos e afro-descendentes de forma inferiorizada e dependente; Rulfo, em Pedro Páramo, promove uma ação libertária e subversiva em forma de poesia, ao mesmo tempo em que revoluciona o formato literário latino-americano. Alforria-se a si mesmo e oferece a todas as sociedades dominadas pelo colonialismo europeu os instrumentos necessários à sua independência cultural (SAID, 1998).

 

Juan Rulfo, em Pedro Páramo, faz da palavra um instrumento que tem o poder de subverter os entendimentos consolidados, e ao mesmo tempo fornece os elementos necessários para uma nova historiografia, que possa, de forma ousada e criativa, enfrentar o discurso unívoco e discriminatório das memórias sociais escritas pelos vencedores europeus (FREUD, 1992).

 

Em Pedro Páramo, Juan Rulfo manipula conhecimentos da psicanálise e de uma sociologia que se sustenta na chamada Escola de Frankfurt, cujos pressupostos indicam para as inúmeras possibilidades de reescrita da história e dos processos sociais, no qual passam a ser protagonistas e terem voz outras versões sobre os mesmos fatos, sobretudo a fala dos vencidos, dos desvalidos, dos marginalizados, fazendo com que estes fatos, antes inquestionáveis, transformem-se em novos eventos, absolutamente distintos daqueles do discurso dominante europeizado. Juan Rulfo é a voz dos desvalidos, dos invisíveis, é a voz dos mortos, dos assassinados, dos que nada têm, dos emudecidos pela história europeizada (KOTHE, 1985).

 

 Juan Rulfo inaugura uma nova forma de dizer as coisas, na qual a realidade social é tratada de forma a promover um rompimento com as formas tradicionais de narrar, e, portanto, de conferir significado e prestígio social.

 

Em Pedro Páramo, as relações entre psicanálise, história, sociologia e literatura estão em cada palavra. Juan Rulfo opera essas relações, que, em sua narrativa, passam, necessariamente, pelo enfoque psicanalítico do texto, relacionando autor e forma literária do texto ficcional artístico, pois a psicanálise trabalha com a oralidade e a descrição dos sonhos e do imaginário como base de promoção de uma interpretação (JAMESON, 1992).

 

Juan Rulfo não se declarou um conhecedor da psicanálise, nem da sociologia, entretanto a manipula de forma precisa, não a usa como um leigo, e os assuntos presentes em Pedro Páramo exercem sobre o leitor um efeito poderoso, sobretudo ao fazer da leitura uma escritura dos desejos da coletividade das populações pobres e mestiças latino-americanas, pois, ao usar a palavra, de forma poética e metafórica, Juan Rulfo ultrapassa os limites da imagem, da fotografia, e confere uma razão e um significado especial aos fatos narrados, sobre si mesmo e sobre os outros, particularmente confere-lhes identidade própria.

 

Rulfo reage contra os aspectos circunstanciais da obra literária clássica européia, confere ao texto literário um status crítico, especialmente contra a utilização de elementos biográficos, históricos e sociológicos convencionais; deste modo, abre deliberadamente novos caminhos para a narrativa literária, histórica e sociológica.  O texto de Pedro Páramo ensina-nos a considerar o campo da produção artístico-literária não apenas em sua especificidade estética. Ele aprofunda-nos nas qualidades intrínsecas de um texto que é estético, ficcional, histórico, sociológico e psicanalítico de forma concomitante (GOLDMANN, 1967).

 

A principal contribuição dessa reação de Juan Rulfo é uma maciça e continuada produção literária latino-americana, que está contribuindo para estabilizar uma noção não mecanicista da dinâmica política da literatura. Uma leitura aprofundada e com olhar sociológico e político, e não estritamente técnico-literário-estético, da novela Pedro Páramo, transforma a visão microscópica de Juan Rulfo em excessivamente “exagerada”, diria mesmo universalista, sem se correr o risco de exaurir o texto de suas principais fontes geradoras de emoção e denuncismo das condições de miséria da população mexicana.

 

Ao ler Juan Rulfo, devemos buscar um modo, uma maneira, de estabelecer um patamar sociológico de observação, que promova a inserção da novela Pedro Páramo em seu quadro de referências históricas e territoriais. Sem descurar da estrutura da novela, não poderemos igualmente omitir a perspectiva que promove a ligação de desejos conflituosos, numa permuta ambivalente e infatigável de valores afetivos e sociais, como se um carrossel fosse, de vidas vividas e por viver. Ora do autor, ora das populações latino-americanas, ora dos leitores (JAMESON, 1992).

 

Com efeito, Juan Rulfo em sua obra literária e etnográfica, promoveu a humanização dos derrotados. Sua narrativa consiste em estabelecer vínculos de identidade entre o ser humano, a natureza e a sociedade, pois a noção de civilização incorporada por Rulfo em Pedro Páramo acaba por promover uma mediação entre dois universos culturais distintos e antagônicos, e esta mediação é feita por um complicado labirinto de mitos, ideologias, imagens e fantasmas.

 

Juan Rulfo estimula que seus personagens promovam o reencontro com suas humanidades perdidas, redistribuindo suas performances, seus objetos e suas naturezas em um mundo recriado ficcionalmente, a fim de tornar efetivo o domínio de entendimento que Juan Rulfo tem sobre si mesmo, sobre o povo mexicano e sobre os povos latino-americanos, oferecendo à humanidade uma oportunidade de reflexão sobre a desumanização operada pela civilização ocidental européia, em seu processo de colonização em solo americano (SEGAL, 1993).

 

Podemos dizer, ao ler Pedro Páramo, que os homens estão organizados em variadas estruturas culturais e afetivas, e que estas são descontínuas, pois constituem-se em fragmentos de uma humanidade que lhes foi roubada pela brutalidade e a violência da exploração, que são regidos por leis próprias, que ganham significação específica nas redes de sociabilidade do grupo de referência observado e narrado por Rulfo (MORIN, 2002).

 

Juan Rulfo investiga as causas das descontinuidades, promovendo uma incessante e quase insana busca da origem paterna. Nesse instante, seu texto rompe os limites estéticos ficcionais e transforma-se em sociologia da tragédia popular latino-americana, mexicana, brasileira, das favelas cariocas e dos invisíveis miseráveis do Brasil. E é sempre conveniente frisar que a palavra favela está diretamente ligada à guerra sertaneja de Canudos, no sertão da Bahia; um episódio assemelhado ao cenário da novela Pedro Páramo de Juan Rulfo.

 

A narrativa em Pedro Páramo apresenta um conjunto variado de personagens de uma cultura que se põe em contato com indivíduos e grupos desqualificadores dos padrões culturais do povo pobre e desvalido do México enquanto Estado Nação, assim como de todas as demais nações da América Latina, e a partir desse cenário estabelece uma rede de comunicação digna para cada ator social, sem, contudo, retirar-lhe o status de indigência.

 

Em Pedro Páramo, Juan Rulfo indica que no México, assim como no Brasil, vive-se um pesadelo, ora sonhado, ora vivido, que o fim do sono não faz terminar, nem sequer o sono eterno, a morte; o  pesadelo é constante. Ë um padrão da dominação política européia em toda a latino-américa.

 

Quase sempre as análises sociológicas, sobretudo as marcadas pela influência de Emile Durkheim e o estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, tendem a esquecer os indivíduos e sua rede de afetos, e enfatizar as relações institucionais, formais ou informais (LIMA, 1983). Entretanto, para uma compreensão mais apurada da novela Pedro Páramo, torna-se fundamental colocar em primeiro plano as emoções, os afetos, os sentimentos, os desassombros do autor e dos leitores, para então ter uma dimensão mais apropriada do que está subjacente às relações sociais, e que lhe conferem significado histórico e sociológico (JAMESON, 1992).

 

Portanto, esta leitura está inspirada pelo princípio da prevalência das reminiscências afetivas do leitor de Pedro Páramo e autor deste artigo, que conferem à leitura um determinado tipo de interpretação e entendimento (JAMESON, 1992), fazendo-se necessária também uma incursão à biografia de Juan Rulfo e ao contexto histórico-político da produção de sua novela Pedro Páramo (GOLDMANN, 1967).

 

Neste sentido, operamos uma caminhada que procurou fixar como objetivo desta análise relacionar a trajetória de Juan Rulfo como fotógrafo, etnógrafo, órfão e intelectual indignado com a iniqüidade social e o status servil da sociedade e do Estado Nação mexicano no início dos anos 50 do século XX.

 

E esta relação de Rulfo com a sociedade mexicana, e suas inquietações e desejos, vieram a produzir uma narrativa reprodutora da complexidade social de todas as sociedades latino-americanas, de suas variadas formas de espoliação e destruição dos seres humanos, assim como as estratégias de resistência desenvolvidas pelo “submundo” social e, particularmente, pela pulsões de desejo de subverter a ordem dominadora operadas por Juan Rulfo enquanto intelectual engajado e comprometido com o destino dos desvalidos de toda a ibero-américa (ROBINSON, 1977).

 

A leitura da novela Pedro Páramo leva-nos a crer que a obra literária de Juan Rulfo constitui-se em uma modalidade especial de comunicação, e é portadora de uma energia propulsora de ações desconstrutoras de verdades absolutas, ao mesmo tempo que, como narrativa, apresenta uma força comunicativa polivalente, apresentando-se como artefato político de enorme potencial imaginativo e grande vigor conotativo de busca de rupturas sociais.

 

O trabalho literário de Rulfo é vertido em um estilo que é a um só tempo “convencional”, pois implica de alguma forma a autonomia estética e artística, e “subversivo revolucionário”, pois contém um código lingüístico gerador de inteligibilidade e produtor de identidade para os múltiplos e variados grupos vulneráveis das diversas sociedades latino-americanas.

 

Concluindo, vale a pena explicitar que a narrativa literária e ficcional de Juan Rulfo em Pedro Páramo não transforma a obra de arte em um epifenômeno político sociológico, entretanto, não deixa margem para dúvidas de que sua narrativa concisa, contundente, rude e quase despudorada representa uma poderosa variável que interfere diretamente nos processos de construção das subjetividades individuais e coletivas, do mesmo modo que afeta diretamente a organização social, ao tornar visível o que não existia, ao transformar em som o que era silêncio, ao fazer imagem dura e cruel do que era sombra e escuridão.

 

 

Referências Bibliográficas:

 

FREUD, S. “Escritores criativos e devaneios”, in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1992.

GOLDMANN, L. Sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. pp. 12-13.

JAMESON, F. O Inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Ática, 1992.

JENSEN, W. Gradiva – Uma fantasia pomperiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

KRISTEVA, J. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

KOTHE, F.R. (org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985.

LIMA, L.C. Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1983.

MORIN, E. A religião dos saberes – O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

ROBINSON, W.P. Linguagem e comportamento social. São Paulo: Cultrix, 1977.

RULFO, J. Pedro Páramo e o planalto em chamas. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

SAID, E. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SANT’ANNA, A.R. Paródia, paráfrase & Cia. São Paulo: Ática, 1988.

SEGAL, H. Sonho, fantasia e arte. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

VILLASEÑOR, R. V. Biobibliografia Juan Rulfo. Gobierno de Jalisco: Secretaria General, Unidad Editorial, 1986.

 

Resumo: Uma reflexão sobre a novela Pedro Páramo de Juan Rulfo, procurando explicitar identidades e esperanças de vida de desvalidos, indigentes e pobres das sociedades latino-americanas e brasileira, em particular, tomando a novela de Juan Rulfo como um espelho das mazelas sociais dos povos colonizados pela civilização européia e, particularmente, as que foram formatadas pelos padrões de dominação dos portugueses e espanhóis em terras americanas.

 

Palavras-chave: Violência, invisibilidade social, indigência, conflito social.

 

Abstract: A reflection on Juan Rulfo’s Pedro Paramo, trying to state identities and hopes of destitute, indigent and poor people in latin american societies, particularly Brazil, taking Juan Rulfo’s novel as a social mirror of the disturbances of the crowds colonized by the european civilization and, particularly, the ones formatted by the portuguese and spanish domination in american lands.

 

Keywords: Violence, social invisibility, indigence, social conflict.

 

*O autor é sociólogo e cientista político, professor do Departamento de Sociologia do IFCS/UFRJ, pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana – NECVU/UFRJ, pesquisador associado do Laboratório Cidade e Poder da UFF, doutorando em Ciências Sociais Aplicadas ao Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura – CPDA/UFRRJ, Subsecretário de Estado de Direitos Humanos do Governo do Estado do Rio de Janeiro.

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