A TRANSFORMAÇÃO DA EXPERIÊNCIA [1]

 

Roberto Mangabeira Unger [2]

 

Em minha primeira palestra [3], esbocei um programa para o avanço de nossos ideais e interesses democráticos, experimentais e produtivos através de estratégias e linguagens dirigidas a situação econômica das sociedades contemporâneas, especialmente a das democracias sociais européias. Esse programa rejeita o retorno à forma histórica de social democracia, ainda que também recuse a aceitar o esvaziamento do projeto social democrata que tem freqüentemente aparecido sob a insígnia da Terceira Via.

 

Descrevi esse programa em seis amplas e convergentes direções: o financiamento e o auxílio no desenvolvimento do novo; a doação e o equipamento do indivíduo trabalhador e cidadão; a democratização da economia de mercado, que é, a bem dizer, a descentralização do acesso à oportunidade e aos recursos produtivos; a organização de uma economia humanitária e sua superimposição no sistema produtivo; o desenvolvimento de uma política institucionalizada energizante que exija um maior compromisso cívico e encoraje a prática acelerada da reforma estrutural; e a organização independente da sociedade civil fora do Estado, mas para além dos limites da lei privada.

 

O espírito desse programa é o de tentar combinar conexão e força. As formas de potencialização disponíveis para nós no mundo contemporâneo são obtidas em troca da nossa desconexão com o outro. E as formas de conexão as quais temos livre acesso são mantidas ao preço da depreciação e diminuição de nossos poderes de autotransformação individual e também coletiva. O que devemos desejar, sobretudo, é encontrar meios que nos aprimorem, individual e coletivamente, bem como os caminhos capazes de nos unir e de nos tornar mais fortes.

 

O principal instrumento para o desenvolvimento e execução desse programa, entendido mais como uma direção do que um esboço, é o despertar da prática do experimentalismo institucional: a experimentação motivada, dirigida e acumulada com formas institucionais que agora definem a democracia representativa, a economia de mercado e a livre sociedade civil. Na história do pensamento social moderno a idéia de descontinuidade estrutural tem sido comumente associada com a concepção de mudança revolucionária ou total. Nosso compromisso com o gradualismo tem sido normalmente ligado ao repúdio à idéia da reinvenção estrutural. Devemos misturar essas categorias e associar a tendência à descontinuidade estrutural com o reconhecimento de que a reinvenção da estrutura geralmente se dá paulatinamente, passo a passo.

 

As alternativas sociais sob a forma na qual elas nos eram familiares acabaram por desaparecer do mundo contemporâneo: grandes abstrações ideológicas como o socialismo. Nós devemos, então, debaixo para cima e de dentro para fora, recuperar e reconstruir a prática de trabalhar alternativas na imaginação e na realidade. A solução é imaginar e gerar tanto as alternativas como a extensão ou o aprofundamento das variações em menor escala já disponíveis a nós.

 

Após o colapso do comunismo e da descrença nas idéias socialistas tradicionais, há um repertório limitado de alternativas institucionais disponíveis em cada setor da vida social. Entender esse repertório, explicar sua genealogia, criticá-la e então expandi-la e renová-la é o verdadeiro objetivo de ação e pensamento construtivo social na circunstância contemporânea. Nosso objetivo, contudo, não deveria ser simplesmente substituir algumas instituições por outras. Deve ser mudar o caráter como também o conteúdo das instituições e sua relação com a liberdade construtiva ou ação pela qual nós a redefinimos e remodelamos.

 

Nós não devemos querer sistemas discursivos ou institucionais que nos são apresentados como fatos naturais, na base do pegar ou largar. Devemos querer sistemas discursivos e institucionais que se fazem abertos ao desafio e a revisão. Tais ordens sociais e culturais nos permitem atenuar o contraste entre as atividades normais pelas quais nós realizamos nossos interesses e idéias em uma estrutura tomada enquanto dada e as atividades extraordinárias pelas quais nos re-imaginamos e refazemos partes dessa estrutura.

 

Nós temos um papel fundamental na transformação da qualidade da vida institucional: conceber um mundo social mais adequado a nós, seres que superam todos os sistemas culturais e sociais que criamos e habitamos. Tais sistemas são limitados; nós em relação a eles somos infinitos. Sempre há mais em nós humanos do que há neles.

 

Esse nosso interesse em organizar a sociedade e a cultura de um modo que supere as marcas do espírito - circunstâncias espirituais transcendentes - pode ser feito para convergir com nosso interesse moral na relativa equalização de circunstâncias econômicas como também com nosso interesse material em acelerar o ritmo da invenção, inovação e progresso prático. A zona de interseção possível entre esses interesses traduzidos em um projeto cumulativo de renovação institucional, é o programa e a prática que aqui esboço e defendo.

 

Embora eu apresente esse programa nos termos que são especialmente dirigidos às circunstâncias das sociais democracias européias contemporâneas, eu não considero essa proposta, definida em termos gerais, como um programa local. É um programa universal em suas intenções. Não é apenas mais uma entre muitas vias, é uma outra via, uma segunda via. Todavia um dos interesses desse programa é o de facilitar a criação de uma diferença real no mundo, para que no futuro, a natureza das diferenças nacionais no mundo democrático possa representar mais plenamente a especialização moral da humanidade. Os poderes e possibilidades da humanidade se desenvolvem, se é que eles se desenvolvem, em direções diferentes, em formas únicas de vida com corpos institucionais distintos. Deste modo, a idéia de muitas vias como a alternativa para Um Verdadeiro Caminho talvez seja irresistivelmente atrativa; ela combina praticabilidade com modéstia. A tese de muitas vias é, todavia, falsa e perigosa.

 

Na situação econômica dos países mais pobres como também dos mais ricos, para democratizar o mercado e aprofundar a democracia temos que renovar, mesmo que com ferramentas limitadas nas mãos, o repertório institucional que nos está disponível. Se as sociedades contemporâneas estão para realmente se tornarem diferentes no futuro – diferentes nas bases democráticas e na experiência ao invés de somente na força da tradição, compulsão e fraqueza –, elas terão de atravessar a mesma porta da inovação institucional. Aqui eu chamo esse umbral de Segunda Via, para passar por esse portão de modo que eles possam se tornar realmente diferentes no futuro. A necessidade de passar por essa entrada repousa em duas razões: uma surge da necessidade efetiva de rebelião; a outra, jogando luz na ambigüidade inquietante na idéia de múltiplas vias.

 

A ortodoxia universal não pode ser adequadamente afrontada por contradições locais. Somente a universalização dos paradoxos pode combater com sucesso a ortodoxia universal como entenderam os liberais e socialistas do século XIX. O caráter peculiar do presente contexto de identidades coletivas, e as animosidades nacionais e étnicas das quais elas surgem, caem no seu relativo vazio. O desejo por uma diferença coletiva surge com o esvaecimento da desigualdade real. A desigualdade atual diminui porque sob a situação social da história mundial países puderam permanecer fortes e independentes somente pela pilhagem de costumes e idéias de outros e porque todos são agora sujeitos da sedução mundial de uma cultura que promete gratificação material e recompensa moral ao homem ordinário. Qual é o desejo distinto que combina pilhagem de costumes com informações residuais locais? Precisa de instrução e não as pode obter das tradições e pré-concepções que inevitavelmente já começaram a desmantelar.

 

Além disso, a idéia de muitas vias encobre uma ambigüidade. Estabelecida na base de uma dentre duas, uma via especial – qualquer das muitas vias – acaba sendo precária. Estabelecida em outras bases, ela prova ser ilegítima como o caminho para a aliança da democracia com desenvolvimento. Se as contradições locais forem adotadas por meras razões pragmáticas, elas serão abandonadas ao primeiro sinal de dificuldade e fracassarão em resistir a totalidade gravitacional de soluções dominantes (considere qualquer exemplo de sucesso relativo da combinação de ortodoxia econômica, como Chile nas últimas duas décadas do século XX). Se por outro lado, os paradoxos locais são ancorados ou reificadas ou religiosamente baseadas identidades coletivas, talvez possam resistir a soluções dominantes. No entanto, irão resistir a elas somente se perderem comunhão com os idéias experimentalistas e democráticos (considere qualquer uma das muitas sociedades contemporâneas, como o Irã, na qual os arranjos econômicos tem sido explicitamente educados por uma teologia nacional).

 

A Segunda Via pode atender às duas grandes questões. Uma oportunidade advém da emergência mundial por nova lógica de coordenação e inovação da prática social: uma forma de produção caracterizada pelo abrandamento das divisões hierárquicas entre os papéis executivo e superintendente, pela mistura fluidal de cooperação e competição, e pela transformação da produção em uma prática permanente de aprendizado e inovação. Essa forma avançada de produção e aprendizado agora floresce em setores avançados relativamente isolados de economias mais pobres e também mais ricas.

 

O conjunto dessas redes avançadas, agora se tornou a força motora da economia mundial. A vasta maioria da humanidade continua excluída desses avançados setores mesmo nos países mais ricos e desenvolvidos. Os dois grandes dispositivos que foram disponibilizados para suavizar as conseqüências sociais das divisões entre economias de vanguarda e economias atrasadas – taxas e transferências redistributivas e politicamente a difusão de financiamento para pequenos negócios e pequenas propriedades - têm se tornado inadequadas à tarefa. Estaremos meramente condenados a adoçar essa divisão ou poderemos começar a remodelá-la e superá-la, ancorando a coesão social aos arranjos governamentais para crescimento econômico?

 

Nós temos uma oportunidade para generalizar o alcance dessa nova lógica de produção e inovação para além das fronteiras de setores isolados onde agora florescem. Essa generalização pode aparecer somente através da reinvenção da relação entre governo e economia privada: o desenvolvimento de um novo repertório institucional de formas de parcerias descentralizadas entre governo e empreendimentos privados. Para esse fim, nós deveremos rejeitar a escolha entre o modelo americano de prolixas regras comerciais fixadas pelo governo, como também o modelo do nordeste asiático de formulação de comércio unitário e política industrial estabelecido por uma burocracia central e por consultores líderes de negócios. Ao invés disso, devemos trabalhar na direção de uma forma de coordenação estratégica entre Estado e negócios privados que seja descentralizada, participatória, aprofundada no mercado, plural e experimental. Como uma forma de coordenação é trabalhada em conjunto por descentralizadas, entidades públicas independentes e efêmeros grupos de firmas. Funciona sob o princípio que toda forma de ajuda pública para o produtor deve ser justificada em parte por sua contribuição direta para a entrada de novos agentes no mercado e a radicalização da competição. Seu produto característico não é um plano mestre, mas um conjunto de alternativas e ainda conjunturas estratégicas conflitantes, permitidas a co-existir para observar qual funciona melhor. O objetivo é democratizar o mercado – para democratizá-lo e não somente regulá-lo, ou compensá-lo, através de programas redistributivos, por suas iniqüidades. Esse objetivo leva às demais partes do programa da Segunda Via.

 

Outra grande oportunidade que nasce da Segunda Via, advém do confronto das identidades coletivas. Os povos do mundo querem ser diferentes. E, cada vez mais, eles não os são. As identidades coletivas estão surgindo envenenadas pelo processo que as esvazia de seu conteúdo concreto: nações e comunidades odeiam-se mutuamente mais ainda por estarem tornando-se tão parecidas, por fracassarem no desejo de serem diferentes. A solução que converge para o interesse da democracia e para o progresso prático é substituir essa fantástica ou desejada diferença com habilidade de criar uma diferença real. Fortalecer essa capacidade é um dos objetivos de uma alternativa experimentalista e democratizante. Essa alternativa pode ajudar a transformar a diferença nacional em um produto de especialização moral na humanidade. A mudança expressa a verdade que o ser humano está mais no futuro do que no passado e que sob à democracia, a profecia fala mais alto que memória.

 

Isso pode parecer abstrações quase vazias. No entanto elas têm implicações práticas poderosas. Uma dessas conseqüências tem a ver com o caráter da globalização. A ordem global vigente está sendo organizada pelo princípio da liberdade de circulação de mercadorias e de capital mas não de pessoas. O trabalho mantém-se preso ao Estado-nação ou dentro dos limites da comunidade de Estados similares, como a União Européia.

 

Os efeitos desse contraste entre mobilidade de coisas e o aprisionamento de pessoas vai além. Um desses efeitos é restringir drasticamente o potencial igualitário e libertador da globalização. Outro efeito é desacelerar a transformação da diferença nacional pela democracia. Em um mundo de democracias cada Estado-nação ou comunidade de Estados deve desenvolver um conjunto de formas distintas de vida. Se eles agora precisam passar por inovações similares no modo como reforçam e apóiam indivíduos, democratizam mercados e aprofundam democracia, é apenas para que eles possam mais tarde se tornar mais verdadeiramente e mais livremente diferentes.

 

Porque tais distintas formas de vida, com suas estruturações em instituições e práticas representam uma versão parcial e oblíqua da humanidade, o indivíduo deve ser livre para se rebelar e escapar delas. A liberdade do indivíduo para deixar um desses universos e ligar-se à outro é a pré-condição da legitimidade de cada um desses mundos. Caso contrário, a força de vontade e a intransigente imaginação serão oprimidas e reduzidas, tornando impossível à profecia falar mais alto do que a memória.

 

Até agora, descrevi a Segunda Via como um projeto de política econômica. Ele tenta introduzir, ainda que gradualmente, uma transformação fundamental. Tal transformação, regularmente tem estado sujeita à calamidade e especialmente, à guerra. É um dos objetivos desse programa fazer com que a transformação dependa cada vez menos de crises. Contudo, a humanidade ainda não perdeu essa dependência. Por essa razão os interesses materiais a serviço das inovações da Segunda Via não são suficientes para sustentar seu avanço; porque eles conseguem sempre ser absorvidos, parcialmente e temporariamente, pela ordem institucional estabelecida. A convicção e a energia para transformação não podem visar somente esses interesses. Elas precisam ser preenchidas, enriquecidas e inspiradas pela visão de uma oportunidade humana ainda não realizada.

 

Toda transformação momentânea é política bem como religiosa. O programa da Segunda Via pede que reorientemos a política e reorganizemos as economias mundiais, remodelando nosso entendimento de sociedade e nossa experiência moral. Consideremos cada um desses setores sucessivamente.

 

Apreciemos primeiro a reorganização da política. Na história moderna, dois tipos de ação política nos são familiares: a política revolucionária ou radical, na qual um particular quadro de líderes mobiliza uma energizada maioria a produzir ampla transformação institucional. Esse é um caso restrito; geralmente nada mais é que uma fantasia. Há também a prática política rotineira pela qual políticos profissionais executam negócios entre os grandes interesses organizados enquanto conciliam os desorganizados com modestas transferências e concessões simbólicas. Esse estilo de política baseia-se na ausência de crises e na moderação do conflito social e ideológico. Nós precisamos de um terceiro tipo de política: uma política transformativa que combine a negociação entre os interesses organizados com a mobilização da maioria não organizada. Essa política deve ter como objetivo a transformação gradual e cumulativa da estrutura institucional da sociedade. Ela deve dispensar a crise como a condição para a mudança.

 

Essa política transformativa não substitui nossas ações motivadas por interesses pessoais, pela idéia mítica da devoção sem egoísmos ao bem comum. Ela aprofunda, ao invés de ampliar, essa atividade ordinária. Como resultado, muito da prática excepcional de mudar partes do cenário de ações e pensamentos estabelecidos acaba sendo absorvida dentro da prática normal de nos dedicarmos aos nossos interesses próprios ou nos limitarmos ao nosso trabalho dentro daquele cenário.

 

A política transformativa é por conseqüência uma espécie de prática que deveria se tornar onipresente na vida de uma sociedade democrática e experimentalista. É uma prática que reduz a distância entre nossa estrutura de preservação e a de transformação em nossas atividades.

 

Nos encaminhamos para o segundo dos quatro domínios, nos quais propus explorar a idéia da Segunda Via: a reorganização da economia mundial. Atualmente, a economia mundial está organizada em princípios hostis ao nascimento e desenvolvimento de uma alternativa progressista como esta. Freqüentemente, a ordem econômica mundial vigente se posiciona contra a futura criação da diferença real.

 

Os arranjos e dogmas da atual ordem econômica mundial impõem e aceleram a convergência na direção de instituições e práticas estabelecidas nas democracias ricas do Atlântico Norte. Para mudar essa situação, três séries de reformas são necessárias.

 

A primeira reforma diz respeito às organizações econômicas internacionais, especialmente o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Essas agências não deveriam ter permissão para atuarem como os longos braços do projeto dominante na economia política. Na medida em que suas responsabilidades são universais, eles devem ter poderes mínimos; seu papel deve ser o de manter a clareza dos mecanismos e prover os empréstimos que ajudam a manter a economia internacional aberta. Deste modo eles ajudam a definir e manter trajetórias particulares de desenvolvimento nacional, transformando-se em instâncias plurais. Tampouco eles devem ser divididos em várias organizações rivais ou eles podem se tornar conchas acomodando técnicos prontos para ajudar países e governos a trabalhar as estratégias nacionais de desenvolvimento que aqueles adotariam.

 

A segunda mudança tem a ver com a reorientação do sistema de comércio internacional. Esse sistema não deveria ter como seu princípio generativo a maximização do livre comércio, como livre comércio é hoje entendido. O livre comércio é um meio, não um fim. O objetivo do regime de comércio global deveria ser maximizar as possibilidades de desenvolvimento e alternativas geradas na própria experiência e debate nacionais. Por exemplo, o regime atual pressupõe um conceito de propriedade que declara ilegal sob o rótulo de subsídio, muitas formas de coordenação de aprofundamento de mercado entre governo e entidades privadas. Desse modo ele ajuda no congelamento da existente distribuição internacional de vantagens comparativas entre países.

 

A terceira reforma está relacionada à mobilidade do capital e à imobilidade do trabalho. Eu já havia me referido a hipocrisia anti-liberal que chama de sistema livre, a liberdade de circulação de moeda e mercadorias pelo mundo enquanto pessoas continuam aprisionadas dentro das fronteiras de seus países. Um economista diria que o custo da eficiência de uma política que insiste no preço diferencial (price differential), ou também chamado de preço forçado (price wedge), é proporcional ao quadrado daquele preço fixado. No mundo atual, essa política que mantém o preço diferencial por mercadorias ou ativos financeiros raramente excede dois para um, mas o preço diferencial para o valor do trabalho geralmente ultrapassa dez para um. Nenhuma reforma no mundo traria maior equilíbrio do que a gradual aquisição pelo trabalhador da liberdade de cruzar fronteiras nacionais, não somente em nome da liberdade mas também da igualdade. Seria impraticável e auto-destrutivo pressionar pelo imediato e irrestrito direito de imigração. Contudo, nossos interesses práticos e morais apontam na mesma direção: dar à moeda e ao capital juntos o direito de circular, em pequenos e acumulativos incrementos.

 

Como uma mudança da economia mundial guiada por essas três séries de reformas pode se configurar? Considere uma seqüência de três etapas. A primeira é por alternativas - alternativas reais - a serem estabelecidas particularmente em alguns Estados-nação, especialmente em alguns dos maiores e mais marginalizados países continentais – China, Índia, Rússia, Indonésia e Brasil – que ocupam atualmente os lugares naturais de resistência no mundo. Quase sozinhos eles comandam a combinação de recursos práticos e espirituais com os quais se imaginam mundos diferentes, ainda que cada um deles tenha sido recentemente inibido no alcance de seu potencial para divergir e rebelar. O segundo passo é no sentido de haver pressão, como resultado desse exercício de heresia nacional, para a mudança das regras da economia internacional. O terceiro passo é que essa mudança de regras acaba por encorajar o avanço da heresia no cenário institucional e a orientação estratégica de desenvolvimento nacional. Se, contudo, a comunidade européia conspirasse com os Estados Unidos para impor uma uniformidade institucional e uma convergência sobre a humanidade, então seria nosso dever enquanto membros do resto do mundo desafiar esse acordo à Metternich [5] e derrubá-lo.

 

Eu, agora, chego no terceiro domínio de transformação que precisa acompanhar e confirmar o avanço na direção da Segunda Via: a revisão de nossas práticas de entendimento social e histórico. Suponha uma progressão em três momentos.

 

Primeiro, devemos repudiar o preconceito científico ou pseudocientífico que modelaria a análise social à imagem da ciência natural. Nosso estudo da natureza está irremediavelmente emaranhado em contradições que têm se manifestado na história da filosofia moderna. Essas antinomias geralmente aparecem da desconexão entre pensamento e ação: o escopo de um modo de pensar que vai além dos horizontes de nossa existência e atividades imediatas. Essas antinomias expressam os fatos mais básicos sobre nós mesmos: que somos algo relativamente infinito preso dentro de realidades finitas: o corpo, a sociedade e a cultura.

 

De um lado, enfrentamos os paradoxos do tempo. Se o tempo for uma ilusão, assim serão nossos julgamentos causais. Contudo, se o tempo é real e o universo tem uma história, então aos nossos julgamentos causais faltam bases seguras de leis gerais, porque essas leis também terão uma história.

 

Por outro lado, confrontamos as contradições da experiência. Ao raciocinarmos talvez concluiremos que não temos acesso direto ao mundo, mas permanecemos presos aos fantasmas de nossas mentes. Quando, todavia, vivenciamos, é o raciocinar que nos passa a parecer fantástico e continuamos a viver sem medo no mundo manifesto.

 

Em nosso estudo da sociedade, entretanto, nós podemos estar relativamente livres dessas contradições. Podemos esperar ganhar, em relação aos nossos artefatos sociais e culturais, uma posição mais endeusada. Como seus criadores, nós os conhecemos por dentro. Essa relação pode aumentar de imediato enquanto obtemos sucesso criando estruturas que têm como um de seus atributos definitivos facilitar sua própria regeneração para diminuir a distância entre nossas estruturas de preservação e de mudança de ação.

 

Não é para afirmar qualquer prestígio ou hierarquia intelectual, mas para habitar de modo mais completo o mundo no qual vivemos, que devemos rejeitar os preconceitos pseudocientíficos. Devemos entender e praticar o conhecimento social centrado em si mesmo: um modo de entender mais direto, mais completo e menos contraditório do que aquele conhecimento que esperamos ganhar da natureza. Poderemos então nos permitir repudiar uma falsa distinção forçada em nós pelo preconceito científico, a distinção entre percepção prática e conhecimento teórico.

 

Nós devemos encarar o conhecimento teórico da sociedade como o aprofundamento ou extensão do nosso conhecimento prático comum da vida social, ao invés de nos deixarmos conduzir por sua sensação de superioridade. O objetivo da imaginação é fazer o trabalho da crise sem crise, pondo o real sob à luz e a pressão do possível. Vista dessa forma, a imaginação das coisas humanas se torna inseparável das ações humanas e, em particular, da ação transformativa. Porque é pondo pressão no mundo social estabelecido, e descobrindo oportunidades transformativas neste meio recalcitrante e constrito, que nós quebramos o feitiço do presente em nossas mentes. A teoria pode dar continuidade a esse trabalho, mas não pode iniciá-lo. Ela compartilha com o pensamento prático, que surge imediatamente do nosso esforço e compromisso, uma característica crucial: a nossa habilidade para imaginar os próximos passos, e então colocar a realidade estabelecida dentro da penumbra da variação próxima e acessível, nunca depende do poder para discernir os movimentos remotos, muito menos para mapear o horizonte do possível. Uma lista de possíveis mundos sociais não faz parte desse conhecimento; o conceito dessa lista é uma superstição enfraquecendo nossos poderes de resistência e de percepção a pretexto do surgimento deles.

 

O segundo momento dessa transformação intelectual é a recuperação e reconstrução da idéia de descontinuidade estrutural. É a crença e a disposição formativa de que a sociedade muda descontinuamente; que ela é a priori fiel e contingente. Na história do pensamento moderno essa idéia tem se misturado aos dogmas do fatalismo histórico: por exemplo, que existem sistemas indivisíveis como o capitalismo; que cada sistema se amolda a uma lógica interna, e que elas sucedem umas às outras de acordo com algumas seqüências evolucionárias pré-estabelecidas, conduzidas por leis irresistíveis de mudança.

 

Nós devemos resgatar a idéia de alternativas estruturais a essas ilusões. Ao mesmo tempo, precisamos fazer valer a idéia de alternativas estruturais contra a prática positivista das ciências sociais. Como são atualmente praticadas nas universidades, essas ciências geralmente ridicularizam a idéia de alternativas estruturais, e somente racionalizam acerca da ordem social estabelecida. Seu espírito dominante é um hegelianismo de direita. É um espírito hostil à imaginação da possibilidade de mudança. Por essa razão é também uma mistificação da experiência histórica e social.

 

O terceiro momento nessa virada intelectual é a confusão dos gêneros. Cada uma das disciplinas sociais está acorrentada a sua própria agenda metodológica. Separadas como estão, não é possível a essas disciplinas confrontarem suas limitações próprias a não ser quando são forçadas por alguma calamidade mundial. Como poderíamos despertá-las para enfrentar melhor o encolhimento imaginativo do possível? É acertado reunirmos esses discípulos e subvertê-los através da tentativa de entender a realidade presente e a possibilidade transformativa em uma situação singular, um país único, um momento único, uma circunstância única. A superação da superstição que vê o conhecimento social como uma versão inferior da ciência natural, a recuperação da idéia de estruturas alternativas e a confusão de gêneros descrevem o desenvolvimento gradual de um clima intelectual propício ao desenvolvimento de alternativas sociais progressistas. Não poderemos seguir na direção de algo como a Segunda Via sem antes nos equiparmos com tais métodos e idéias. Aproximar o entendimento da sociedade a esse espírito é ao mesmo tempo uma expressão de nossa habilidade para virar as mesas de nossos próprios contextos e uma exigência de continuamente agir dessa forma. É uma forma de esclarecimento sem a qual não podemos nos tornar verdadeiramente livres.

 

O último campo no qual encaminho o desenvolvimento de uma alternativa é a crítica e o redirecionamento da nossa experiência moral. Eu procedi metaforicamente, por uma série de formulações equivalentes.

 

A primeira formulação tem a ver com a relação entre a nossa capacidade de reconhecer o caráter mutável da vida social e a nossa disposição para aceitar as condições imutáveis da existência humana. Queremos um modo de vida que nos permita mais inteiramente reconhecer que tudo na organização da sociedade é contingente. Devemos desconsiderar as ordens institucionais que nos impedem de respeitar uns aos outros enquanto seres que transcendem essas poucas e limitadas estruturas. Por essa prática deliberada de iconoclastia institucional, passamos a enxergar mais claramente a característica imutável de nossa existência enquanto pessoas que irão decair e morrer. Tal consciência de nossa própria humanidade é ao mesmo tempo condição e conseqüência para uma mudança na organização da sociedade. Simultaneamente, contudo, é também uma descoberta independente da mente, animada, no desenvolvimento dessa crença, por um único e amplo propósito.

 

A segunda formulação tem a ver com a relação entre duas fontes de tristeza humana. Nós somos tristes porque a intensidade de nossos desejos excede imensamente a coisa desejada. Os objetos de nossos desejos são relativamente triviais em comparação com a intensidade que os cobiçamos, como resultado nos encontramos diminuídos e humilhados nas circunstâncias da vida cotidiana. No entanto, também ficamos tristes por exigirmos uns dos outros mais do que podemos dar uns aos outros. Tal como os porcos-espinhos descritos por Schopenhauer, ficamos paralisados quando separados, nos machucamos quando juntos, e inquietos nos movemos de um lado a outro em busca da incômoda distância média. Esse desconforto na companhia de outros é a segunda grande fonte de nossa tristeza.

 

Nosso propósito em reconstruir a experiência moral deve ser o de lidar com a primeira razão de tristeza de modo a nos permitir tratar da segunda razão. Podemos fazer isso desenvolvendo formas de pensamento e de vida que nos façam realmente mestres e que nos dêem em retorno algo que valha a nossa energia. Esses trabalhos sócio-culturais devem ser diferenciados por outro par de atributos. Esses devem organizar nossos negócios de tal forma que aliviem o conflito entre as exigências de inovação e as de cooperação. E eles devem nos proporcionar uma experiência comunitária que transforme as diferenças em instrumentos de união, dispense igualmente da experiência ou do prognóstico, e se desenvolva na mais recíproca vulnerabilidade.

 

Agora, essa reformulação da experiência pode ser descrita de uma terceira maneira, relacionada com a forma que deveríamos desejar que nossas vidas exibissem. Em uma sociedade que é relativamente livre, relativamente igual e relativamente rica, cada um de nós poderia se tornar várias pessoas diferentes. Apesar disso nos forçamos a tomar um rumo particular na vida. Devemos melhor organizar todos os nossos possíveis “eus” para nos tornarmos um único “eu”. Cada um de nós deve, portanto, se automutilar.

 

Não obstante, devemos continuar a sentir a dor no ponto da amputação, e aprender a experimentar os movimentos fantasmagóricos do membro desaparecido. Mais tarde, em um rumo particular de vida, organizada em torno de compromissos, nós começamos a dar a esses o poder de nos definir. Tendo feito isso, começamos a morrer pouco a pouco. Uma múmia se forma ao nosso redor; em princípio mutilados, somos mumificados na direção do fim.

 

Para continuar a viver até morrer, e ter a certeza de morrer uma única vez, nós devemos arrancar essa múmia de dentro para fora. Antes que possamos conceber o desejo e desenvolver o poder para fazê-lo, devemos nos inquietar deliberada e repetidamente. É responsabilidade do Estado nos ajudar a organizar uma vida na qual essa ambição descompromissada se torne pensável e exeqüível sob quaisquer condições da vida humana ordinária. Que grande força poderia nos guiar em uma campanha tão árdua?

 

Nossos maiores êxitos nas áreas da ciência, arte e política surgem de nossa disposição em nos superarmos: mudar, para melhor e para pior, contra nós mesmos. O objetivo é fazer da auto-superação o centro da experiência humana, estancando seu veneno e aumentando sua fecundidade. A sociedade e a cultura devem nos ajudar a viver clara e corajosamente essa penosa experiência da auto-superação, inconquistável, inabalável, imbatível – resignada ainda que inconformada – lutando com o mundo e contra nós mesmos, sonhando com olhos bem abertos, ansiando, empenhando-se, buscando, procurando, até que restaurados ao entusiasmo e intensidade de uma criança, nossos corações de pedra transformados em corações de carne, aprenderão a ouvir no choro de cada recém-nascido o casamento profético da grandeza com o amor.

 

NOTAS

 

[1] Conferência pronunciada no Ciclo The Boutwood Lectures, por ocasião da comemoração dos 450 anos do Corpus Christi College, Cambridge University (Grã-Bretanha), em janeiro de 2002.

 

[2] Roberto Mangabeira Unger é Professor Titular da Universidade de Harvard (EUA) e membro vitalício eleito da Academia Americana de Artes e Ciências.

 

[3] A primeira conferência, intitulada A Transformação da Sociedade, foi publicada na edição número 19 de Achegas. A versão original em inglês das duas conferências pode ser encontrada na página oficial do autor: www.law.harvard.edu/unger

 

[4] Nota do Revisor: O autor faz alusão ao príncipe austríaco, Klemens Metternich-Winneburg (1773-1859). Como chanceler, Metternich negociou o casamento de Maria Luísa com Napoleão I. Em 1813, articulou a entrada da Áustria na coligação que se opunha à França. Posteriormente, participou do Congresso de Viena.

 

Tradução de Ana Lourdes Alvarenga Silva

Revisão Técnica de Victor Leandro Chaves Gomes

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