“ETERNA JUVENTUDE” OU DECREPITUDE:  O LUGAR DA SOCIOLOGIA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

 

Marcelo Pereira de Mello *

 

                   Na literatura sociológica tradicional as chamadas “crises” e, especificamente, as “crises sociais” identificam conjunturas em que graves acontecimentos desorganizam os padrões tradicionais de relacionamento dos grupos que compõem a sociedade considerada. Deste ponto de vista, as crises são diagnosticadas segundo indicadores os mais variados, estatísticos, matemáticos, comparações, enfim, os diagnósticos variam conforme o tipo de crise que se quer abordar: econômica, política, religiosa, moral. Contudo, o centro das explicações tradicionais reside na concepção de que crises resultam de fenômenos objetivos, no sentido de factuais, i.e., constituídos fora das consciências dos indivíduos nelas envolvidos.

 

Este elemento conceitual se expressa num recurso cognitivo muito utilizado nas perspectivas sociológicas tradicionais, especialmente em Marx e Durkheim, de considerar que pessoas estão freqüentemente envolvidas em um turbilhão de acontecimentos, os quais elas próprias não são capazes de analisar. Esta idéia parece em tudo tributária ao ambiente intelectual do século XIX, origem dos nossos clássicos da teoria sociológica, qual seja, o de combinar métodos e conceitos das ciências biológicas e naturais na análise de fenômenos sociais. Crise, do Latim, cuja origem vem do grego Krisis, refere-se, primariamente, a alterações para o bem ou para o mal, advindas no curso de uma doença. Ou ainda, acidente súbito que sobrevém a uma pessoa de aparente boa saúde. Daí que, tal como na literatura médica, na teoria sociológica os contextos de crises envolvem os indivíduos comuns como pacientes, sem que eles tenham condições objetivas de entendê-las, as crises, em toda a sua extensão.

 

Para efeito de nossa discussão sobre o que alguns sociólogos têm considerado como crise da sociologia pretendo partir desde um ponto de vista diferente, que eu chamaria de relacional, inspirado em Simmel, e para tanto trabalharemos com o conceito de que a identificação de momentos especiais da trajetória de pessoas e instituições como momentos ou períodos de “crise” tem a ver basicamente com um sentimento de insatisfação generalizada com o que se tem, do ponto de vista material ou relacionado a valores, ou com o que se vive, e que encontra repercussão senão em todas as almas, pelo menos naquelas que conseguem fazerem-se ouvir com maior intensidade. Sabemos, desde Marx e Durkheim, que “crises sociais”, especificamente, ocorrem tanto em contextos materiais de escassez e recessão quanto em contextos de abundância e progresso, em contextos de regressão e endurecimento de valores, quanto em períodos em que se reverencia o novo e o progresso. Em nossa interpretação relacional destes ensinamentos, concebemos, então, que “crises” nascem e se alimentam da rejeição a tudo o que está aí, não importa o que, efetivamente, esteja aí.

 

Diagnosticar “crises”, deste ponto de vista relacional, é ao mesmo tempo simples e complicado. Simples, porque mesmo quando o diagnóstico de crise é montado sob argumentos estritamente racionais, e mesmo quando se procura reunir um conjunto de evidências de natureza igualmente racionais, a efetiva aceitação da “crise” depende de um lastro subjetivo: as crises são “sentidas” e isto é verdadeiramente o que há de comum entre as crises que se processam na esfera material ou econômica da sociedade, e aquelas que se passam na esfera moral ou valorativa.

 

O elemento complicado no diagnóstico das crises tem, paradoxalmente, a mesma origem da sua simplicidade: a subjetividade. A identificação das “crises” vivenciadas por uma comunidade de indivíduos “inteligentes”, i.e., capazes de teorizar sobre a sua existência, dependem daquilo que poderíamos chamar de uma intencionalidade (uma explicação dirigida ao problema) e de uma interpretação compartilhada por indivíduos destacados da comunidade em questão: religiosa, econômica, militar, científica.

 

Para ficarmos no âmbito científico e, mais precisamente no âmbito das teorias sociológicas, o diagnóstico sobre as crises de paradigma e epistemológicas são tão mais abundantes quanto menos dependentes de evidências empíricas. Creio não ser difícil concordar que fazer um levantamento numérico com variáveis do tipo quantidade de profissionais, congressos, número de papers apresentados em seminários, número de profissionais formados anualmente, cursos de pós-graduação, salários, etc.,  seria insuficiente e temerário para construir um diagnóstico de crise das ciências sociais. Até porque a compreensão comum das crises nas ciências normalmente nos remete aos conteúdos das disciplinas, i.e., capacidade e força de explicação das teorias, e potencial de intervenção na(s) realidade(s) interpretada(s). No Brasil, p.ex., experimentamos ao longo dos últimos 30 anos inúmeras sensações de crise da sociologia, quando todos os indicadores numéricos da disciplina: número de profissionais, cursos de pós-graduação, publicações, etc., só fizeram expandir.

 

Outro fator complicador nas discussões sobre as crises, especialmente as científicas, é que todo diagnóstico de “crise” pressupõe necessariamente a concepção do seu contrário, ou seja, pressupõe uma situação de “normalidade”. Assim, quem identifica “crises” nas ciências sociais, ou em qualquer outra ciência, deverá sempre estar apto a discorrer sobre o que seria o curso normal, o funcionamento previsível, o estado da arte “ideal” das disciplinas que compõem a ciência. Convenhamos, não é tarefa fácil. Pior, quando a identificação das crises científicas (ou, paradigmáticas, na expressão consagrada de Thomas Khum) se localiza nos aspectos epistemológicos, nas hipóteses e resultados, no valor e no alcance dos postulados das ciências já constituídas, o ônus da prova passa a ser, por suposto, a comprovação de que postulados diferentes teriam rendimento melhor (superior)  àqueles identificados de maneira crítica.

 

Toda essa digressão acerca do significado das crises científicas tem apenas o intuito de matizar o entendimento daquilo que em nossa argumentação chamaremos de “crise da sociologia”. Liminarmente, quero esclarecer que para nós a idéia de crise da sociologia tem um caráter menos que metafórico, talvez, alegórico, com o qual nos permitiremos discutir alguns cursos e percursos da disciplina na contemporaneidade. Incorro neste temível terreno de areias movediças até apara aceitar a sugestão de inúmeras fontes sociológicas que vez por outra levantam o tema da “crise da sociologia”, até mesmo como manifestação de inconformismo com o que se tem alcançado com as perspectivas teóricas disponíveis.

 

Peço, assim, ao compreensivo leitor que aceite gentilmente este que, admitindo não seja propriamente um diagnóstico completo e uma demonstração exaustiva de seus fundamentos (seria injusto exigi-lo de mim depois de todas as observações que fiz sobre o conteúdo subjetivo das “crises”), é um pressuposto em nossa análise: a crise da sociologia diante dos desafios da compreensão dos fenômenos associados à interação social, no limiar do século XXI. Quero, contudo, deixar muito claro, para efeito dos nossos debates, que não abordarei a crise da sociologia do ponto de vista epistemológico, até porque admito como próprio da dinâmica das disciplinas científicas o constante atrito entre epistemologias concorrentes e, vez por outra, que isso resulte no declínio vertiginoso do prestígio científico de conceitos e axiomas até então insuspeitos de contradições e inconsistências lógicas. Não creio, além do mais, que a diversidade de epistemologias, algo que esteve presente na sociologia desde a sua constituição como disciplina científica, possa ser caracterizada ou estar causalmente conectada à idéia de crise. Penso, ao contrário, que é indicativo de vigor e não de decadência, a multiplicação de métodos e teorias concorrentes na explicação de fenômenos de determinado tipo.

 

Trabalharei, assim, com um aspecto do problema, da crise da sociologia, que me parece ser dos que encontra maiores repercussões entre sociólogos e leigos, causando a exata sensação de “crise” e que resulta, na minha opinião, do enredamento das epistemologias da matéria pelo avanço agressivo das disciplinas que desde os primórdios sabíamos serem (ao menos Durkheim e Weber sabiam muito bem) as disciplinas concorrentes da sociologia: a biologia, a economia e a psicologia.

 

Quem quer que acompanhe o noticiário científico dos meios de comunicação de massa, não deve ter deixado de perceber a crescente importância que os temas da biologia genética, p. ex., passaram a ocupar na imaginação das pessoas desde os estudos de clonagem, reprodução humana, genoma e matérias associadas. No lastro destes estudos inúmeros temas outrora consagrados ao estudo da sociologia tais como a criminalidade e violência, sexualidade, e outros tantos passaram a serem explicados com base em princípios da biologia. Ainda guardo na memória, as declarações de líderes de grupos de homossexuais da Califórnia, EUA, brandindo orgulhosos argumentos retirados de estudos científicos que defendiam a suposta natureza genética, cromossômica, acho, da condição homossexual; quando nós teóricos da sociologia sempre defendemos, contra todos os preconceitos, que a sexualidade era construção social e que não haveria qualquer padrão de sexualidade.

 

Da parte da economia, temos assistido igualmente a um avanço dos modelos econômicos (rational choice, teoria dos jogos, escolhas públicas, etc.) na explicação de fenômenos outrora considerados de natureza moral, no sentido durkheimiano. Como sabemos, nas teorias econômicas da sociedade, o indivíduo e suas volições assumem invariavelmente uma posição de destaque, o mercado é concebido como espaço privilegiado das relações interindividuais e a interação econômica entre os indivíduos assume, assim, um caráter de quase exclusividade das relações sociais. Durkheim já havia percebido o potencial invasivo da teoria econômica ao dirigir sua primeira obra da maturidade intelectual (A Divisão do Trabalho Social) à crítica dos componentes economicistas das teorias sobre o fenômeno da divisão do trabalho. Seus interlocutores nessa discussão eram Adam Smith e seus discípulos. Adam Smith, em verdade, reconhecia-se como um filósofo da moral e seus estudos de economia (riqueza material) estavam vinculados às suas reflexões acerca de um problema moral, a felicidade. Durkheim, no entanto, percebeu com enorme perspicácia o potencial expansivo de uma teoria racionalista, a teoria econômica, que se retro-alimentava de um padrão de relações sociais cada vez mais racionalizados em função do crescimento do comércio material entre os indivíduos. As teorias de Marx e de Weber, cada um à sua maneira, refletem também este mesmo caráter crítico com respeito às pretensões absolutistas e universalistas das teorias econômicas de corte liberal.

 

Processou-se, desse jeito, ao longo deste século e meio de teoria sociológica e econômica uma curiosa inversão onde não são mais os economistas que reivindicam um lugar na reflexão sobre a moral, mas são os cientistas sociais que procuram legitimar suas reflexões e os resultados de suas pesquisas com métodos quantitativos, à maneira dos economistas. Provar com números passou a oferecer uma aura de cientificidade aos estudos dos sociólogos, estes agora preocupados em exorcizar a imagem de subjetivistas.

 

A maior ênfase no indivíduo, ou ao menos a atenção às motivações singulares dos indivíduos nas ações com outros também concorreram para a crescente importância social da psicologia, da psicanálise, e das chamadas terapias alternativas (“corporais”), bem como de uma gama infindável de teorias de auto-ajuda. Todas com ênfase no indivíduo e na interpretação do mundo e da realidade social como resultado de volição. Quantas vezes em programas televisivos e em jornais [1] vemos os profissionais da psicologia e da psicanálise debatendo temas como criminalidade, sexualidade, relações familiares sem qualquer auxílio de sociólogos ou de suas teorias. Não que não possam fazê-lo, não é disso absolutamente que se trata, mas chamo a atenção para o caráter secundário que a reflexão sociológica, e todas as suas epistemologias voltadas especificamente para a compreensão das ações sociais, vem adquirindo em debates contemporâneos sobre temas e problemas levantados originalmente por sociólogos. Nenhum programa de divulgação científica para leigos que versasse sobre a origem do universo, por exemplo, prescindiria da participação de um físico, embora pudesse consultar também um astrólogo, um religioso ou um filósofo. Se o fizesse, i.e., se não consultasse o físico ou o seu correlato, o astrônomo, não mais seria considerado um programa “científico”, mas de profecias, religião ou magia.

 

Como disse anteriormente, não vejo a crise da sociologia associada a problemas epistemológicos da matéria. Pelo menos, não entendo que esta crise esteja relacionada às insuficiências de natureza epistemológica. Creio, em realidade, que a crise da sociologia relacionada à perda de importância e até de certa legitimidade para abordagem dos problemas morais está vinculada ao que poderíamos chamar de dilapidação de uma peça angular das epistemologias da disciplina: o relativismo sociológico. “Relativizar” os significados comuns aplicados aos fenômenos de diversas naturezas (econômicos, religiosos, morais, etc.) confrontando-os com outros, assumidos como diferentes, e não simplesmente alternativos, se transformou, ao longo de todo o percurso de afirmação da disciplina, o principal patrimônio conceitual da sociologia, aquilo que passou a identificar a matéria, tal qual a lei da gravidade identifica a física. Contextualizar as ações individuais, i.e., explicá-las relacionado-as com motivações que não estão condicionadas por uma racionalidade egoísta, mas por um conjunto de configurações institucionais, eis alguns dos princípios básicos do acervo teórico da sociologia e que atravessou este século e meio dando organicidade à disciplina.

 

Com o intuito de entender o lugar do relativismo sociológico na contemporaneidade, creio que o primeiro movimento a ser feito deve ser o de resgatar o contexto de sua origem. Minha hipótese a este respeito é a de que a sociologia, enquanto prática de investigação e ramo de conhecimento das ciências humanas, é tributária do humanismo romântico europeu, surgiu em oposição à forte tradição racionalista e utilitarista dos pensadores ingleses e, neste sentido, podemos dizer que a sociologia é uma disciplina continental. Nasceu na França e na Alemanha, e qualquer que seja o seu matiz teórico, floresceu com a idéia original de que os comportamentos individuais são explicados pelo contexto das relações sociais nas quais os indivíduos estão inseridos. Embora, distintos em quase tudo, Marx, Weber e Durkheim concordam, sintomaticamente, com a idéia de que o individualismo é uma criação da cultura capitalista ou industrial, conforme a designação de cada autor.

 

O “relativismo moral”, do qual estamos falando, e que consideramos peça fundamental do acervo teórico da sociologia é um herdeiro direto da cultura humanista e racionalista do ocidente, cumpriu uma trajetória virtuosa e, ouso dizer, se tornou um patrimônio da cultura ocidental, na medida em que foi desenvolvido em consonância com a expansão da cultura e dos valores ocidentais pelo planeta. Sua contribuição inestimável:  _ajudou na compreensão e no respeito às diferenças. Claro, estamos falando de uma compreensão intelectiva da diferença e da alteridade cujos efeitos de toda forma não foram suficientes para impedir inúmeros episódios de barbárie e violência resultantes do crescente contato entre os diferentes. Tal qual a doutrina do jus-naturalismo é portadora da idéia fundamental da tradição cultural do ocidente de que as pessoas são portadoras de direitos naturais, i.e., direitos não atribuídos a elas artificialmente por nenhuma autoridade, o “relativismo sociológico” incutiu neste mesmo acervo cultural sua expressão fundamental de que não se podem hierarquizar diferenças e pressupor pontos de vista superiores ou privilegiados, quando se está falando de sociedades humanas e de que não se pode, enfim, comparar totalidades sociais e culturais a não ser pelo respeito às diferenças.

 

Neste ponto específico é que quero situar o diagnóstico de crise das ciências sociais. O que está em convulsão na disciplina, me parece, é exatamente este conceito de “relativismo sociológico” e o que fazer com ele. Explico: - o contexto das relações sociais contemporâneas, a configuração daquilo que diversos autores em passado recente chamaram de pós-modernidade, radicalizaram os encontros entre as culturas e confrontos de tradições absolutizadas em suas pretensões de exclusividade a um tal ponto que, ou bem aprofundamos os conceitos do relativismo sociológico, ou bem nos rendemos à idéia kantiana da felicidade plena, i. e., de um mundo moralmente integrado a partir de uma ética universal.

 

Exemplifico: _Algumas informações que nos chegam on line a respeito da circuncisão de mulheres no norte da África ou do espancamento de mulheres que exibem sua face publicamente no Afeganistão colocam as seguintes questões ao “relativismo sociológico”:

_ Ocorrências desse tipo, por pertencerem ao patrimônio cultural de certos povos, devem ser respeitados na autonomia de suas manifestações, ainda que possamos repudiá-los desde nossos valores ou pontos de vista? _Ou: Partindo-se de um mínimo ético universal, no caso, a convicção de que mulheres devem ser respeitadas na integridade de suas pessoas, não importa em que culturas estejam, e as posições contrárias a esta devem ser rechaçadas e destituídas de qualquer legitimidade cultural.

 

                   Este é apenas um dos problemas possíveis de se levantar. Os temas do meio ambiente e da preservação ambiental, que assumiram uma indiscutível importância na contemporaneidade, nos revelam uma vasta superfície de arestas com o “relativismo sociológico”: Devem práticas tradicionais e até mesmo seculares como a caça de animais (alguns, atualmente, ameaçados de extinção) por comunidades indígenas serem toleradas pelo simples fato de expressarem uma tradição cultural?

 

Ou, formulado de maneira mais teórica: existe uma ética universal, ou seja, um mínimo de valores comuns, insuperáveis em seu alcance pela proximidade com a natureza humana, e que são capazes de orientar posturas universais de respeito ao ambiente humano e natural?

 

                   De certa forma, nos dias que passam, a sociologia se encontra na defensiva com respeito a estas questões porque, progressivamente, os problemas da contemporaneidade foram afastando-se das questões morais (contextuais) para as de natureza ética (essenciais). Como chegamos a isso? _ Penso naquilo que autores como Anthony Giddens, Zygmunt Baumann e outros chamaram de modernidade estendida ou pós-modernidade. Giddens, em especial, nos chama a atenção para alterações nas dimensões espaciais e temporais, na separação radical entre elas, propiciadas por avanços científicos e tecnológicos. Neste processo de apartamento do tempo e do espaço, estimulou-se um tipo específico de atitude pós-moderna diante do mundo que é a consciência antecipada dos conteúdos e significados das ações pela incorporação progressiva de informações críticas que retro-alimentam e orientam as ações. A isso Anthony Giddens chama de reflexividade. Um dos efeitos dessa reflexividade é que o tempo passou a ser concebido como evoluindo de maneira circular. Esta maneira de encarar é um pouco a maneira do que Friedrich Nietzsche, analisando a filosofia clássica grega, chamou de “eterno retorno”.

 

                   A atitude sociológica de relativização parece ter sido incorporada à atitude blasé das pessoas comuns que já sabem que as culturas são diferentes, os valores sociais são relativos aos seus contextos, mas que isso não elimina a procura por respostas mais perenes e imutáveis para as realidades sociais. Questões essencialistas passaram a figurar nas agendas particulares de indivíduos, como uma busca de sentido para um mundo que parece patinar em sua própria circularidade.

 

                   Há, também, em todo este debate, sobre o lugar da sociologia na contemporaneidade uma componente que me parece profícua de ser explorada porque resgata, inclusive, o relativismo sociológico perdido, conforme o diagnóstico por nós formulado. Acho que para explicarmos a crise à qual estamos nos referindo, temos que fazer uma espécie de sociologia da sociologia, ou seja, contextualizar e relativizar o conteúdo desta crise, vis a vis os contextos contemporâneos das relações sociais e as configurações institucionais daí resultantes.

 

                   Como dissemos anteriormente, a sociologia é uma disciplina continental desenvolvida explicitamente em oposição às tradições utilitaristas das sociedades anglo-americanas. De certa maneira, o que estou postulando é que ambas as tradições, o utilitarismo e a sociologia têm o seu solo, não territorial, mas epistemológico, fincado em relações sociais típicas dos padrões culturais das sociedades consideradas: a Inglaterra e os países continentais, especialmente França e Alemanha. Estou defendendo, portanto, uma das teses basilares da sociologia do conhecimento que postula haver uma relação inequívoca entre os contextos sociais e a produção de conhecimento.

 

                   Ora, nesta perspectiva, não vejo como dissociar, em nível da abstração sociológica, a crise da sociologia do declínio político da cultura continental européia, franco-germânica, em oposição ao fortalecimento e à hegemonia política da cultura anglo-americana. As evidências disso são tantas que eu me dispensarei de exemplificá-las. Nosso mundo pós-moderno, as ações mais sofisticadas tais como operar um sistema informatizado e os menores detalhes das nossas ações cotidianas como comer fast foods e não dormir depois do almoço [2], escovar os dentes, acender a luz ou dirigir um automóvel, tudo parece ter sido feito à imagem e semelhança das sociedades norte-americana e inglesa.

 

                   Neste sentido, defendo que o mundo contemporâneo e as práticas do cotidiano das pessoas comuns se parecem mais com o que previram as teorias utilitaristas, ou seja, hoje mais do que nunca, o racionalismo parece ser o método de ação dos indivíduos e o voluntarismo parece ser a origem das instituições sociais, não porque as teorias utilitaristas estivessem mais corretas em seus diagnósticos sobre a origem e o futuro das sociedades, mas porque as relações sociais no mundo contemporâneo tomaram a forma dos países capitalistas que desenvolveram as concepções utilitaristas das relações sociais. Trata-se, portanto, de entender o contexto de crise ou, como querem alguns, de declínio da sociologia, a partir da hegemonia econômica e política das sociedades anglo-americanas no mundo contemporâneo.

 

                   É precisamente esta espécie de sociologia da sociologia, ou seja, a contextualização e a relativização da crise da sociologia que quero trazer para o nosso debate.

 

 

Resumo

O objetivo deste trabalho é refletir sobre o papel da sociologia no mundo contemporâneo. Grosso modo, as configurações institucionais contemporâneas seguiram um curso diverso das previsões analíticas dos clássicos da sociologia, fossem as de Marx, Durkheim ou Weber. Afinal, as revoluções socialistas, quando ocorreram, se passaram de forma muito distinta da imaginada pelo socialismo científico de Marx e Engels,  da mesma forma que a ampliação das liberdades individuais, do hedonismo e da cultura individualista acabou de vez  com a idéia de que as pessoas têm um comportamento passível de ser apreendido por normas, conforme o pensamento de Durkheim.

 

Com o intuito de entender a importância ou a desimportância da sociologia na contemporaneidade, creio que o primeiro movimento a ser feito deve ser o de resgatar o contexto de sua origem. Minha hipótese a este respeito é a de que a sociologia, enquanto prática investigativa e ramo de conhecimento das ciências humanas, surgiu em oposição à forte tradição racionalista e utilitarista dos pensadores ingleses e, neste sentido, podemos dizer que a sociologia é uma disciplina continental. Nasceu na França e na Alemanha e qualquer que seja o seu matiz teórico floresceu com a idéia original de que os comportamentos individuais são explicados pelo contexto das relações sociais nas quais os indivíduos estão inseridos. Embora, distintos em quase tudo, Marx e Durkheim concordam, sintomaticamente, com a idéia de que o individualismo é uma criação da cultura capitalista ou industrial, conforme a designação de cada autor.

 

Para além das discussões teórico-metodológicas que o tema pode suscitar, pretendo fazer alguns exercícios sociológicos com a sociologia, no sentido de que procurarei entender as chamadas crises epistemológicas da disciplina e a alegada perda de importância do discurso sociológico, relacionando-as ao declínio da cultura continental, franco-germânica, em oposição ao fortalecimento e hegemonia da cultura anglo-americana.

 

Como pano de fundo das discussões, defendo que o mundo contemporâneo e as práticas do cotidiano das pessoas comuns se parecem mais com o que previram as teorias utilitaristas, ou seja, o racionalismo parece ser o método por excelência de ação dos indivíduos e o voluntarismo parece ser a origem das instituições sociais, não porque as teorias utilitaristas estivessem mais corretas em seus diagnósticos sobre a origem e o futuro das sociedades, mas porque as relações sociais no mundo contemporâneo tomaram a forma dos países capitalistas que desenvolveram as concepções utilitaristas das relações sociais. Trata-se, portanto, de entender o contexto de crise ou, como querem alguns, de declínio da sociologia, a partir da hegemonia econômica e política das sociedades anglo-americanas no mundo contemporâneo.

 

NOTAS

 

[1] Volto à mídia para exemplificar a apropriação que o senso comum faz das teorias científicas.

 

[2] Há uma expressão continental que acusa a singularidade dos ingleses neste aspecto, e que diz mais ou menos assim: “Somente cachorros loucos e ingleses não dormem depois do almoço”.

 

Palavras-Chave

sociologia, crise, teoria, relativização.

 

* Professor Adjunto de Sociologia da UFF. Professor de Teoria Sociológica do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD)/UFF. Texto apresentado, originalmente, no último encontro da SBS, Campinas, 2003.

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