40 ANOS DE UM GOLPE QUE NÃO TERMINOU

 

Valter Duarte *

&

Ezilda Ferreira **

 

             O saudoso cronista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, autor de vários livros sobre o que havia de mais insólito na vida brasileira, como os da série de FEBEAPÁ [1] , não conseguindo ver uma definição de rumos nos governos e nas instituições políticas de 1964 a 1968, dizia que o Brasil vivia então numa democradura. Com a invenção daquela palavra, ele pretendia dizer que a ditadura instaurada após o golpe militar ainda mantinha certa liberalidade ou, pelo menos, provocara uma confusão generalizada [1] que mostrava que ainda não se acabara de vez com certas formas democráticas de ser da sociedade brasileira. Um bom e bem humorado exemplo daquela dificuldade de entender e de explicar o que se passava ele deixou na introdução do seu Samba do Crioulo Doido, apresentado como obra  de um compositor que todo ano era obrigado a estudar temas nacionais oficiais para fazer o samba-enredo de sua Escola de Samba e que endoidara, por absoluta incapacidade de compreensão, quando lhe deram o tema para o Carnaval de um daqueles anos: atual conjuntura [2] .

            

Do seu jeito, Sérgio Porto estava mesmo era insinuando uma pergunta impossível de ser publicada naquela época: afinal, o que os militares estão fazendo no governo? Mas, em 30 de setembro de 1968, fumante inveterado, morreu de infarto do miocárdio com pouco mais de 40 anos. Não viveu até o AI-5, muito menos até os anos mais duros que se seguiram. Vivesse mais ainda, conheceria os rumos tomados pela ditadura, desde aqueles anos até a chamada abertura, e desta até o primeiro presidente civil. Imaginamos, então, que de sua irreverência poderia sair uma outra pergunta: afinal, o que os militares fizeram no governo?

          

O tratamento que nos dias de hoje se dá àquela ditadura é referente a algo que teria passado e não deixado absolutamente nada. Dá às vezes a impressão de que a tratam como se ela não tivesse tido nenhuma razão de ter existido. Parece que todo o Brasil deu a mão [3] condenado-a definitivamente e condenando os militares quase definitivamente. No próprio nome com que ela passa à história eles recebem a referência exclusiva: ditadura militar. Teriam usurpado o governo, usado de uma violência sem precedentes na repressão, afinal, para quê? E se não foram derrubados, se simplesmente se retiraram: mudaram e deixaram o quê?

 

O certo é que os militares não estão mais, como antes se dizia, mandando. Profissionais de comando, embora, em conseqüência, também da obediência, aceitam hoje exercê-lo dentro dos limites do consentimento civil, que em um bom período da história desobedeceram. Não são atendidos quando falam da necessidade de reequipar e modernizar as Forças Armadas e têm de administrá-las com verbas cada vez menores. Já chegaram a ter o próprio futuro posto em dúvida por um presidente, Fernando Henrique Cardoso. São lembrados para uma missão que não lhes cabe constitucionalmente e não gostariam de ter de aceitá-la: combater a criminalidade. De modo geral, passam por constrangimentos diversos e não têm como reagir. Pior do que isso: não sabem explicar a que vêm; e mal sabem explicar a que vieram no golpe e na ditadura. O comando do país não mais lhes pertence. E vão aos poucos descobrindo que se esse comando lhes pertenceu, não lhes pertenceu o comando da história do país. São duas coisas distintas, embora possam estar combinadas: o comando de um país e o comando de sua história. Este em tempo algum pertenceu aos militares.

            

Em relação a esse ponto, são bem significativos os títulos dos quatro volumes escritos  pelo jornalista Elio Gaspari e lançados até o momento sobre a ditadura. Títulos que, apenas em si, indicam as variações pelas quais passaram os militares naquele processo político: A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Derrotada e a Ditadura Encurralada. Os textos a que se referem, sem dúvida, confirmam isso. Os militares foram estranhos à história praticamente todo o tempo em que comandaram o país. Se tiveram razões absolutamente suas em 1964, como o medo da quebra da hierarquia nas Forças Armadas devido à organização e à ameaça de levante de seus subalternos, foram, todavia, levados a tomar a iniciativa por civis, estes sim, então disputando com outros civis o comando da nossa história.

 

Havia uma questão civil a ser resolvida. O problema de identificá-la na época, e ainda hoje, vem do fato de os motivos políticos principais não terem sido explicitados com clareza na ocasião. Esses motivos foram encobertos por palavras de ordem, argumentos e acusações que os favoreciam, mas não tinham a ver com eles, os motivos, e muito menos diziam o que eles eram. Por exemplo: só com o passar dos anos é que se compreenderia que aquela Marcha da Família com Deus pela Liberdade estava nas ruas contribuindo para abrir o caminho para uma reciclagem de valores em favor de valores individualistas que hoje põem cada vez mais em perigo a própria família, instituição que julgavam defender contra o comunismo, mas que se enfraquece cada vez mais sob instituições políticas liberais.

 

Esse grande equívoco é apenas um dos muitos daqueles anos que, esperamos, não devem ser escolhidos por nenhuma imprudente diretoria para enredo de sua Escola de Samba num carnaval daqui a 10 ou 60 anos. Seus compositores enlouqueceriam de vez. A tragicomédia brasileira que desaguou nos recentes anos de neoliberalismo, pelo menos no que diz respeito aos seus comandantes, jamais teve nos seus discursos oficiais, na sua propaganda, nos seus momentos de crise e de definição, ou nos seus projetos de curto e de longo prazo, qualquer indicação de que levaria a esse fim. Como dificilmente a vida política leva de modo abrupto a resultados que tenham a tendência de serem duradouros, é muito provável que esse objetivo já bem anterior, o de levar o Brasil a ser uma sociedade liberal, tenha estado escondido entre outros objetivos da vida política brasileira daqueles anos, na espera de que as forças e as idéias heterogêneas por ele mesmo provocadas se dissipassem. É muito provável que esse objetivo tenha sido a eminência parda do golpe e da ditadura. 

 

Consideremos, então, aquilo que pode ser a coisa mais simples a ser dita a respeito do golpe de 1964: ele interrompeu um período político vivido sob instituições políticas liberais. E consideremos também, como está no parágrafo anterior, que a ditadura subseqüente a ele terminou levando o país a viver sob instituições políticas liberais. Terá, por isso, o país sido conduzido para o mesmo lugar por uma ditadura que não foi derrubada? Em termos de instituições de base, em termos de distribuição constitucional de poderes e direitos, sim. Mas é preciso reconhecer que há uma grande diferença entre as duas épocas vividas sob instituições políticas liberais. Ela está entre os valores que dominaram a sociedade brasileira na época anterior e nos que estão a dominá-la atualmente. Houve uma reciclagem de valores e foi a ditadura que proporcionou a oportunidade histórica dessa reciclagem. E, embora o seu comando militar tenha tentado fazer a sua própria em favor de valores de doutrinas semi-oficiais trabalhadas e ensinadas pela Escola Superior de Guerra, foram de outra origem os valores que vingaram, os que ficaram para fazer história.

 

Para entendermos essa diferença, precisamos identificar o objetivo do golpe, aquilo que as representações ideológicas da época não ajudam a ver. Muito se disse que foi para evitar a subversão e o comunismo. Segundo Carlos Lacerda e outros, teria sido para evitar que o país se tornasse uma república sindical, que seria a pretensão de Jango. De qualquer modo, não passaram daquilo que era preciso para fazer do golpe algo aceitável para os seus contemporâneos que, em geral, mal sabiam o que estava se passando por trás de tudo. É certo que havia comunistas apoiando Jango, que eram otimistas e pretensiosos, que achavam que a história estava inexoravelmente do lado deles, mas daí a se dizer que ele mesmo, Jango, era comunista, ou ainda que sob a sua Presidência os deixaria dominar pouco a pouco o país, vai uma grande diferença. Quanto à acusação de que instalaria uma república sindical, não merece mais do que ser considerada o tipo de desculpa que se dá para fazer alguma coisa nas ocasiões em que se faz necessário esconder o motivo, muitas vezes inconfessável, que realmente se tem. 

 

Precisamos também separar o objetivo maior do golpe das condições mais próximas contra as quais se deu. O já citado levante dos subalternos, a atuação do Comando Geral dos Trabalhadores, CGT, a atuação da União Nacional dos Estudantes, UNE, as Ligas Camponesas, a popularidade crescente e a liderança agressiva de políticos como Leonel Brizola e Miguel Arraes, em resumo, todas as forças que pressionavam Jango para ser o líder de uma avalanche de projetos e ideais que ele não dominava, e pelos quais se deve até pôr em dúvida o seu apreço, não foram senão manifestações de um dos lados da crise certamente muito exageradas e concentradas de uma só vez e que, por isso, provocaram a reação golpista naquele momento. Isso porque os homens que deram o golpe já haviam tentado outras formas de serem vencedores da crise e certamente tentariam outras que não aquele golpe para vencê-la.

 

A crise se deu sob as instituições políticas liberais presidencialistas adotadas contra o Estado Novo, contra Getúlio. Apesar disso, embora não completamente, foram instituições dominadas por ele e por seus sucessores políticos, em especial, pelo PTB, Partido Trabalhista Brasileiro, e por uma parte do PSD, Partido Social Democrático. Mas a origem da crise, em rigor, era exterior ao Brasil. Ela começou na Europa, ainda no século XIX, e teve uma expressão e uma palavra postas em oposição para representá-la: laissez-faire e socialismo. Diziam respeito a duas opções administrativas do capitalismo: a expressão laissez-faire representava o ideal individualista de governo mínimo e a palavra socialismo representava a opção por governos que fossem capazes de organizar e garantir o funcionamento geral da sociedade, incluindo a sua ordem produtiva [4] . Sem dúvida, essas foram as bases, apenas, que não podem ser esquecidas. Isso porque as variações teóricas e práticas em torno delas foram muitas e podem quase ocultá-las. O golpe de 1964 foi um clímax da crise entre as versões brasileiras dessas duas opções. Se dela participaram, dos dois lados, defensores de outros ideais, não passaram de coadjuvantes de uma disputa pelo comando da nossa história que não tinham nenhuma condição de assumir, como os militares.

 

De raízes diversas na história política brasileira, essas duas opções um dia se concentraram: uma em Getúlio e no Estado Novo e a outra naqueles que conspiraram para derrubá-lo em 1945. Em seguida, tiveram expressão partidária, principal e respectivamente, no PTB e na UDN, União Democrática Nacional. O PTB foi feito herdeiro político e portador da bandeira defensora de toda intervenção getulista no sentido de dar proteção social aos trabalhadores, de organizar um novo sistema monetário e de programar a criação de indústrias de base para dar condições de comando da produção nacional à burguesia brasileira. A UDN, de inspiração teórica liberal, representou parte dessa burguesia, mais exatamente aquela que se fez a maior expressão partidária antigetulista e anticomunista.

 

O início do confronto entre os dois lados favoreceu aqueles que formaram a UDN. O primeiro grande objetivo foi alcançado: a deposição de Getúlio em 1945. Foi o ponto final da primeira parte de uma luta que começara com o Manifesto dos Mineiros em 1943. O segundo grande objetivo, porém, já não foi: eleger o presidente da República. Seu candidato, o Brigadeiro Eduardo Gomes, foi derrotado, em 2 de dezembro de 1945, pelo General Eurico Gaspar Dutra, Ministro da Guerra do Estado Novo, do PSD, em coligação com o PTB, quando o partido trabalhista fundado por Getúlio ainda não se constituía uma força expressiva (Benevides, 1980: 61). E talvez por essa razão a UDN não tenha sido senão uma oposição cordial ao governo de Dutra. Era um tempo em que a classe operária estava mais voltada para o PCB do que para o PTB. Então, a luta udenista naquele período se fez junto àqueles que combateram o partido e os deputados comunistas e, sem dúvida, junto àqueles que apoiaram a cassação pelo Superior Tribunal Eleitoral, em primeiro lugar, do registro do PCB, então Partido Comunista do Brasil, e depois dos mandatos de seus deputados e do seu senador, Luís Carlos Prestes. Só com o crescimento do PTB e a candidatura de Vargas à Presidência em 1950 a luta da UDN viria a voltar-se de novo contra o trabalhismo, a versão getulista do socialismo no Brasil. 

 

O resultado das eleições presidenciais de 1950 alertou os udenistas em relação à permanência da influência de Getúlio mesmo depois de este ter passado quase cinco anos retirado em São Borja, no interior do Rio Grande do Sul. Primeiro governante brasileiro a ter um departamento de imprensa e propaganda, o DIP, e a valer-se da grande novidade em termos de comunicação de massas que era o rádio, o antigo ditador formara boa parte da população de acordo com os valores políticos que representava e toda aquela ação de persuasão e propaganda apareceu em forma de comportamento eleitoral, em forma de vitoriosos resultados eleitorais getulistas. Não era uma situação fácil de ser invertida. Mesmo assim, tê-lo no governo era uma grande oportunidade de enfrentá-lo, de desmoralizá-lo, de impossibilitá-lo politicamente e, assim, de quebrar a sua influência. Então, os políticos udenistas partiram para o confronto.

 

No Congresso e na Imprensa, a oposição a Getúlio empregou uma retórica agressiva em torno de três pontos: incompatibilidade do ex-ditador com a vida democrática, corrupção na máquina administrativa e subversão (Benevides, 1980: 84). Todos eles combinados com a acusação de esquerdismo, o que estava muito de acordo com aqueles primeiros tempos de Guerra Fria e com a política externa dos Estados Unidos, envolvidos na Guerra da Coréia e que internamente viviam sob as pressões do maccarthysmo. Foram tais pontos a principal motivação para a forte união entre políticos udenistas e certos setores das Forças Armadas. Os resultados começaram a aparecer. Em 1954, a campanha começou a dar a sensação de que o cerco, tanto pelo lado moral quanto pelo político, estava sendo fechado. Sem o conhecimento de Getúlio, homens de sua guarda pessoal não suportaram e, por conta própria, fizeram um atentado a Carlos Lacerda, principal líder daquela campanha, ferindo-o, o que é posto em dúvida, e matando um de seus acompanhantes. Foram descobertos e o cerco moral ficou praticamente fechado. Mas quando tudo indicava o sucesso político daquela pressão avassaladora, Getúlio reagiu, não com a licença por tempo indeterminado, nem com a renúncia, mas com o suicídio e a carta-testamento. Reverteu assim, em 24 de agosto de 1954, todo a passionalidade daquele quadro e levou seus opositores a procurarem outras alternativas para alcançar a posição política que pretendiam.

 

De fato, os udenistas insistiram. Procuraram e conseguiram ser maioria no Ministério de Café Filho, político do Partido Social Progressista, PSP, que da Vice-Presidência foi alçado à Presidência. Porém, nada do que tentaram para controlarem de vez a política brasileira foi possível. Alguns de seus deputados chegaram até a defender no Congresso, absolutamente sem sucesso, o parlamentarismo. Mas o pior foi mais uma vez não vencerem as eleições presidenciais de 3 de outubro de 1955, nas quais apoiaram Juarez Távora, do Partido Democrata Cristão, o PDC. Outra vez os candidatos apoiados pelo getulismo venceram: Juscelino Kubitschek, do PSD, para a Presidência e João Goulart, o Jango, do PTB, para a Vice-Presidência. Isso fez com que mais uma vez, como em 1950, os udenistas tentassem que a palavra maioria escrita na Constituição fosse interpretada como maioria absoluta. Em novembro, com o afastamento de Café Filho por motivo de doença, ligaram-se a Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados que assumira a Presidência da República, para tentar, sob esse pretexto, um golpe que evitasse em janeiro de 1956 a posse dos eleitos. Tiveram, porém, que ceder ao contragolpe legalista comandado pelo Ministro da Guerra General Henrique Teixeira Lott, que, com a mediação do Congresso, passou a Presidência da República para o Senador Nereu Ramos e garantiu as posses de Juscelino e de Jango.

 

Veio, em seguida, a tentativa de alcançar a Presidência e alterar a tendência da época por meio da eleição de um político tão fenomenal para aqueles tempos quanto pretendente à independência política e, por isso, de dificílimo trato: Jânio Quadros. Com excelente repercussão, ele havia cumprido um mandato de governador do Estado de São Paulo depois de interromper seu breve período como prefeito da capital paulista, para o que fora eleito quando ainda pertencia ao PDC. Católico e com muitas afinidades com os valores dos políticos e do eleitorado udenistas, não pertencia mais a seu partido de origem e não pretendia pertencer a mais nenhum. Porém para certas lideranças udenistas, era visto como alguém que, depois de cumprir um muito bem aprovado mandato presidencial, poderia deixar para a UDN um eleitorado reciclado em seus valores e pronto para eleger para a Presidência algum de seus líderes, mais provavelmente aquele que fora o mentor de sua candidatura e que, em 1960, vinculando-se a ele na propaganda eleitoral restrita ao povo carioca, foi eleito governador do Estado da Guanabara: Carlos Lacerda.

 

O problema é que Jânio Quadros pouco se importava com os projetos udenistas. Durante a fase de campanha chegou a renunciar duas vezes à candidatura, embora voltasse atrás em ambas. Na primeira, porque não aceitou comprometer-se com o programa da UDN e, na segunda, porque não aceitou vincular sua candidatura especificamente à do candidato udenista à Vice-Presidência, Mílton Campos, o que acabou colaborando para a destoante e perigosa reeleição de Jango para a Vice-Presidência. Depois, uma vez empossado, escolheu o seu ministério de maneira completamente independente, como independentes foram as políticas de seu governo, especialmente a política externa. Tanta independência não agradou a Carlos Lacerda, que passou a pressioná-lo. Na noite de 24 de agosto de 1961, em cadeia de rádio e televisão, este fez insinuações a respeito de intenções golpistas de Jânio, que provocariam, na calada da noite, uma rápida sucessão de fatos e, no dia seguinte, a sua renúncia ao mandato presidencial.

 

Desesperados, os ministros militares, segundo depoimento dado anos depois em uma emissora de televisão pelo então Ministro da Marinha Silvio Heck, chegaram a oferecer a Jânio o fechamento do Congresso para que governasse como quisesse. Com a sua recusa, conforme aquele depoimento, resolveram os ministros impedir a posse de Jango, que estava fora do país em missão oficial. Desse modo, algo da maior importância estava sendo esclarecido: Jango era absolutamente vetado por parte fortemente influente das Forças Armadas para assumir a Presidência do Brasil. Ministro do Trabalho que fora do segundo governo de Getúlio, ficara marcado como seu mais direto sucessor e, sendo assim, tinha de suportar a maior rejeição de todo o antigetulismo. Provavelmente sabedor disso, até seu partido tinha evitado a sua candidatura à Presidência em 1960, entregando-a ao General Lott, militar legalista que, tal como Jânio, não era afiliado a partido nenhum, e que poderia ser uma garantia contra o golpe anunciado, ensaiado e até ali evitado, mas que chegaria em 1964.

 

A movimentação dos ministros militares para impedir a posse de Jango encontrou resistência em seu cunhado, Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, que liderou a Campanha da Legalidade e recebeu o apoio do Comando do III Exército. Para resolver o impasse, as partes concordaram em aceitar a posse de Jango nas condições da Emenda Constitucional n° 4 que instituiu o parlamentarismo em 2 de setembro de 1961. Era a confirmação de estarem vetados para Jango os poderes executivos, pelo menos por boa parte daqueles que haviam combatido Getúlio. Assim, embora o retorno ao presidencialismo fosse o desejo até da maioria dos políticos de todos os partidos, a recuperação presidencial desses poderes depois do plebiscito de 6 de janeiro de 1963, deu a Jango o que, para os mais obstinados antigetulistas, não era nem podia ser de Jango. E, numa situação delicada como aquela, as forças que chamamos de esquerda começaram a forçar para que ele desse muito mais do que queria e do que podia dar. Jango era apenas o presidente de um país que voltara a ser presidencialista. Não significava que tivesse tomado o poder. Por isso, depois de tantas tentativas fracassadas de chegar ao comando presidencial dos poderes executivos, os antigetulistas, ao verem crescer de maneira frenética em torno de Jango tudo aquilo que combatiam e temiam, encontraram uma série de pretextos para quebrar a legalidade do país e, acusando seus inimigos de serem eles os subversivos, desencadearam o golpe de Estado.

 

Embora os motivos do golpe tenham sido predominantemente civis e a iniciativa tenha sido de um civil, Magalhães Pinto, então governador de Minas Gerais, a execução tinha de ser levada a efeito por militares que já conspiravam para isso. Nas relações entre os golpistas, isso deu aos militares o comando do país e aos civis a função de legitimar os seus atos. Em relação à história do país era uma inversão necessária enquanto a realização dos objetivos não indicassem estar próximos da estabilização. Porém, a definição de objetivos, salvo o da inicial eliminação de inimigos comuns nas primeiras cassações, mostrou tendências e desejos de dificílima conciliação.

 

Sem dúvida, a primeira definição e, por isso, o primeiro problema, em relação a curto, médio e longo prazo, dizia respeito ao comando dos poderes executivos, à Presidência da República. Declarada vaga e interinamente assumida por Ranieri Mazilli, presidente da Câmara dos Deputados, que legalmente teria de exercê-la até o final do mandato iniciado por Jânio em 1961, foi feita objeto de eleições indiretas pelo AI-1, ato institucional imposto pelo comando militar do golpe no dia 9 de abril de 1964. Com certeza, para não subverter a ordem, isso não poderia acontecer. Caberia aos militares dar garantias para o cumprimento constitucional do mandato. Mas o AI-1 era o sinal de que acima de tudo estava a segurança do que bem entendessem. E segurança, mesmo que seja um objetivo civil, é uma questão para ser conduzida por militares e, por isso, um bom pretexto político para eles.

 

Assim, não foi necessário muito tempo após o golpe para que seus líderes civis compreendessem que haviam recorrido a forças que não podiam controlar. Procuraram, então, serem, cada um por si, os beneficiários das ações dos líderes das Forças Armadas. Se, para o complemento do mandato não tinham como evitar e chegaram ao consenso para que ela fosse entregue a um deles, o Chefe do Estado Maior do Exército, General Castello Branco, conseguiram alguns um acordo para levar, na eleição indireta de 11 de abril, um civil à Vice-Presidência: José Maria Alkmin. O restante era a expectativa otimista de que o regime de exceção não passasse da ainda vigente prescrição constitucional. Embora nada fosse plenamente confiável, havia razões para isso. O próprio Castello Branco declarou no seu discurso de posse, no dia 15 de abril, que não ficaria na Presidência além da data prevista para o seu mandato complementar. Porém, havia quem desejasse que ele não estivesse completamente convencido do que havia dito. Entre os líderes militares, havia quem considerasse que somente com eles na Presidência o país encerraria seu longo período de crises e, entre os líderes civis, por motivos diversos, como o de evitar a eleição de Carlos Lacerda, havia aqueles que não queriam as eleições presidenciais diretas previstas para 1965. A batalha aberta pela sucessão presidencial teria lances surpreendentes.

 

Veio um outro período de cassações. Em 27 de abril, foi criada a Comissão Geral de Investigação centralizando todos os IPMs, os inquéritos policiais e militares. O país foi envolvido por redes de delação abertas e clandestinas que, junto a todos os problemas por elas criados, deram provimento a pedidos de arbitrariedades devidos aos mais inconfessáveis motivos. Um deles foi o da cassação de Juscelino Kubitscheck. Não lhe adiantou ter votado em Castello Branco em sua eleição indireta e ter conseguido a eleição de José Maria Alkmin para a Vice-Presidência. Juscelino tinha dois pecados: o de ter vencido as eleições presidenciais de 1955 contra candidatos que foram na época apoiados pelos futuros golpistas de 1964 e o de ser o favorito para as eleições presidenciais de 1965. Os militares da linha dura e os partidários de Carlos Lacerda pressionaram. No dia 8 de junho, embora perdendo o apoio do PSD no Congresso refeito, Castello deferiu o pedido de cassação do ex-presidente.   

 

Logo depois, em 22 julho de 1964, o Congresso votou a prorrogação do mandato presidencial. Foi um golpe principalmente contra Carlos Lacerda e em favor de um projeto continuísta que teve apoio de políticos da própria UDN. Dando razão a Stanislaw Ponte Preta, Castello Branco aceitou a prorrogação com um discurso em que declarou obediência à decisão do Congresso. Era decerto o que muitos militares queriam, em especial aqueles da chamada linha dura. As coisas estavam no rumo do binômio segurança e desenvolvimento. Afinal, para continuarem comandando o país, os militares só precisavam provar que o perigo vermelho não havia passado.

 

Depois da grande onda inicial de prisões e cassações, parecia para os líderes civis do golpe que os militares já não tinham muito mais o que fazer e que a tarefa estava por se esgotar no final do mandato prorrogado. Porém, a manutenção das eleições para o governo de onze estados em 1965 traria o primeiro pretexto. Os resultados, principalmente em Minas Gerais e na Guanabara, falaram em favor de vitória da oposição ao golpe e representaram o anterior domínio da coligação de inspiração getulista PTB-PSD. E contra isso veio o AI-2, o ato que, em 27 de outubro de 1965, extinguiu os partidos políticos. Dali por diante, a eleição para a Presidência da República seria indireta e a participação política consentida seria restrita aos dois movimentos políticos criados: Aliança Renovadora Nacional, ARENA, e Movimento Democrático Brasileiro, MDB.

 

Como se nada tivesse a ver com esse quadro, um outro lado da política passava por suas primeiras transformações sob a liderança de um cada vez mais notório entreguista: Roberto Campos. Valendo-se da generalizada crença de que existe em sociedade algo que seja realidade econômica, que seria uma ordem não política chamada de economia, assenhorou-se do comando monetário do país, especialidade política reivindicada com sucesso, para si, pelos economistas, e não perdeu a oportunidade. Ministro do Planejamento e Coordenação Econômica do Governo Castello Branco, fora figura destacada nos governos de Juscelino e de Jango exatamente por seu prestígio e por seu livre trânsito entre americanos, ingleses e os gestores do FMI. Foi ele o primeiro a atacar o legado social de Getúlio criando o FGTS, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, em substituição aos direitos de estabilidade dos trabalhadores, de modo a facilitar as transferências de propriedade das empresas. Além disso, criou o Banco Central, destacando para ele funções anteriormente dadas ao Banco do Brasil; extinguiu os subsídios sobre o petróleo, o trigo e o papel; desvalorizou o cruzeiro em relação ao dólar; aumentou impostos; reajustou brutalmente as tarifas públicas; deu estímulos ao capital de risco no país; conseguiu o fim da lei que limitava a remessa de lucros para o exterior e promoveu o arrocho salarial. Com tais medidas, muito além do que podiam supor, aproveitou-se da privilegiada posição de governo que lhe foi dada por Castello Branco para comandar, discretamente, em parceria com o Ministro da Fazenda Octávio Gouveia de Bulhões e com grande apoio externo, um novo rumo na história do comando monetário do país, embora mais tarde a orientação do Governo Geisel a interrompesse.

 

Houve reações de homens que haviam participado do golpe, como o jornalista David Nasser, Carlos Lacerda e até Magalhães Pinto, mas foram voltadas apenas contra as medidas em si, não foram voltadas para o que significavam em termos de história. Provavelmente não entenderam a sua extensão. Chegaram mesmo a dizer que representavam uma intervenção indevida do Estado na economia (Lira Neto, 2004: 306). No entanto, ditas emergenciais devido à inflação, as medidas daquele PAEG, Programa de Ação Econômica do Governo, significavam muito mais do que uma emergência e, como atos de governo começavam a retirar ao máximo o próprio governo das atividades monetárias para entregá-las à iniciativa privada, especialmente a estrangeira. Tudo em favor das atividades burguesas, sem nenhuma preocupação nacionalista, e sem qualquer concessão aos assalariados. Os resultados visados eram o contrário do que a ação governamental preparatória fazia crer. No meio daquela grande confusão entre os políticos, um tecnocrata, como se não fosse também um político, tinha plena liberdade de ação dada por uma democradura em favor do liberalismo. Não foi só o compositor de escola de samba que endoidou ao ter de falar a respeito daquela conjuntura.   

 

Em pouco tempo os componentes civis do golpe estariam se dividindo entre os que se rebelariam e seriam cassados, como Lacerda, entre os que acatariam incondicionalmente as ordens dos militares por razões fisiológicas ou por estratégia, entre os que esperariam pacientemente o retorno ao comando presidencial dos civis, propondo-se a assumi-lo, como Magalhães Pinto, candidato à Presidência desde as primeiras reuniões dos golpistas, e os que fariam a chamada oposição consentida, que não ficaria isenta de cassações. O comando da história do país ficaria à espera deles enquanto o governo não voltasse a lhes pertencer. Por isso, prevaleceria sobre todos eles o que os militares achassem que deviam fazer e até quando. A eleição indireta do General Costa e Silva para a sucessão de Castello e a sua posse em 1967, tendo na Vice-Presidência Pedro Aleixo, consolidaria o fim dessa primeira parte.  

 

É preciso lembrar, ainda, que desde a representação ideológica inicial do golpe os próprios golpistas civis haviam dado motivos para que os militares não se afastassem da nova cena política. Não haviam parado de apontar inimigos para que eles os cassassem ou os combatessem. Como alguns daqueles inimigos foram realmente se reagrupando e se preparando para a luta armada, os militares acabaram por não perderem as razões de continuarem no comando do país. Disperso, começando e recomeçando sempre em pequenas ações, o Combate nas Trevas já havia sido iniciado (Gorender, 1990: 79). E logo após uma série de manifestações de massas e de intensos protestos em várias cidades importantes do país, o ano de 1968 terminou com a imposição do AI-5, fim da democradura e início de um dos tempos mais arbitrários da vida política brasileira.

 

A repressão à luta armada começou a ser tratada como o principal objetivo do governo. Foi o pretexto para que as ações políticas fossem concentradas pelos militares. E talvez em nenhum outro momento de sua pequena história a ditadura foi tão ditatorial quanto nos dias após Costa e Silva ter adoecido gravemente. Como vimos, havia um vice-presidente, Pedro Aleixo, que teria de tomar posse na Presidência. Mas isso não foi sequer cogitado. Formou-se uma Junta Militar para presidir o país e apenas entre os militares de alto comando tratou-se da sucessão presidencial. O General Emílio Garrastazu Médici foi o escolhido e, pela primeira vez desde o golpe, a Vice-Presidência não foi entregue a um civil; foi entregue a outro militar, o Almirante Augusto Rademaker. Tudo em favor da mais ampla coesão entre eles, embora houvesse diferenças entre os da chamada linha dura e os que pretendiam encontrar um caminho de retorno às instituições civis, bem como diferenças também entre os vários órgãos de informação e repressão da época, muitos deles contando com forte e informal apoio financeiro de burgueses.

 

Mesmo assim, os governos militares estavam obrigados a oferecerem alguma alternativa em termos do que seria a vida civil do país. Para sorte deles, exatamente naquele início de fortalecimento ditatorial, começaram a chegar ao Brasil os restos do welfare state keynesiano, dando assim a oportunidade de viver o país uma fase de crescimento de investimento e de consumo, tendo sido este muito favorecido por boas condições de crédito direto ao consumidor, que chamaram de milagre econômico. Ela veio a terminar, porém, quando desacelerou e foi seguida pelo chamado choque do petróleo.

 

A fase mais forte de repressão foi também a fase em que foi tecnicamente renovado o grande meio de comunicação de massas pelo qual tornou-se possível uma ampla reciclagem de valores: a televisão. Pois foi através de suas emissoras nos anos 70 que começaram a passar os valores individualistas que tinham de dominar a sociedade brasileira de modo a que ela se fizesse apta a viver sob instituições políticas liberais. Nos telejornais, nas suas reportagens, nas suas novelas, salvo algumas, principalmente as de Dias Gomes, valores individualistas começaram a dominar. O execrado e xingado burguês, uma vez que essa palavra estava condenada, não seria mais chamado de burguês, seria chamado de empresário e seria tratado como herói, como o grande provedor do emprego e do desenvolvimento. Tudo isso sem que se desse o menor sinal de que era uma maneira de fazer propaganda sem declará-la. Declarada seria apenas a propaganda dos governos militares, que tentaram popularizar um tipo de nacionalismo que acabou tão impopular quanto a ditadura.  

 

Foi no Governo Geisel que a prioritária luta contra a resistência armada chegou ao fim e se deu ênfase ao desenvolvimento do país, especialmente o industrial. Foi o tempo de uma política chamada de estatizante devido ao fato de o governo ter ele próprio tomado a iniciativa. Era uma substituição das diretrizes preparadas pelos golpistas civis de 1964, principalmente daquelas deixadas por Roberto Campos. Mas os militares pagariam caro por esse desvio, embora para o povo brasileiro o preço fosse ainda maior. A burguesia brasileira não aderiu àquele ambicioso sonho de industrialização do país com endividamento externo. Por isso, só a ditadura levaria a culpa pela dívida externa e pela crescente inflação dos anos seguintes. Sem dúvida, problemas graves que os componentes civis daquela ditadura saberiam aproveitar. Afinal, pouco a pouco, nos anos de transição para a volta das instituições políticas liberais, eles cultivariam de modo maniqueísta as relações entre estatização e privatização, passando a idéia de que a ditadura teria sido de total responsabilidade dos militares e que eles a teriam realizado devido a terem um projeto estatizante para o Brasil. E assim aqueles remanescentes civis da ditadura foram preparando o país para aceitar um processo de privatização, de preferência entreguista, acompanhado de progressiva quebra da legislação de proteção social aos trabalhadores, que seria finalmente desencadeado no Governo Fernando Henrique Cardoso, em nome da democracia.

 

Com efeito, ainda no Governo do General Figueiredo veio, como prevista e necessária, a abertura, processo de reorganização institucional e de transferência do comando do país que, apesar dos atentados a bomba dos mais extremistas da linha dura, deveria ser realizada de acordo com o que havia sido planejado pelos dois últimos presidentes militares e por uns poucos colaboradores mais próximos. Eles pensaram que ao fim da ditadura fosse emergir um Brasil nacionalista, industrializado, com população qualificada e com estrutura básica de serviços bem desenvolvida, no qual, preservando-se como estatais as indústrias de base, as demais deviam ser objeto de privatização. Ao contrário do que idealizaram, porém, não foi bem assim que o Brasil saiu daquela ditadura que não foi derrubada. O comando da história realmente não lhes pertencia.

 

Cada vez mais isolados, eles nem sequer conseguiram eleger o presidente seguinte à abertura. Já na convenção do PDS, Paulo Maluf impediu a sucessão preparada para Mário Andreazza. Em seguida, dissidentes do próprio PDS apoiaram Tancredo Neves do PMDB e com ele vingaram-se de Maluf no Colégio Eleitoral. E um daqueles dissidentes, José Sarney, eleito vice-presidente, tomou posse na Presidência sem que Tancredo Neves, eleito para ela, mas doente e à beira da morte, a tivesse tomado. E o Brasil saiu da ditadura militar tendo como presidente um civil que a apoiara desde o seu início, mas que não fora indicado por ela para ser o seu sucessor, nem teria sido eleito para aquele mandato caso tivesse se candidatado a ele. Porém, logo após a sua posse ilegal transmitida para todo o país, foi apoiado pelos comandantes da reciclagem de valores levada a efeito pelos meios de comunicação de massas e também por aqueles que haviam lutado na campanha por anistia ampla geral e irrestrita e na chamada campanha das diretas já, das quais ele não participara.

 

Mas no fim de tudo aquilo já havia no país uma população cada vez mais individualista, que em pouco tempo depois da reorganização institucional levada a efeito com a Constituição de 1988, como tanto quiseram os velhos golpistas, mostrou-se capaz de dar resultados eleitorais de caráter conservador com regularidade e sem mais correr o perigo de resultados eleitorais getulistas. Sem dúvida, o que havia restado do domínio eleitoral do getulismo terminou nas localizadas vitórias eleitorais de Brizola, hoje superadas. A tendência individualista do novo eleitorado brasileiro apareceu logo na primeira eleição direta para a Presidência sob a Nova Constituição. E mostrou a sua evolução quando, por maioria absoluta, elegeu e reelegeu Fernando Henrique Cardoso, sociólogo tido em tempos um pouco anteriores como notório esquerdista, mas que representou essa tendência e veio a ser o presidente mais importante para o avanço das orientações neoliberais no Brasil. Ele foi um bom exemplo de que a reciclagem de valores não veio apenas para formar novas gerações. Ela também reformou, reeducou ou fez coisa parecida com muita gente das velhas gerações, dos velhos ideais, das velhas contestações. Por isso, não há surpresa quando um antigo operário transformado em político profissional vence as eleições presidenciais e em seu mandato dá continuidade não só ao governo anterior, do qual se disse oposição, mas à própria história comandada pelas eminências pardas do golpe e da ditadura militar.

 

Com efeito, tudo isso ocorre num país cuja estrutura básica de serviços está há muito tempo em colapso; num país cada vez mais endividado; num país que controlou a inflação que corroía os salários apesar da correção monetária e agora não os corrige mais sob a desculpa de se ter reduzido a inflação; num país de alto índice de desemprego; num país com crescentes índices de criminalidade; num país que está passando por uma privatização entreguista e que está perdendo as suas indústrias de base; num país que tem a sua moeda subordinada ao dólar; num país em que o fim progressivo da legislação de proteção social vem sendo anunciado, por exemplo, nos muitos contratos de trabalho ora feitos à margem da CLT [5] ; num país em que a definição do valor do salário mínimo em função da contabilidade oficial e não em função das necessidades básicas dos trabalhadores está consolidada; num país em que o aumento do percentual salarial das contribuições previdenciárias e as reformas da Previdência que postergam as aposentadorias e as oneram quando obtidas são facilmente aprovadas no Congresso; num país em que a queda da qualidade da educação pública e gratuita em todos os níveis é constante; num país em que a queda da qualidade do atendimento médico público e gratuito é assustadora; num país em que a expansão da comercialização de direitos previdenciários e expansão da comercialização do ensino e dos serviços de saúde são cada vez mais incentivadas; enfim, num país que não tem hoje nenhuma perspectiva de mudança de rumos e nenhuma possibilidade em vista de sair das condições em que foi atirado. 

 

Não há dúvida: está em andamento aquilo que, no exercício da Presidência, Fernando Henrique Cardoso chamou de fim da Era Vargas. Foi esse o maior dos objetivos do golpe de 1964. Se custou a aparecer com clareza foi em grande parte devido aos governantes militares. Eles chegaram até mesmo a tomar iniciativas que não foram contraditórias com as de Getúlio. Além disso, protegeram e fortaleceram instituições criadas nos governos getulistas e que estavam na mira dos golpistas civis para serem derrubadas ou privatizadas. Os militares não entenderam a fera à qual se aliaram, à qual deram proteção, que vieram a soltar e que pregou ao lado deles outra reciclagem de valores. Essa fera não foi apenas a autora eventual do golpe, como eventuais foram os militares. Ela, de formação nacional e internacional, foi a autora histórica daquela ruptura política, cujos objetivos, 40 anos depois, com o país sob o seu comando liberal, ou neoliberal, continuam sendo realizados. Quanto a Stanislaw Ponte Preta, não deixou sucessores que pudessem escrever sobre esses anos. E que não se faça deles tema de enredo para nenhum carnaval vindouro.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BENEVIDES, M. V. M. A UDN e o Udenismo. Rio de Janeiro. Ed. Paz e Terra, 1981.

 

BRANCO, C. Castello. A Renúncia de Jânio – Um depoimento. Rio de Janeiro. Ed. Revan 3ª edição, 1996

 

GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo. Companhia das Letras, 2002.

 

____________. A Ditadura Escancarada. São Paulo. Companhia das Letras, 2002.

 

____________. A Ditadura Derrotada. São Paulo. Companhia das Letras, 2003.

 

____________. A Ditadura Encurralada. São Paulo. Companhia das Letras, 2004.

 

GORENDER, JACOB. Combate nas Trevas. São Paulo. Editora Ática, 4ª edição, 1990.

 

NETO, Lira. Castello: a marcha para a ditadura. São Paulo. Editora Contexto, 2004.

 

PONTE PRETA, S. FEBEAPÁ: 1° Festival de Besteira que Assola o País. São Paulo. Círculo do Livro.

 

SILVA, H. e RIBAS, M. C. Os Presidentes. Coleção com vários títulos. Grupo de Comunicação Três, 1983.

VICTOR, Mário. Cinco Anos que Abalaram o Brasil. Rio de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira, 1965.

 

DOCUMENTOS

 

Revista O Cruzeiro. Extra: Edição Histórica da Revolução, publicada em 10 de abril de 1964. cedida por Alcinéia Fontes Barros, a quem agradecemos.

 

 

RESUMO: A partir de críticas do cronista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, o artigo questiona o papel dos militares no comando da história do Brasil durante os anos da chamada ditadura militar, procurando destacar a participação de civis no golpe de 1964 e na reciclagem em favor de valores individualistas conduzida com a finalidade ainda não totalmente cumprida de levar o país ao fim da Era Vargas.

 

PALAVRAS-CHAVE: democradura, civis, militares e ditadura.

 

* Professor de Ciência Política do IFCS da UFRJ e do IFCH da UERJ. valterduarteff@yahoo.com.br

 

** Professora de Sociologia da Universidade Estácio de Sá. ezildaferreira@bol.com.br



[1] Festival de Besteira que Assola o País.

[2] Um bom exemplo da irreverência de Sérgio Porto em relação ao quadro político daquele tempo e do que pensava a respeito está na seguinte explicação: O resumo abaixo...junto com as crônicas que motivaram a série de livros...e aqui relembrados. Vão na base da bagunça, para respeitar a atual conjuntura, e sua ordem é apenas cronológica. (Ponte Preta, s/data: 10)

[3] Verso da música Pra Frente Brasil de Miguel Gustavo, de incentivo à seleção brasileira de futebol por ocasião da Copa do Mundo de 1970, a mais tocada nos meios de comunicação de massa antes e depois da sua conquista. Foi usada e abusada pelos que apoiavam a ditadura.

[4] É preciso esclarecer que o significado que damos à palavra socialismo nada tem a ver com o seu atualmente alastrado emprego como eufemismo de comunismo. Para nós, ela tem o seu significado original de alternativa administrativa do capitalismo, na qual o governo seria um provedor geral de condições para as ações burguesas e de garantias sociais para os trabalhadores, oposta, portanto, às alternativas derivadas do individualismo.  

[5] Consolidação das Lei do Trabalho, Decreto-lei n° 5.452 de 1° de maio de 1943.

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