E O QUE FAZEMOS COM O DESEJO? REFLEXÕES SOBRE O “ESPÍRITO” DO CAPITALISMO EM SCARFACE

 

Augusto Oliveira*

 

1. Desejo e Capitalismo.

 

O problema do descentramento do desejo no capitalismo já foi posto e reposto por inúmeros clássicos do pensamento social a começar por Karl Marx tanto na sua teoria da alienação do trabalho como na teoria do fetichismo. Afastado do controle da produção e do produto e expropriado dos meios produtivos, o trabalhador estabelece uma relação de estranhamento com sua atividade que acaba perpassando toda sua vida: o trabalho se afasta do desejo e assim este ganha uma forma abstrata e de difícil reconhecimento pelo próprio indivíduo. Na teoria do fetichismo da mercadoria, temos uma expansão desta visão: a mercadoria, ao se transformar em uma espécie de indivíduo na mente do indivíduo, acaba por desejar no seu lugar a tal ponto que o indivíduo propriamente dito está inteiramente à mercê desta mercadoria (seja como trabalhador assalariado comprometido com sua fabricação seja como consumidor portador de dinheiro ávido pela satisfação que ela promete).

 

Houve ainda quem unisse tal contribuição à psicanálise. Na psicanálise, a frustração de nosso narcisismo primário é nossa porta de entrada no mundo dos adultos. A partir do dia em que notamos não sermos “um” com o corpo de nossa mãe (portanto, não tendo assegurado a nossa condição perfeita de corpo auto-suficiente de afeto e por isso narcísico), devemos concordar em usar um artifício não criado por nós para chamarmos a atenção desta mãe: a linguagem e posteriormente, as regras sociais como um todo. Este desvio estruturaria nossa relação com nossos objetos de desejo que, segundo cremos, irão nos devolver nossa perfeição perdida: nunca o fazemos de maneira direta mas, observando a maneira socialmente aceita para tal satisfação. Vivemos, portanto, a eterna fantasia nunca satisfeita de uma descarga absoluta de nosso desejo num objeto primitivo através de numa relação igualmente primitiva (não social). O que a crítica psicanalítica do consumismo nos diz é que o discurso publicitário se faz mediante uma promessa de efetivação dessa fantasia primitiva (só que sob a forma externa e aquisitiva). Os impulsos originários, no entanto, ao invés de serem satisfeitos, são simplesmente substituídos por seus similares mercantis.

 

Dentro desta corrente podemos citar a valiosa tese da dessublimação repressiva defendida por Hebert Marcuse nos anos 60, assim como inúmeras outras. Numa elaboração mais recente sobre o tema, a psicanalista Maria Rita Kehl, elaborando uma ponte entre as contribuições de G. Debord e T. Adorno, conclui: o mundo espetacular das mercadorias feitas para se parecerem com nossas demandas inconscientes (nossos desejos de recuperação do narciso perdido), ao invés de estimularem nossa produção subjetiva (como muitos teóricos sociais afirmam) leva a desacostumarmo-nos de nossa subjetividade (KEHL 2004). Para corrobora este ponto, evoco a colocação de Michel Schneider (SCHNEIDER 1977) - espécie de herdeiro alemão da Escola de Frankfurt – na qual se estabelece uma oposição entre afetos íntimos e a fixação dos afetos pelo discurso publicitário.

 

“Neste sentido, um quadro patogênico da ‘sociedade de consumo’ é cada vez menos caracterizado pelos clássicos conceitos freudianos de doença... [o consumidor] inclina-se a desejar somente aquilo que pode consumir, isto é, aquilo que dá lucro ao capital. Uma vez que seus desejos ‘autênticos’ foram deformados a ponto de se tornarem irreconhecíveis, sua frustração já não é sentida como sofimento. Se o neurótico clássico sofria pela não realização de seus desejos de infância, o capital aparentemente aliviou-o desse sofrimento apresentando-lhe por toda parte o clichê e o decalque estandartizado desses ‘desejos infantis’... Satisfazendo a ‘libido’, o desejo de prazer, na forma do prazer de comprar, integrou-se no princípio capitalista de realidade.” (SCHNEIDER p 311).

 

 

Creio que a posição acima precisa ser matizada por, pelos menos, dois tipos de considerações. A primeira diz respeito ao caráter relativamente datado do prognóstico: ainda que correto, Schneider nos anos 70 não pôde acompanhar a progressão de tal “doença sem sintoma” que seria o mergulho festivo nas possibilidades consumistas. Hoje, psicanalistas parecem inclinados a pensar que o esquecimento do próprio desejo seja, sim, um fator patogênico: fala-se da depressão como epidemia. Num mundo de tantas promessas de felicidade, as pessoas se sentem culpadas ora por não estarem felizes ora com o fato de que a procuram através do frio caminho do consumo (Kehl 2004 B). Além disso, há uma questão mais profunda que é a análise excessivamente unilateral do discurso publicitário, uma análise que acredita demais no poder deste discurso fazer o que promete: operar a troca entre desejos autênticos e mercadorias. Aliás, apesar de ser possível definirmos “desejos autênticos” como aqueles elaborados em relações interpessoais reais (como, por exemplo, no complexo edipiano), não se deve exagerar a pureza de tais desejos em relação à distância (maior ou menor) daquilo que os grandes veículos de comunicação produzem.

 

Portanto, mesmo chamando atenção para o fato de que não se deve exagerar na mútua exclusão entre desejos autênticos (ou afetos íntimos) e decalques oferecidos pelo discurso publicitário (ou metas abstratas), este artigo é um exercício de reflexão sobre as várias possibilidades desta polaridade. Seguindo a inspiração de autores como Fredric Jameson e Slavoj Zizek que, recorrentemente, usam o cinema como oportunidade privilegiada de reflexão sobre o imaginário da sociedade atual, reedito aqui tal experimento. Proponho exercitarmos esta polarização entre “afetos íntimos” e “metas abstratas” na análise da produção cinematográfica estadunidense Scarface. Refiro-me, no caso, ao remake feito pelo diretor Brian de Palma nos anos 80 de um antigo filme de gangsteres.

 

 

2. Amor por Vingança (ou a arte de amar aquilo que se odeia).

 

Tudo começa pelo trailer do filme que apresenta o personagem principal do filme, Tony Montana, sob a seguinte epígrafe: Ele amou o sonho americano com o ardor da vingança. A frase se refere à história básica do filme: um ex-presidiário cubano que chega à Miami e acaba se tornando um milionário barão da cocaína. Existe nela um sentido mais profundo que só é descoberto numa leitura mais fina do filme, o fato de amar o sonho americano com o ardor da vingança, fará de Montana um eterno insatisfeito com suas próprias conquistas. Para explicar tal ponto, no entanto, a trajetória geral do personagem precisa ser analisada.

 

Várias de suas falas deixam transparecer que ele, desde os tempos em que vivia em Cuba, tomava os EUA como uma espécie de banco onde a “dívida de desejos” da sociedade cubana podia ser saldada. Em determinado momento, este homem de uns 35 anos diz: Este país é como uma grande boceta esperando para ser fodida, se tivesse chegado aqui há dez anos, já teria meu próprio barco, meu carro e meu campo de golfe. No curto período em que fica lavando pratos numa lanchonete em Miami, ele diz: Minhas mãos deveriam ser usadas pala recolher ouro (e não para cortar cebolas). Posteriormente, quando ainda é um simples auxiliar de entregas de drogas, diz que quer o mundo inteiro e tudo que existe nele. Por motivos impossíveis de serem avaliados genericamente, a utopia do sonho americano teria feito em Montana um melhor trabalho. Os filmes de Hollywood (veículo primeiro da divulgação deste mito em escala mundial), com seus enredos nos quais um indivíduo isolado alcança a vitória contra tudo e contra todos, costumam ser consumidos como lenitivo para a sensação de impotência cotidiana. No caso de Montana, ele teria levado a sério demais tal mitologia[1].

 

Mas Montana jamais relaxa e aproveita o dinheiro que ganha com o crime. Por quê? Para conseguir subir no mundo das drogas, Montana precisou endurecer. Durante o filme, ele renunciará cada vez mais seus afetos sensíveis e imediatos em nome da meta (abstrata e genérica) de ter o mundo. Isso está representado quando, para não perder sua primeira grande chance de entrar no mundo das drogas, deixa que um amigo (aparentemente bem próximo) seja morto de forma cruel. Para um ex-presidiário cubano, a efetivação do sonho americano tinha um custo maior, até porque, mesmo depois de milionário, ele continuará ouvindo colocações pejorativas sobre ter vindo de baixo. Este custo, que ele continua pagando durante toda a sua vida, é o que fará dele uma pessoa amargurada e infeliz. Ele só pode realizar o sonho americano enquanto vingança e não enquanto sonho pacificamente transformado em realidade: ele permanece inadequado do início (pobre) ao fim (milionário) odiando amar um sonho que não é para ele.

 

 

3. A cena perdida

 

Com as vantagens do sistema DVD – tecnologia que deu novo impulso eufórico ao consumo conspícuo que nos enfurna em nossas casas e nos dá a sensação de estarmos cheios de informação-, vários filmes têm sido relançados com informações extras que excitam nossos sentidos. Foi através de um destes objetos de consumo que tive acesso a uma cena cortada de Scarface. A cena é a seguinte: preparando-se para seu primeiro serviço criminoso relevante, quatro cubanos passeiam pela praia de Miami Beach, Tony Montana é um deles. Um dos membros do bando (que sabemos, irá morrer na cena seguinte) se diz preocupado por não ter tido tempo de fazer oferendas para Xangô – segundo ele, a entidade protetora dos bandidos. Com um tom enraivecido, Montana lhe diz: Não existe Deus e não existe Xangô. Se quiser sorte, corra atrás dela. Nós estamos nos EUA, portanto, aja de acordo! Neste fala, temos, mais uma vez, o horizote contraditório em que se encontra o personagem principal.

 

A leitura mais imediata da frase nos levaria a pensar que ela revela a perspectiva de um individualista possessivo radical. No entanto, isto não é tudo: quando Montana diz para o colega agir de acordo, está, sobretudo, lembrando a si mesmo de que aquele é um modo alienígena de agir e que o preço a pagar por todo o poder e riqueza que eles desejavam era fingir, ou ainda, convencer-se a agir de forma alienígena. Refiro-me ao modo empreendedor de agir que os bandidos encarnam tão bem: há uma causa maior a ser conquistada (poder e dinheiro) e principalmente maior do que qualquer demanda imediata que se ponha no caminho. Por isso, Montana e seu amigo não podem se dar ao luxo de acreditar em Xangô por que, em algum momento, a entidade pode lhes exigir algo que lhes tire da sua meta. O empreendedor não pode se dar ao luxo de atrasar uma entrega de drogas para fazer um ritual religioso. A cena em questão torna isso mais explícito pelo fato de retratar cubanos pobres poucos afeitos aos modos estadunidenses. No entanto, não é sobre ser cubano ou estadunidense que trata a fala de Montana, mas, sobre a condição de ser, antes de tudo, um “homem de negócios”. Independente de cubano, estadunidense ou colombiano, a cultura e a lealdade do “homem de negócios” só podem ter uma finalidade: a cultura de conservar e aumentar seu dinheiro e a lealdade absoluta a esta meta.

 

Apesar de aparentemente convencido de que este é o melhor dos mundos, por causa das recompensas genéricas de riqueza e poder tão propaladas por todos os poros sociais, Montana irá estabelecer relações contraditórias com este visão de que tudo vale a pena em nome de conseguir poder e dinheiro. Este é o caso de uma das cenas mais importantes do filme na qual Montana não é capaz de agir de acordo. Trata-se de uma longa seqüência de acontecimentos que levam o personagem a uma encruzilhada na qual ele precisa ajudar seus parceiros criminosos a assassinar um desafeto deles (que não chega a ser desafeto de Montana). Desde o começo desta seqüência, vemos um Montana ainda mais inquieto e insatisfeito que o normal. Ele passa inclusive a consumir sua própria mercadoria (cocaína) em doses generosas. Por quê? A resposta é simples: desta vez ele teria de participar da morte de alguém que mal conhecia, de alguém que não o havia prejudicado diretamente. Este é um novo impasse entre o compromisso de Montana com sua meta de poder e dinheiro e seus “afetos íntimos”. No momento em que descobre que, para realizar tal empreitada, toda a família (mulher e filhos) do desafeto teria de ser morta, ele chega a seu limite de renúncia interior. Vindo de uma família desfeita e incapaz de criar a sua própria (já que a convivência com sua mulher é um desastre), Montana não agüenta a imagem de uma família feliz sendo destruída: ele, não só se recusa a participar, como salva a família da morte evocando contra si a ira de seus antigos parceiros comerciais.

 

 

4. A mulher do chefe

 

Um dos elementos complicadores do filme é o fato de que Montana não é um tipo mulherengo; ao contrário, ele cria uma espécie de fixação pela mulher de um grande traficante para o qual começa a trabalhar, ou seja, seu chefe. Ela, por sua vez, rechaça-o até o momento em que ele se torna um traficante ainda mais poderoso que seu (futuro ex-) marido. Sem demonstrarem muito entusiasmo, os dois se casam e dão início a uma vida conjugal desastrosa. Analisemos os conflitos do casal. Para Montana, a sensual mulher do chefe aparece mais como uma meta (abstrata) que qualquer outra coisa: uma estonteante loura que raramente fala ou sorri é tida por ele como a mulher certa para acompanha-lo até o topo. Ela é a melhor encarnação do sonho americano que ele pôde conhecer: loura, sexy, consumista ao extremo, blasé e lânguida. No entanto, conseguida esta meta, ele descobre que o objeto de desejo conquistado em nada se encaixa nos seus afetos íntimos (desejo de ter filhos e uma típica rotina conjugal). Sobre Elvira, sua esposa, não se chega a descobrir nada muito específico, apenas que ela é vítima de um cotidiano em que todos os excessos do sonho americano (luxo, roupas, jantares e drogas) são satisfeitos. O resultado disto é um esvaziamento da capacidade de desejar (também conhecido como depressão).

            

Podemos usar a imagem do roubo da mulher do chefe como típica metáfora da competição capitalista e, por isso mesmo, crítica ao mito meritocrático. Costuma-se defender doutrinariamente o capitalismo como o reino das oportunidades onde todos podem conseguir o que desejam por mérito sem tirar nada de ninguém. Sobre a mentira desta colocação, há uma vastíssima produção historiográfica que tem como um de seus marcos o capítulo XXIV de O Capital em que Marx conta a origem das grandes fortunas em mãos de burgueses: roubo (às vezes amparado pelo Estado) de terras e dinheiro público, pirataria e toda sorte de atividades ilegais e parasitárias. Não só não é possível que todos tenham uma oportunidade justa dentro do sistema de competição ou mesmo de consumo (são conhecidas as pesquisas que revelam que, se a população mundial consumisse com a voracidade da população estadunidense, o planeta ficaria rapidamente exaurido), como os que brigam dentro do sistema de competição precisam provocar quedas alheias para se manterem dentro do jogo. Nesse sentido, roubar a mulher do chefe é somente um desdobramento de se tornar chefe.

       

É bem verdade também que dinheiro e poder, por serem prêmios inespecíficos, são mais universalistas que o amor de uma mulher. No entanto, como diz o próprio Montana: nos EUA, você precisa de dinheiro e poder para conseguir mulheres. Foi com dinheiro e poder que ele tirou a mulher do chefe, mas, talvez até mesmo por ter usado de tal estratégia e se ligado a alguém de estratégia semelhante à sua, não conseguiu uma carinhosa mãe para seus filhos. Montana usou a estratégia para conseguir mulheres (genericamente falando) para tentar adquirir uma companheira leal. Talvez, ao invés de erro, a opção de Montana por Elvira representa a encruzilhada em que ele se encontra diante: preferiria ele conquistar o dinheiro que pode ser revestido em possibilidades infinitas de prazeres (inclusive ou principalmente sexuais) ou uma família feliz de pessoas que se prezam umas às outras? Qual alternativa era mais importante? Ele podia ter as duas? Talvez não. Exploro mais este na seção seguinte.

 

 

5. Reencontro com a família

 

         Apesar de alegar para o Departamento de Imigração que não tinha família nos EUA, descobrimos a família de Montana já em meados de sua narrativa: depois de começar sua ascensão, ele resolve visitar sua família que não lhe vê a mais de cinco anos (pelo fato dele ter estado preso em Cuba). Vestido como um outro Tony (o Tony Manero de Embalos de Sábado à Noite), Montana ouve sua irmã e mãe sem muita atenção e, no meio da conversa com a primeira, tira um bolo de dólares do bolso e diz: minha irmã não vai ser cabeleireira e minha mãe vai largar a fábrica. Montana não está errado: dentro da tradicional cultura machista, o homem da casa deveria prover sua família de tal forma que ninguém desta casa precisasse conhecer o struggle for life, a guerra pela sobrevivência. Esta ideal, porém, nunca chegou a ser acessível aos pobres como a família de Montana. Como afirma Marx, foi o capitalismo que destruiu a família transformando-a numa estratégia racional na qual as pessoas usam-se umas às outras para poder sobreviver. Com o ardor da vingança (ou seja, tornando-se bandido), Montana contraria seu destino social e se torna potencial provedor absoluto da irmã e da mãe.

 

         Nesta cena, devemos ver com o interesse o choque entre o discurso tipicamente capitalista de Montana e o discurso tipicamente “classe média” de sua mãe. Para Montana, não importa a origem do dinheiro, mas o fato dele nos afastar de privações e humilhações. Em suma,para ele, o dinheiro impõe respeito. Para sua mãe (num comportamento típico daquilo que R. Merton chamava de ritualismo), o que importa é trabalhar para viver, ou seja, cumprir as regras. Estas duas figuras são inconciliáveis. Montana decide então insistir com a irmã teenager. Escondido da mãe, ele lhe dá o maço de dinheiro recusado pela mãe e diz: uma menina de 19 anos precisa se divertir, saia um pouco, compre umas coisas para você, não fique só trabalhando.  Mais uma vez seu contraditório conceito a respeito da boa vida vem à tona. De um lado, o bom da vida segundo Montana, é aproveita-la através daquilo que o dinheiro pode comprar: conforto, diversão e uma mente despreocupada da necessidade de pagar às contas ao final do mês. Por outro lado, sua felicidade concreta em encontrar Gina (a irmã) não dependia efetivamente de nenhum destes fatores.

 

Na conciliação que fazemos diariamente desta contradição, nós, pessoas comuns que trabalhamos para viver e nos furtamos de “aproveitar a vida” para pagar as contas, geralmente criamos um meio termo em que alegrias dos “afetos íntimos” (estar com a família ou conviver com pessoas que prezamos) suprem a frustração das horas trabalhadas mal pagas que quase nunca nos permitem oferecer aos nossos queridos o que gostaríamos. Montana pensa de outro jeito: a alegria de rever a irmã não o conduz imediatamente a um abraço emocionado; a primeira coisa que faz quando vê a irmã é tirar do bolso a jóia que havia comprado para ela. Seria possível para ele ter o dinheiro e ter a família? Não. Para dar à mãe a quantidade de dinheiro que ele considera suficiente, precisa realizar atividades que a mãe desaprova. Para fazer o mesmo pela irmã, ele submerge num mundo que não deseja para irmã[2]. Quando escolhe uma esposa que combine com sua ascensão ao mundo do poder e do dinheiro, ele determina que não terá uma mãe para seus filhos. A própria atividade que lhe dá tal acesso, lhe incompatibiliza com a função de pai. Montana não pode ter as duas coisas. Numa briga, a mulher lhe diz que considerava bom nunca ter engravidado dele, pois ele poderia estar morto antes mesmo que as crianças o conhecessem.

 

 

6. Montana: vítima e intérprete.

 

Num dia de especial mau humor, Montana conversa com sua esposa: esta pinta as unhas enquanto se droga e ele assiste à televisão na banheira de hidromassagem. Vendo o absurdo da cena (que se passa às 19 horas, portanto, não estamos falando de uma situação propícia para o uso de cocaína como uma festa), Montana diz que a mulher está exagerando. Ela responde: você devia saber que nada dá mais prazer que o excesso! Aliás, se juntamos esta fala com uma anterior na qual Elvira diz que os EUA são o lugar das oportunidades para imigrantes vindo de lugares pobres mas não para ela, temos em Elvira uma poderosa análise. No conflito entre Tony Montana e Elvira, sabemos que, para o primeiro, o “sonho americano” (expresso na frase publicitária O MUNDO É SEU que aparece simbolicamente algumas vezes no filme) é uma representação inflacionada e manipulada do sonho de ter o mínimo para uma vida familiar satisfatória. Já para a loura Elvira, que possivelmente teve este mínimo na sua história familiar, o sonho americano revela sua verdade obscena: a possibilidade infinita de consumo que destrói a própria capacidade de desejar e que, numa etapa avançada, oferece o ato em si do consumo aleatório e/ou compulsivo como única representação (já estranha de si mesma) do desejo. Elvira sabe que o sonho americano não é apenas ter belas roupas e uma casa luxuosa: tal ilusão é válida para  neófitos como Montana. As possibilidades de consumo e as incitações aos desejos são tão extensas que o desejo se coloca no próprio ato de consumir coisas sem nenhuma razão substantiva (como por exemplo, cheirar cocaína as sete da noite enquanto se pinta as unhas), por isso, só o excesso em si traz a esperança de algum prazer.

 

Em outra cena, já no auge de sua riqueza e ostentação, Montana se vê num sofisticado restaurante jantando com sua mulher (que está mais uma vez drogada) e com seu fiel amigo (com quem está parcialmente rompido por causa de um negócio mal sucedido). Bêbado, ele conclui: Então é isso? Então é só isso? Comer, beber, transar, chupar e cheirar... Foi para isso que eu me matei de trabalhar? Com clareza absoluta, Montana desvenda o mistério do desejo na sociedade de consumo: não se trata efetivamente de alimentar cada desejo íntimo, mas de borra-los na sua substituição por decalques mercantis (criados para se parecer com tais desejos íntimos). A frase de Montana evoca a observação de Marx segundo a qual, quando é incapaz de obter satisfação com aquilo que seria especificamente “humano” (impor ao mundo exterior os desígnios da sua vontade), o homem passa a só encontrar prazer exatamente naquilo que ele compartilha com os animais: alimentar-se e praticar sexo.

 

Aliás, no fim desta cena, temos outra representação da “verdade obscena” no capitalismo. Depois de ser agredido por sua mulher (que o chama de traficante e assassino em altos brados) e notar que todos em volta estão horrorizados com a cena, o ex-lavador de pratos latino grita para os presentes: Vocês (ou seja, milionários respeitadores da lei e dos bons costumes que herdaram suas fortunas e não precisaram endurecer para alcançar fortuna) acham que são melhores do que eu? Não, vocês não são bons... vocês precisam de um cara como eu para apontar e dizer” aí vai um cara mau”.  A frase de Montana revela a descontinuidade entre as estratégias revolucionárias da acumulação primitiva e as estratégias conservadoras do capitalista bem estruturado, em suma, a tensa relação entre os que estão na fase de quebrar ovos para alçar a posição de capitalistas e aqueles que já encontram a omelete preparada pelos antepassados. Para estes últimos, a figura de Montana é a lembrança de uma verdade desagradável: seu apego às leis e aos bons costumes nada mais é que uma estratégia de proteção do patrimônio legado por herança e fruto da anarquia e dos maus costumes de seus antepassados[3].

 

 

7. Montana, a razão cínica e o medo sincero.

 

Pego numa operação policial, o personagem de Al Pacino vai para a cadeia acusado de uma série de crimes. Paga cinco milhões de dólares para responder o processo em liberdade. É neste momento em que ele tem uma conversa com o advogado. O primeiro diz: você me dá mais 200 mil dólares que eu consigo te livrar da acusação de conspiração mas, vão te pegar por sonegação... dá uns cinco anos de cadeia mas consigo que você saia em 2. Nervoso, Montana devaneia dizendo que dará ao advogado um total de 800 mil dólares para que ele compre a Suprema Corte. O advogado não recusa a oferta, mas diz que sua condenação por sonegação é certa e não existe chance para livra-lo  Este diálogo nos leva ao tema da “razão cínica”.

 

A questão é seguinte. Correntes de pensamento ocidental viram a racionalização da vida social (expressa em tanto fatores do mundo contemporâneo como leis, estatutos, tecnologia, previsões científicas, horários e datas pré-estabelecidos...) como um instrumento de reconstrução humana do mundo (no caso de um Max Weber ou assemelhados). Contra estas correntes, existem aquelas que denunciam o fato (evidente no próprio personagem que estamos analisando) de que esta racionalização é inconsciente a respeito de seus próprios motivos (motivos, por sua vez, nada racionais). Tais correntes (entre as quais podemos incluir herdeiros de Marx mas também Nietzsche e Freud[4]) ressaltam as diversas formas de auto-engano através dos quais motivos inconfessáveis da ação são recobertos pelas mais belas justificativas racionais. O debate sobre a razão cínica se referiria ainda a uma terceira posição: ele seria a conclusão de que, nos dias de hoje, cada vez mais as pessoas têm consciência dos reais motivos (inconfessáveis) de suas ações e que, mesmo assim, permanecem fiéis ao seu modo de agir, usando o disfarce dos argumentos racionais. Acionistas de uma empresa sabem claramente que não pautam a sua ação pela possibilidade de promoverem bem estar geral e melhorarem a vida de todos: eles agem apenas para aumentar seu montante; eles sabem disso, provavelmente sabem que pioram a vida de várias pessoas enquanto fazem isto e, ainda assim, o fazem.

   

Certamente, esta é a racionalidade presente no diálogo entre Montana e seu advogado: ambos sabem que a atividade de Montana é ilegal e recriminável, que esgarça as instituições sociais[5], assim como ambos sabem que as manobras jurídicas que planejam só servem para camuflar este fato e que deslegitimam a imagem do aparato jurídico como produtor de justiça. No entanto, nem todo o discurso é tão autoconsciente: quando Montana, lembrando da experiência que viveu em prisões cubanas, recusa-se a aceitar o fato óbvio de que irá para a cadeia, ele não enxerga esta possibilidade de maneira cínica. Ele, apesar da fala seu parceiro Manny, deliberadamente se recusa a antever as regalias que terá na prisão em comparação aos tempos de Cuba (o que certamente o ajudaria a aceitar cinicamente a punição). Ele não aceita a troca (cinicamente justa) que é legalizar seu império construído inteiramente através de crimes graves com uns dois aninhos por sonegação. Mais uma vez, este personagem se deixa levar por outros sentimentos além daquele que o manda fazer de tudo para acumular dinheiro e, mais uma vez, isto prejudica sua atividade empreendedora.

 

 

8. Conclusão

 

         Fiquei tentado numa seção anterior (A Cena Perdida) a enfrentar a seguinte questão: haveria diferença entre a meta abstrata de conquistar poder e dinheiro e outra meta abstrata qualquer, como por exemplo, aquela que transformação social buscada num determinado um ativismo político? Se criticamos o processo de destruição interior por conta da busca pelo dinheiro, não haveríamos de criticar também aqueles personagens reais do documentário de Eduardo Coutinho, Peões, que dizem terem perdido anos do convívio familiar em nome da construção de um sindicato e de um partido político? Sem resolver tal questão, encerro apenas apontando que, para se pensar tal questão, devemos empregar uma crítica à tese de que nossa era é marcada por um esvaziamento das utopias. Não vivemos um vazio de utopias, mas um momento específico da “luta de classes” dentro da elaboração utópica.

 

Explico-me. Existem utopias que entendem o mal-estar do homem cotidiano que se sente incapaz como decorrência da própria forma de organização social e, como tal, situam as expectativas de redenção social numa ação coletiva direcionada a impor mudanças a este cotidiano. As utopias políticas (e entre elas, as utopias de mudança social reformista ou revolucionária) encarnam este modelo utópico. Por outro lado, existem utopias que situam o mal-estar como resultado de uma situação individual que se vive num universo social não problematizado; a redenção para estes viria da manipulação da própria trajetória individual dentro deste quadro. A utopia consumista (a redenção através do consumo) é um bom exemplo desta visão. Nosso tempo parece ser aquele na qual a utopia consumista tem tido melhores condições para captar nossos anseios de redenção que quaisquer utopias políticas. Neste tempo, as escolhas de Montana, sendo personagem fictício, podem ser mesmo mais verossímeis que as de muitos personagens reais adeptos de utopias políticas.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA:

 

JAMESON, F. (2001) A Cultura do Dinheiro: ensaios sobre a globalização. Ed. Vozes, Petrópolis.

 

KEHL, M. (2004) “O Espetáculo como meio de subjetivação” in Videologias (orgs. M. Khel e E. Bucci),  Ed. Boitempo, São Paulo.

 

KEHL, M (2004 B) “Saúde Mental”, Entrevista concedida à Revista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Brasileira, ano 56, n. 4, São Paulo.

 

SCHNEIDER, M. (1977) Neurose e Classes Sociais. Uma síntese Freudiano-Marxista, Zahar Editores, Rio de Janeiro.

 

ZIZEK, S. (1992) Eles não sabem o que dizem: o sublime objeto da ideologia, JZE, Rio de Janeiro.

 

 

Resumo: Neste artigo, apresento o filme de Brian de Palma, Scarface, como oportunidade de debate a respeito do problema do desejo na sociedade capitalista.

 

Abstract; This article takes the Brian de Palma`s film, Scarface,  as a vehicle for thinking about the desire´s question in the capitalistic society.

 

Palavras chave: capitalismo, cinematografia, desejo.

 

Key Words: capitalism, cinematography, desire.

 

*Augusto Oliveira é bacharel em Ciências Sociais pela UFRJ, Mestre e Doutor em Sociologia pelo IUPERJ. Atualmente é professor do Dep. de Sociologia do IFCS/UFRJ. Leciona ainda na Faculdade Geraldo de Biase (Volta Redonda) e na ABEU (Belford Roxo).

  



[1] Falo de cinema por que esse é uma referência surgida logo no início do filme: Montana diz aos agentes da imigração que aprendeu inglês vendo os filmes norte-americanos e que gostava de ver aqueles caras.

[2] O que se revela impossível. Gina não quer apenas o dinheiro que recebe do irmão; quer também o glamour de estar entre traficantes vestidos com roupas caras, jóias e gastando desbragadamente (como o irmão).

[3] Essa mesma contradição é brilhantemente desenvolvida no capitulo dedicada a Marx  no livro Tudo que é sólido se desmancha no ar de Marshall Berman.

[4] Tal apresentação é feita por Jameson (JAMESON 2001).

[5] Chavão tantas vezes usado pelos defensores das instituições modernas (mercado, Estado, burocracia, leis, voto...) como se tal pacote fosse desprovido de contradições sérias o suficiente para não ser questionado.

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