MARX: A BUROCRACIA COMO ESSÊNCIA DO ESTADO

 

Wellington Trotta*

 

1. Introdução 

O escopo deste trabalho é refletir sobre o conteúdo do pensamento burocrático e sua relação com o  Estado moderno, a partir do entendimento de burocracia no pensamento de Karl Heinrich Marx (1818-1883), exposto na Crítica da filosofia do direito de Hegel, [1] em 1843, como oposição ao pensamento de Georg Wilhem Friedrich Hegel (1770-1831), dentro de sua Filosofia do direito (1821). 

A primeira vista o nosso suporte teórico pode parecer anacrônico pelo fato de analisar um problema contemporâneo à luz de uma refutação de Marx a Hegel em 1843. Respeita-se tal entendimento não concordando com ele, uma vez que, nem sempre as reflexões do próprio momento apresentam as melhores considerações, isto é, por diversas vezes lançamos mão de teorias fora do nosso tempo para melhor interpretar aquilo que nos incomoda, clamando uma resposta. Como pondera Norberto Bobbio (1909-2004), em uma de suas obras, um pensador pode ser considerado clássico quando, além de outras qualidades, se destacar na construção de “teorias-modelo das quais nos servimos continuamente para compreender a realidade, até mesmo uma realidade diferente daquela a partir da qual as tenha derivado”, [2] se tornando ao longo do tempo categorias mentais imprescindíveis dentro do trabalho teórico. Dessa forma ressalta-se a atualidade dos autores supracitados, destacando a contemporaneidade de suas teses.

 

Pretendo ainda ressaltar que não costumo confrontar o jovem Marx com o Marx maduro, este do Capital e aquele da Sagrada família, embora tal discussão seja importante, preocupo-me apenas em não tomar o jovem Marx como se fosse o próprio Marx, até porque um sendo continuidade do outro, o Marx do Capital apresenta uma perspectiva teórica mais completa pelo simples fato de acumular reflexões e retificações no seu percurso intelectual. Todavia, insisto destacar que as considerações encontradas na Crítica de 1843, continuam pertinentes apesar do tempo que nos separa e a acusação de que em Marx, jovem ou maduro, não é possível se encontrar uma teoria política, somente uma crítica, como se fosse possível construir uma teoria política qualquer sem a ação permanente da crítica, ou como se pensar política fosse necessariamente através de modelos cartesiano-liberais.

 

A segunda parte do presente texto cujo título é Estado e poderes políticos em Hegel, apresenta algumas considerações quanto ao sentido de Estado e sua organização segundo o pensamento político hegeliano. Pode parecer desnecessário, ao discutir o conteúdo da burocracia, buscar tão longe a disposição dos poderes conforme entende Hegel. No entanto a intenção é justamente evidenciar a logicidade do sistema político hegeliano, em que a burocracia é uma engrenagem necessária. Esse tópico analisa os poderes e como os mesmos se relacionam entre si como unidade estatal.

 

O terceiro tópico intitulado Hegel, a burocracia como função de Estado, estuda particularmente o poder governativo e os princípios que norteiam a burocracia. Procurou-se nesse momento do texto, assinalar o quanto Hegel apostava na burocracia como uma instância lógica dentro do Estado, e que essa mesma instância se determinava como uma necessidade histórica, a partir do Estado moderno.

O quarto tópico deste artigo ficou reservado para as considerações críticas de Marx a Hegel, tanto no que tange ao conceito do Estado e seus respectivos poderes, quanto ao próprio sentido de burocracia, em que Marx apresenta uma dura oposição ao pensamento hegeliano. Já no quinto e último tópico, termino o presente artigo com algumas reflexões marxianas quanto ao papel do espírito democrático como antítese ao burocratismo que tomou conta do Estado moderno. Sei que poderei ser criticado por alguns que desconsideram a democracia como uma categoria política em Marx, o que me oponho, pois não é preciso ter uma concepção formal de democracia, à guisa dos liberais, para poder pensá-la enquanto um princípio norteador de crítica às relações sociais estratificadas em classes. Por último, uma pequena conclusão conforme orientação de Platão: concisa para não ser repetitiva num amontoado de palavras. [3]  

Alerto para o detalhe que muitas notas foram extraídas de Economia e Sociedade de Max Weber (1864-1920), com o intuito, primeiramente, de relacionar alguns pontos convergentes entre Marx e Weber quanto à burocracia e suas relações, e outro, para ressaltar o quanto Marx estava atento para o papel da burocracia no mundo contemporâneo. 

Importa ainda assinalar que o presente texto foi retirado originalmente de minha dissertação de mestrado, que tem por problema o pensamento político de Marx em 1843, no momento em que romper definitivamente com a perspectiva hegeliana de filosofia política. 

 2. Estado e poderes políticos em Hegel


 No entendimento de Hegel a constituição marca um momento de pura racionalidade política-jurídica, o momento em que a liberdade está posta pela garantia da determinação da idéia até chegar ao concreto de si, isto é, pelos instrumentos efetivos da normatividade. Para Hegel a constituição determinaria essa racionalidade do Estado pela superação das particularidades da sociedade civil, se organizando como um organismo vivo e necessariamente lógico em que o Estado, na perspectiva da totalidade, é o universal, o centro de uma vida ética tendo o público e o privado como dimensões continuadas pela liberdade de todos. (Hegel, 1990: 250).

 

Hegel, mesmo considerando importante a clássica separação dos poderes conforme assinala Montesquieu (1689-1755), entende que tal concepção não só dificultaria a unidade do Estado como fragmentaria sua ação no seio da sociedade civil (Hegel, 1990: 253). O Estado hegeliano como organismo funcionaria dentro de um sistema lógico que não poderia se constituir em diversos outros poderes que não fosse o próprio Estado, um poder em si mesmo, visto que qualquer unidade para além de si comprometeria a mesma, se diluindo e não efetivando o seu próprio conceito que é a concretização da liberdade. Para Hegel os poderes não constituíam nenhuma determinação fora daquilo que o próprio espírito do Estado atingiu na história. A divisão dos poderes é a cisão do Estado enquanto elemento histórico a permitir que todos os indivíduos não sejam livres. O Estado moderno é a maturidade histórica sob a qual os homens se organizam e superam as particularidades no fim de nele buscar o universal. Logo, Estado só existe na medida de sua unidade, de sua universalidade. Pensá-lo dividido em poderes é pensá-lo dominado pelas esferas das particularidades, diluído privadamente.

 

Para Hegel, a concepção de separação dos poderes tem em si algo que, devidamente entendida, é importante no sentido da determinação da liberdade pública, mas que para isso é preciso acima de tudo compreender que tal separação não pode passar de um princípio de distribuição de funções, que em si não comprometa a unidade do Estado em sua soberania. (Hegel, 1990: 252).

 

 A separação dos poderes que pensa obstruir desconfianças e arbítrios, na verdade cumpre o papel de particularização do Estado, visto que sua soberania repousa numa unidade realizada no Estado como concreto histórico. A separação entre os poderes acirra as relações entre os mesmos, em que um na medida do possível procurará mostrar-se tão independente que de alguma forma redunde na dissolução do Estado como unidade orgânica. Embora guarde racionalidade, a concepção da independência dos poderes em si mesma não garante a harmonia dentro do Estado, como também não garante a liberdade como algo necessário e vital para o indivíduo. Sendo assim, para Hegel os poderes são na verdade diferenças substanciais, funções exercidas na lógica do todo precedendo às partes (Hegel, 1990: 253).                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       

A maneira como Hegel constrói a relação entre as diversas funções de poder dentro do seu entendimento de Estado, passa forçosamente pela sua lógica política, que é a defesa de uma monarquia constitucional tendo no monarca, o instituto da soberania, a própria personificação do Estado, a unidade político-cultural da Alemanha pelo modelo prussiano. Pois bem, a argumentação hegeliana tem o sentido de validar sua construção lógica. Isto quer dizer que ao rejeitar a tese da independência entre os poderes, Hegel rejeita a ilogicidade de como ela é apresentada. A pretensão de Hegel é que o Estado consiga de todo modo manter-se na sua unicidade, tanto assim que pensa a monarquia como elemento político consistente desse projeto. Hegel insiste no ponto de que a tese da separação dos poderes, como se apresenta pela discussão de seus defensores, que pensam saber o que dizem pelo entusiasmo, não difere em si das outras representações que estabelecem no Estado uma verdadeira disputa entre os poderes, quando na verdade o que se deseja é que uma função seja exercida em plena relação de conjunto, uma com a outra, ou melhor, que todas as atividades de poder tenham como princípio o conceito de Estado em cada momento que atue como tal. Cada função exercida deve representar a idéia de Estado, e não a fração de Estado (Hegel, 1990: 252). 

O poder soberano, chamado poder do príncipe, na verdade constitui a própria soberania enquanto fundamento do Estado político. Nesse poder Hegel procurou através do monarca centralizar toda a unidade do Estado, identificando na monarquia prussiana o motor da história alemã capaz de levar adiante o seu processo de unificação política. O poder soberano seria, portanto, a síntese do poder público-estatal, nele estando contidas as determinações políticas necessárias à unidade de um Estado que tem na vida ética a tarefa de executar o plano da liberdade como autodesenvolvimento do conceito de direito. (Hegel, 1990: 259). 

O poder legislativo para Hegel tem um significado ideal. Mais que um corpo político representado por parlamentares, ele se constitui numa instituição que tem por base o conjunto legal do Estado. Não é uma determinação arbitrária, mas uma determinação legítima, calcada no respeito aos princípios do direito. O poder legislativo está para Hegel como a constituição está para os dias de hoje, caracteriza o Estado de direito, o Estado determinado por uma construção normativa, sob o império da lei. [4]  

Em Hegel o poder legislativo se justifica na medida em que sua função está relacionada à atividade segundo a qual o direito precisa ser normatizado, precisa ser efetivado no plano material-legal, para justamente garantir a organização das atividades humanas em suas diversas multiplicidades. Assim, o poder legislativo funcionaria como um centro legislador dos interesses da sociedade com o patrocínio do Estado. Melhor dizendo, o Estado, por meio do poder legislativo, implicaria o universal no seio particularista da sociedade civil enquanto Estado-legislador. Esta visão de Hegel está intimamente ligada aos acontecimentos de 1789. A revolução francesa ratificou através das declarações de seus artífices, que a nação agora tem por fundamento a lei, portanto, é o Estado o primeiro a se submeter às exigências legais, ao conceito de direito: à liberdade. 

Ao afirmar que o poder legislativo faz parte da constituição, e que ao mesmo tempo ela lhe é pressuposta enquanto elemento de sua determinação, Hegel está pensando em um poder legislativo que constantemente redesenhe a constituição no sentido de aproximá-la do ideal. Mesmo o legislativo fazendo parte dela não quer dizer que seja a própria constituição, pois o que determina uma constituição é mais o espírito do povo que os interesses dos representantes do povo. O poder legislativo deve atentar para os interesses fincados na constituição, nesse documento formal moderno que em si contém todas as determinações do Estado, o universal na superação da sociedade civil atomizada. 

O poder governativo é aquele que leva a contento as decisões tomadas pelo poder soberano na pessoa do monarca a partir de um plano normativo. O poder governativo seria, portanto, o braço administrativo do poder soberano, poder subordinado à idéia de soberania existente nas determinações legais e ideais do Estado, organizado a partir de uma necessidade que está intimamente ligada à concretização do conceito de direito. 

As funções administrativa e judiciária não são poderes em si mesmas, constituídas independentemente, mas sim esferas subordinadas ao princípio norteador que rege a soberania como expressão máxima do Estado. A execução da justiça prende-se politicamente ao fato de que toda decisão, mesmo que tenha um caráter particular, específico, deve em princípio estar em consonância com o espírito universal, que sem dúvida justifica o propósito do Estado, a natureza do Estado, e a existência do Estado como instância ideal na realização do direito. Importa ressaltar que Hegel atrelava a administração da justiça ao poder governativo por considerar tal serviço um ato da administração pública e não um serviço particular destinado ao particular. A administração da justiça tem para Hegel um caráter público de máxima relevância, por isso está vinculado ao poder governativo sob orientação direta da universalidade do soberano, pois o seu conteúdo repousa na soberania do Estado. A administração da justiça no pensamento de Hegel tem uma dimensão estatal e primordial.

 

Conclui-se que o poder governativo assume a processualidade da administração pública e que, em Hegel, os serviços públicos não são distintos em si e para si. O serviço público, pensado na Filosofia do Direito, tem a especificidade única de garantir o universal para todos aqueles que vivem no Estado. Serviço público tem natureza pública e, sendo assim, não pode sofrer solução de descontinuidade, deve estar atrelado ao íntimo interesse do Estado na superação das particularidades e arbitrariedades. A atomização do poder levaria à extinção daquele Estado politicamente constituído para realizar o plano do direito, a efetivação da liberdade. O interesse do Estado é sempre universal, com isso o poder governativo não pode operar de outra maneira senão como uma expressão de soberania do Estado, e tal soberania visa em si a consecução da superação das diferenças particulares. O poder governativo não pode ser instituído e firmado a partir de princípios próprios, seus fundamentos são os mesmos do poder soberano.

 

3. Hegel: a burocracia como função de Estado

 

Na Filosofia do Direito, Hegel não trata a burocracia dentro de um capítulo à parte. Desenvolve o tema quando passa em revista o poder governativo e ao longo da exposição do poder legislativo, no intuito de assinalar a superioridade racional do Estado sobre qualquer outro serviço promovido fora de suas entranhas, apontando que o único titular do universal é o Estado na figura de seus agentes (servidores) subordinados ao conteúdo soberano do monarca. Destaca-se que o caráter da burocracia, para o filósofo alemão, assenta-se na racionalidade do Estado diretamente ligado ao espírito da revolução francesa [5] e às estruturas de funcionamento do poder político prussiano, que do século XVII em diante, desde a reforma de Frederico Guilherme I, através da Resolução de 1653, que instituiu profundas mudanças na Prússia por meio de uma forte centralização administrativa, foi levada adiante por seus sucessores [6] com o firme propósito de liderar o que se entendia por Alemanha. Nesse sentido a burocracia se confunde com o próprio ideal de Estado porque para Hegel:

 

“No funcionamento do governo, dá-se uma divisão de trabalho. Deve a organização das autoridades satisfazer a exigência, difícil embora formal, de, em baixo, a vida social, que é concreta, ser governada de um modo concreto (...) De uma natureza objectiva para si são os actos de governo; pertencem ao que já está decidido de acordo com a sua substância e devem ser executados e realizados por indivíduos”. [7]

 

A existência da burocracia está determinada pela natureza do Estado, ou seja, o Estado pensado por Hegel é a superação da sociedade civil naquilo que para o filósofo significa o reino das individualidades, uma espécie de conflito permanente de todos contra todos na linha de pensamento segundo Thomas Hobbes (1588-1679). Nesse sentido Hegel prioriza uma ordem estatal que compreenda o papel de abarcar os indivíduos para si. Dessa forma a burocracia assume materialmente a existência do Estado, sua realidade está determinada como um conjunto de funções e atribuições regulares em que só o Estado por meio do seu pessoal pode exercer. É pela burocracia que o poder público se torna uma realidade concreta. Pela burocracia os indivíduos são informados que os serviços públicos se encontram disponíveis e de forma plena constituem o próprio Estado, isto é, “a vida social, que é concreta, ser governada de um modo concreto”. De um modo objetivo, a burocracia para Hegel é a materialização da soberania que se processa através de indivíduos públicos. 

O Estado, nas suas atribuições, não pode contar com a boa vontade das pessoas e muito menos ficar refém dos cavaleiros andantes, mas instituir um corpo de indivíduos que possa exercer regularmente funções rotineiras de interesse público no reino da sociedade civil pela ação estatal (Hegel, 1990: 275). Logo “o serviço do Estado exige o sacrifício das satisfações individuais e arbitrárias, das finalidades subjectivas, mas reconhece o direito de, no cumprimento do dever, e só nele, obter suas satisfações” (Hegel, 1990: 276). Claro que qualquer argumento que se tenha em prol da burocracia, não pode ignorar que seu grande intento é manter estável o funcionamento orgânico das instituições do Estado, e para que isso ocorra a contento, é necessário o mínimo de padronização dos serviços, pagamento em espécie aos funcionários, e uma relação hierárquica de funções em que consiste comando e obediência no propósito de se chegar à vida social, que é concreta [e deve ser] governada de um modo concreto. 

Destacando a importância da hierarquia [8] no conjunto das considerações de Hegel, tem-se objetivamente que o papel da hierarquia visa coibir abusos e injustiças por aqueles que, detendo qualquer função pública, se arrogue no direito de extrapolar de sua determinada obrigação, se autodenominando num falso direito, pois estabelece um sistema  de relação hierárquica em que o funcionalismo desempenhe suas atribuições baseadas na competência e na responsabilidade direta de seus cargos, submetidos à lei.

 

“A preservação do Estado e dos governados contra o abuso do poder cometido pelas autoridades e pelos funcionários, imediatamente consiste, por um lado, na hierarquia e na responsabilidade e reside, por outro lado, no reconhecimento das comunas e corporações impeditivo de que o arbítrio individual se confunda com o exercício do poder entregue aos funcionários, assim completando, vindo de baixo, a vigilância que, vinda de cima, é insuficiente quanto aos actos particulares de administração”. [9]

 

Nesta passagem Hegel assinala a importância da burocracia no mundo moderno, e sua relação com o Estado moderno, sobretudo aquele surgido após os escombros da revolução francesa de 1789. A burocracia, pensada como metáfora, é a porta de entrada do Estado moderno. Nela o que se almeja é a imparcialidade da administração pública. Tanto o Estado quanto os seus governados se beneficiam com a estruturação da burocracia, visto que o processo administrativo torna as relações impessoais e nele o sentido de eqüidade transforma a Europa do século XIX, de monarquias absolutas em constitucionais.  

Mais adiante, na avaliação de Hegel, a hierarquia funcionaria como um sistema de atribuições lógicas, guardando o fim de estabelecer o equilíbrio necessário nas relações do público com o privado a não permitir privilégios, corrupção, peculato, prevaricação e toda sorte de problemas que definhariam o propósito de universalidade do Estado. A hierarquia, nesse particular hegeliano, é uma condição lógica, portanto sua atribuição é criar condições para que os serviços do Estado não sofram os impasses tão comuns ao anarquismo da sociedade civil. Dentro de suas contradições, Hegel ergue um conjunto de relações necessárias entre a existência real do Estado moderno com a eficiência da burocracia. Essa relação é tão íntima no seu pensamento, que julga ter solucionado o problema da representação do verdadeiro Estado a partir da lógica, visto que basta se ter um grande quadro tecnicamente bem preparado do ponto de vista moral-intelectual, constituído mediante seleção por mérito, extraído da classe universal (classe média), para se ter efetivamente solucionado os problemas no seio da sociedade civil. (Hegel, 1990: 274-278). 

Nesse ponto é sintomático o discurso hegeliano, enquanto defende o ingresso do indivíduo no serviço público (burocracia) mediante prova e exame de aptidão, em consonância com a revolução de 1789 (§ 291), Hegel busca em Aristóteles, fundamento para defender a tese da classe média  como classe universal,   [10] capaz de em si conter o ponto de equilíbrio virtuoso da mediania [11] , e, além disso, ser o esteio de toda ordem social possível (§ 297). Hegel com isso talvez queira indiretamente assinalar que nem na aristocracia e muito menos nas classes populares se encontraria o material humano para se formar os verdadeiros paladinos da moralidade pública, e defende claramente o elemento burguês como a verdadeira representação de cidadão, o que de fato está em perfeita sintonia com a revolução francesa de 1789. 

 

4. O poder governativo e a burocracia na Crítica de Marx

 

Em suas investigações quanto ao poder governativo de Hegel, Marx desfere um duro golpe contra as argumentações preliminares do filósofo ao observar que este se limitou “a referir a situação empírica existente em alguns países”. [12] Para Marx, Hegel apenas confere conteúdo ao poder governativo sem conceituá-lo devidamente.

                  

“Hegel não desenvolveu o poder governativo. Mas mesmo supondo que o tenha feito, não demonstrou que esse poder seja mais do que uma função, uma determinação do cidadão; limitou-se a deduzi-lo enquanto poder particular, separando, e considerando os ‘interesses particulares da sociedade civil’ como  interesses ‘que se encontram fora do universal em e para si do Estado’. [13]

 

 

Na realidade o poder governativo, mesmo sendo executado diretamente pelo Estado, tem no entendimento de Marx um aspecto secundário em relação ao poder soberano. Segundo sua crítica, Hegel apenas o transformou em função do exercício da soberania estatal. Os poderes não se constituem em outra coisa senão em funções de Estado, cabendo ao poder soberano, exercido pelo monarca, o poder efetivo. O poder governativo assume definitivamente entre o Estado soberano - titular do universal -  e a sociedade civil, uma relação de mediação, o ponto em que o poder público interfere na sociedade civil na intenção de seus propósitos. O poder governativo é tão somente uma função no respeito ao todo, e esse todo é um organismo que tem nas partes um prolongamento de si, e pode ser anunciado como o todo precedendo as partes. [14] Nesse caso Marx acentua que:

 

“O que Hegel nos diz sobre o ‘poder governativo’ não merece o nome de exposição filosófica. A maioria dos parágrafos poderia encontrar-se literalmente no código civil prussiano; no entanto, a administração propriamente dita é o ponto mais difícil da exposição (...) O poder governativo não será mais do que a administração, que ele desenvolve sob o nome de burocracia”. [15]

 

 

O ponto fundamental da oposição de Marx a Hegel, neste particular, se refere ao fato do poder governativo ter se constituído em uma legislação civil, o que de fato é, só que aqui Hegel a relaciona dentro de seu sistema jurídico-político, enfatizando de forma objetiva o papel que a burocracia tem enquanto mediação do geral no particular. No entendimento de Hegel a burocracia assume a verdadeira natureza do Estado enquanto agente provedor na satisfação das necessidades comuns. O poder governativo não pode ser outra coisa quando se trata do sistema hegeliano, pois o substantivo de sua idéia política já está traçado quando elabora o seu conceito de soberania. Para Marx o que Hegel chama de poder governativo não é mais do que a administração dos serviços do Estado, inclusive, a própria burocracia administrando diretamente a justiça. Essa instância não se constitui em um poder a parte, mas sim como órgão da administração pública diretamente ligada ao governo e supervisionada pelo soberano (Marx, 1983: 69). 

 Marx observa que a burocracia em Hegel é na verdade uma corporação do Estado. Pois o espírito de toda corporação é a burocracia assim como a corporação é a materialidade da burocracia, isto é, a burocracia dirige os negócios do Estado como uma corporação de interesses particulares com a ilusão de pública. A burocracia adquiriu, a princípio, um interesse à parte, um interesse que concretamente não existe para o fim que geralmente fora concebida, mas que na verdade se aplica para si. A burocracia (como as corporações) não forma outras conexões senão as que difundem um espírito de associação, que nem sempre representam o significado real do representado (Marx,  1983: 70). 

Marx enfatiza que:

 

“Onde a ‘burocracia’ for o novo princípio, o interesse genérico do Estado começa a converter-se num interesse ‘à parte’ e, por conseguinte, num interesse ‘real’; e luta contra as corporações do mesmo modo que toda a conseqüência luta contra a existência dos seus pressupostos”. [16]

 

 

Nota-se, desde logo que Marx destila todo seu sarcasmo contra o argumento de que a burocracia surge como a expressão do interesse público, daquele interesse de todos patrocinado pelo Estado. Para Marx, Estado e burocracia, como estão postos no mundo moderno, possuem princípios diferentes, ou que pelo menos deveriam ser uníssonos, mas que empiricamente representam coisas distintas e contrárias aos interesses dos governados. Dessa forma, sendo a burocracia o espiritualismo das corporações, luta para que sua essência possa ser a existência do Estado. Por isso Marx afirma que “o mesmo espírito que cria a corporação na sociedade cria a burocracia no Estado (...) A ‘burocracia’ é o ‘formalismo’ de Estado da sociedade civil” (Marx, 1983: 70). O Estado interfere na sociedade civil através da ação burocrática,, apenas na formalidade de uma ilusão espiritual. 

Na crítica de Marx o que se denota é uma voraz oposição ao espírito burocrático que invade o cenário público de sua época. A burocracia em si mesma é destituída de qualquer valor, caso a ela não atribuirmos nenhum. Por considerar assim Marx, na crítica do sistema político hegeliano, primeiro parte de uma análise de sua metafísica para depois chegar ao que pretende demonstrar: os equívocos teóricos e práticos do real submetido ao ideal. É com este claro propósito que observa: 

 

“A ‘burocracia’ é o ‘formalismo de Estado’ da sociedade civil. É a ‘consciência do Estado’, a ‘vontade do Estado’, ‘o poder do Estado’ enquanto corporação, isto é, como sociedade particular, fechada no Estado (...) A burocracia é portanto obrigada a proteger a generalidade imaginária do interesse particular a fim de proteger a particularidade imaginária do interesse geral.” [17]

 

 

A citação acima representa a síntese do significado de burocracia contido na Crítica de 1843. No entender de Marx a burocracia se configura na realidade política alemã, sobretudo pela caracterização que teve no modelo prussiano, não como um modelo de prestação de serviço do Estado na figura do interesse geral. Antes de tudo, fora a mesma burocracia prussiana que fechara a Gazeta Renana e outros importantes periódicos naquele período turbulento da década dos anos quarenta do século XIX. Como vítima direta da burocracia, Marx pôde observar o estrago que o espírito burocrático dispensa a qualquer sociedade que pretende ter o Estado como instrumento de suas realizações. E é nessa linha de raciocínio que Marx acusa a burocracia de pretender para si, tomando da sociedade civil, o papel de consciência do Estado, pelo menos daquele Estado que se constitua como a grande representação do que se deveria ser. 

Marx não tinha outros adjetivos para exprimir o total desconforto que o Estado prussiano impunha aos que viviam sob suas leis, feitas sem levar em conta os interesses do povo. Diante dessa perspectiva, afogado num Estado absolutista, Marx confronta-se com uma burocracia que expressa realmente toda sua relação de particularidade estatal, situando-se e posicionando-se como uma corporação qualquer, que visa especificamente um interesse particular. Por tais motivos, Marx foi taxativo ao enunciar que a burocracia é de fato o próprio poder do Estado, na medida em que expressa todos seus conteúdos simplórios, atendendo somente aos interesses particulares, por isso a burocracia é naturalmente fechada.  A burocracia se constitui no espiritualismo do Estado porque o Estado não tem nenhum conteúdo em si, assim como a própria burocracia. Esse conteúdo em si é aquele construído pelos titulares da burocracia e do Estado.

 

“O ‘formalismo do Estado’, a burocracia, é o ‘Estado enquanto formalismo’; e foi deste modo que Hegel o descreveu. Como este ‘formalismo de Estado’ se constitui em poder real e se transforma em seu próprio conteúdo material, é evidente que a ‘burocracia’ é um conjunto de ilusões práticas, ou seja, é a ‘ilusão do Estado’. O espírito burocrático é um espírito totalmente jesuítico, teológico. Os burocratas são os jesuítas e os teólogos do Estado. A burocracia é a republique prêtre.” [18]

 

 

Esse espírito é essencialmente o conteúdo que transformou a burocracia em algo que está para além de si. Esse além de si que é o espírito da burocracia, o cerne do pensamento burocrático, transformou-se no conteúdo da realidade do Estado, ou seja: num centro intelectual vivo e independente da sociedade civil. Uma abstração metafísica que Marx denomina de espírito jesuítico, teológico, o braço armado e inteligente do Estado. Entretanto, por que a ‘burocracia’ é um conjunto de ilusões? Justamente porque é a ilusão do Estado. Pode-se tomar a liberdade de dizer que a burocracia é a ilusão da ilusão do Estado, simulacro político da modernidade política, pois se o Estado é uma ilusão à qualquer transformação social, a burocracia como produção dessa ilusão é a cópia da cópia, uma espécie de mimese platônica. [19] Sendo assim, Marx quando analisa o espírito da burocracia não se esquece de pensar o significado do próprio Estado como foi pensado pela tradição jusnaturalista, uma resposta ao interesse geral, interesse do povo. E se o povo não é a base real do Estado, esse mesmo Estado só pode ser uma ilusão à mesma realidade, que por sinal não percebe que a burocracia enquanto produção dessa ilusão não pode ser outra coisa senão uma ilusão construída para ratificar a primeira, única condição de existência da segunda. 

Marx assinala que “O espírito burocrático é um espírito totalmente jesuítico, teológico. Os burocratas são os jesuítas e os teólogos do Estado. A burocracia é a republique prêtre”. Nesta afirmação trabalha com um conceito que se desdobra. Vejamos. No primeiro momento acusa o burocrata de ser um “jesuíta”, um teólogo com funções especificas no ordenamento político, com funções eminentemente públicas, mas voltadas para assuntos terrenos. Nesse sentido imprime um tom grave de atitude política, procurando com isso afirmar que o burocrata de Estado é um ser que serve religiosamente aos interesses do Estado sem ao menos pensar se suas atitudes são ou não corretas, ou fundadas na razão, ou pelo menos no interesse geral [20] .  Nisso assume o burocrata um sentido religioso do dever, e tem esse mesmo dever como credo, elegendo o estatuto da burocracia como a bíblia de suas ações e pensamentos. Em um outro sentido, bem original, Marx imprime um tom pejorativo ao comparar o espírito burocrático ao jesuítico, chamando-o essencialmente de “intriguista”, dissimulador, visto que das intrigas que os jesuítas promoviam nas cortes, onde exerciam influência decisiva, construíam suas relações e objetivos políticos. 

No sentido grave ou pejorativo, Marx valora o espírito burocrático como uma força contra o povo que deveria ser o fim último de toda e qualquer administração pública. “A burocracia é a republique prêtre”, isto é, uma república de sacerdotes, de defensores de alguma coisa que transcende a si mesmos enquanto indivíduos. Desse modo, a burocracia não pode ser outra coisa senão a inversão do conteúdo do Estado. A burocracia em si assume o Estado e transforma o que é formal em real e, por conseguinte, inverte o real pelo formal. Portanto, conclui-se que o espírito burocrático se formou na medida em que se criou todo um aparato cujo fim é a dominação do público pelo privado, a inversão que possibilitou mascarar a realidade por uma falsidade tida como necessária e universal.  A burocracia quando assume o Estado para si o transforma em propriedade particular, com isso destruindo o Estado real que ao mesmo tempo ilude os inferiores com sua ação mascarada de naturalidade. Em si a burocracia é contrária ao real conteúdo do Estado, ela é contrária ao próprio Estado criado como refúgio de liberdade, ainda que essa liberdade seja a formalmente pensada por Hegel. 

O espírito burocrático é o carcereiro do Estado moderno. Nele todas as idealizações de se erigir um ente de razão, que possa pôr um basta ao reino do homo homini lupus, estão, segundo a leitura de Marx, sepultadas.  O Estado é por assim dizer um refém da sua própria criatura. Desmistificando: na medida em que o Estado moderno é transformado pelas ações dos homens, e quanto mais os homens se instruem e procuram lançar mãos sobre o Estado, os que já estão de sua posse criam sempre tremendos obstáculos à consecução de tal fim, e a burocracia, mesmo que pensada no plano da lógica da finalidade do Estado, se presta ao processo de espiritualização do Estado, isto é, a cumprir o seu escopo mistificador.

 

“Aos seus olhos [de Hegel] a burocracia é a finalidade última do Estado. Dado que a burocracia assume como conteúdo os seus objectivos ‘formais’, entra sistematicamente em conflito como os objectivos ‘reais’. É assim obrigada a dar o formal como conteúdo e o conteúdo como formal. Os objetivos do Estado transformam-se em objectivos da burocracia e os objectivos da burocracia em objectivos do Estado. A burocracia é um círculo ao qual nada pode escapar. Esta hierarquia é uma hierarquia do saber”. [21]

 

 

Para Marx: “esta hierarquia é uma hierarquia do saber” porque se serve de si para si mesma sem tomar o menor conhecimento da real finalidade do serviço público. A burocracia se passa por Estado na medida em que este é absorvido pelo formalismo burocrático, e o formalismo burocrático é um espírito sem nenhuma essência, a não ser sua ausência de realidade.  Por este motivo Marx constrói o seu pensamento político, pelo menos até agora, refletindo o caráter administrativo do Estado, sobretudo o prussiano, em profundo sentimento de negatividade. Não é um Estado que serve, mas que somente se serve dos seus princípios reais para vivenciar plenamente os formais, deles erigindo a modernidade liberal.

 

“A burocracia constitui o Estado imaginário, paralelo ao Estado real, é o espiritualismo do Estado. Tudo tem, portanto, dois significados, um real e outro burocrático, assim como o saber é duplo; um real e outro burocrático (o mesmo acontece com a vontade). Mas o ser real é tratado de acordo com o ser burocrático, irreal, espiritual. A burocracia ‘possui’ o ser do Estado; o ser espiritual da sociedade é a sua propriedade privada. O espírito geral da burocracia é o segredo, o mistério, guardado no seu seio pela hierarquia e no exterior pelo seu carácter de corporação fechada.” [22]

 

 

Esta passagem da Crítica de 1843 contém um dos mais férteis conjuntos de considerações de Marx concernente à burocracia e ao poder governativo, é o âmago de sua crítica ao Estado hegeliano. Nela repousam muitas indicações teóricas que Marx mais tarde elaborará de forma a definir seu pensamento político. Por exemplo: na citada passagem enfatiza a burocracia como a espiritualidade do Estado ao mesmo tempo em que chama essa mesma espiritualidade de irreal, imaginária, o que por sua vez menciona como um dado fantástico do pensamento religioso, que está para além de uma concretude finita, e por isso seu pensamento, por oposição, se  funda na materialidade social, nas relações sociais como elas se dão sem nenhuma associação com o duplo irreal-imaginário. Marx batiza o Estado dominado pela burocracia não só de irreal, imaginário como também de espiritual, inexistente, uma vez que o seu significado fora apropriado pela essência do conteúdo burocrático, pela formalidade, pelo vazio de si que se expressa pelo religioso mistério do segredo, [23] protegido nas fileiras da hierarquia, que em Hegel tem o argumento de em si promove a defesa do público contra o privado, sob a vigilância da lógica, mas que segundo Marx, assume um disfarce do formalismo de Estado contra o que deveria ser o Estado real. 

Marx afirma que a opinião pública, isto é, o conhecimento de algo pelo conjunto da sociedade civil, ao tomar ciência do espírito do Estado e, por sua vez revelá-lo inteiramente, assume perante esse mesmo espírito o status de grande inimiga, pois a burocracia, o mistério, aparece como premissa maior do verdadeiro espírito do Estado, e com o conhecimento de tal descoberta o interesse geral não pode fazer parte desse Estado burocrático, uma vez que, não sendo real, é apenas uma ilusão. (Marx, 1983: 73). 

 A opinião pública - entendida como conhecimento dos negócios públicos por parte do povo - é inimiga da burocracia pelo simples fato de se opor à natureza do espírito burocrático, isto é, sua total despreocupação com o público e seu atrelamento ao privado. Como a opinião pública tem por objetivo tomar ciência da realidade pública, o seu interesse só pode ser diferente do particular, por isso o seu intento é sempre o interesse geral. Ressalta-se que ao falar de opinião pública, Marx se apóia – sem dúvida -  em princípios democráticos que retira das leituras do Contrato Social  de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).

 

“A supressão da burocracia só é possível quando o interesse geral se transforma realmente em interesse particular e não, como, afirma Hegel, simplesmente no pensamento, na abstração, onde tal só poderia acontecer quando o interesse particular se transformasse realmente em interesse geral. Hegel parte de uma oposição irreal e chega conseqüentemente  a uma identidade imaginária que na realidade não é mais do que uma oposição. A burocracia é uma identidade deste tipo”. [24]  

 

A supressão do espírito burocrático está condicionada pela ação dos homens na vida pública, no seu ingresso definitivo nos negócios públicos. Para Marx, tanto na monarquia como na república, a vida material dos homens está distanciada da vida política, havendo uma cisão. De um lado o homem é cidadão (político), do outro é privado, isto é, em seus assuntos individuais. Marx, a partir disso pensa o homem genericamente, contemplando-o como cidadão e como homem privado, que sua atividade política se torne uma condição de homem privado, que os assuntos do Estado sejam assuntos dos homens em sociedade, constituídos como assunto político, mas em si mesmo tendo caráter privado, assunto de cada um e de todos.  

5. O elemento democrático

No entendimento de Marx o elemento democrático guarda consigo as condições essenciais de fundir o particular na perspectiva do universal, ou melhor, afirma que o particular na democracia toma dimensão de universal pelo fato de ser contemplado como interesse de todos, e não um universal abstrato, tirado de um individuo específico pela condição de seu nascimento e tradição (monarca). Na perspectiva democrática o homem encontra sua unidade porque nessa forma associativa seu interesse é levado em consideração por se identificar como o fim histórico da vida comunitária.

 

Para o Marx da Crítica de 1843, a democracia não é apenas uma formalidade político-administrativa, mais do que isso seu objeto é a inclusão de todos os homens numa sociedade onde o social se torne objeto do Estado e este instrumento daquela. Na perspectiva do espírito democrático o Estado não é um fim em si mesmo, mas tão somente uma expressão dos interesses dos homens manifestamente sacramentados como prestação de um serviço público. No conjunto de suas formulações Marx afirma que “na democracia o princípio formal é simultaneamente o princípio material”, isto é, a constituição não é outra coisa senão uma determinação dos homens em sociedade, e para isso é necessário que se compreenda que o povo, titular do interesse geral, seja concretamente visto como o construtor da ordem política que guarda o universal dentro das particularidades enquanto expectativas.

 

“A democracia constitui a essência de todas as constituições políticas, o homem socializado como constituição política particular; está para as outras constituições assim como o gênero está para as outras espécies, com a única diferença de que o próprio gênero surge como existência, e portanto como uma espécie particular, relativamente às existências que não correspondem à essência” [25]

 

 

Sendo assim a democracia surge como essência de todas as constituições por ser ela  forma e materialidade em si, tomando o homem como seu artífice, como seu produtor, e, nesse sentido a democracia não é uma determinação política, mas obviamente social. Sua construção não é uma abstração, muito menos um conteúdo que visa uma realidade acima dos homens concretos. Marx assinala que a democracia só pode ser a essência das constituições políticas por terem as constituições políticas um fim maior: o interesse geral. Nessa etapa do seu pensamento, Marx constrói o sentido de democracia a partir de um princípio. Em razão disso não é repetitivo afirmar que Marx não se preocupa em pensar democracia na esfera da idealidade, mas como Rousseau, no mundo dos homens. Convencido de que o interesse do Estado não pode ser outro senão o interesse geral, Marx conclui afirmativamente o valor da democracia na perspectiva de unir os aspectos formal e material de uma constituição:

 

“Na democracia, a própria constituição surge apenas como uma única determinação, a autodeterminação do povo. (...) A democracia é o enigma decifrado de todas as constituições. Nela, a constituição existe não apenas em si, de acordo com a sua essência, mas também de acordo com a sua existência, com a sua realidade que constantemente se refere à sua base real: o homem real, o povo real; e que surge simplesmente como sua própria obra”. [26]

 

 

O que existe de concreto no conjunto das afirmações acima? É que a democracia, como bem assevera Marx, realiza o plano da essência política: o homem é quem determina a sua realidade. Na democracia, essência e existência não constituem planos antagônicos e não há separação nesses dois conteúdos, o que existe verdadeiramente é que um se realiza enquanto necessidade do outro. A existencialidade corresponde ao significado da essencialidade, isto é, a constituição realiza no real aquilo que os homens pensam no conteúdo social, nisso consiste o político como objetivação do social. O ser político não é outra coisa senão ser social. Quando Marx anuncia que a democracia decifra o enigma das constituições, é porque a democracia em si é a constituição real para o povo real. Sendo o povo a finalidade da administração pública, este se torna capaz de a si mesmo se determinar como elemento constituinte de sua ordem política, a superação antagônica entre sociedade civil e Estado. Para Marx, a democracia atingindo o universal como realidade, na medida que toma os homens enquanto seres de relações concretas entre si, acabaria efetivando às avessas o tão sonhado universal do modelo hegeliano de Estado. A democracia como essência das constituições seria a própria constituição que romperia consigo mesma, isto é, alcançaria a nulidade do político na efetiva participação de todos nos negócios da sociedade. A construção da democracia é a desconstrução do Estado, por conseguinte do burocratismo. Na perspectiva da democracia ser o enigma decifrado de todas as constituições, de todas as formas de organização política, e por fim sendo a democracia uma determinação social que reúne homens sob um fim comum, segundo Baruc de Espinosa (1632-1677), [27] o Estado como se apresenta tanto para Marx em 1843, quanto para a contemporaneidade, está longe de ser a expressão do interesse geral. Marx pensa o Estado que está sendo apresentando e afirmado por Hegel, como um Estado que não tem em si o fim último dado pelo social, mas sim a partir de uma abstração instruída, concluída sem considerar os indivíduos. Marx nega o Estado que, desfigurado de sua função (conforme Hegel e os jusnaturalistas), não se constitui pela democracia. Pode-se preliminarmente afirmar que democracia para Marx tem uma representação mais crítica do que empírica. A democracia nesse sentido é usada como instância lógico-política para demonstrar que Hegel e sua estrutura estatal são inconseqüentes internamente.

 

“Os assuntos gerais do Estado são os assuntos públicos, o Estado enquanto assunto real. A discussão e a decisão são a realização do Estado como assunto real. Pareceria evidente que todos os membros do Estado tivessem uma relação com o Estado considerado seu assunto real. A noção membro do Estado já implica que sejam um membro do Estado uma parte do Estado, e que este os considere como uma parte das suas partes. Se existem como uma parte do Estado, é evidente que a sua existência social é já a sua participação real no Estado”. [28]

 

 

Na medida em que todos participam do Estado como assunto real, ou melhor, quando o Estado for realmente assunto da sociedade civil pelo processo de discussão e decisão do povo, este na verdade se colocará como assunto de si mesmo. Isto é, todos se situarão no Estado pela participação nos negócios públicos, então o elemento democrático existirá como algo inevitável e necessário à existência da sociedade civil como objeto de si mesma. Nessa direção Marx aponta mais uma vez a democracia como a essência das relações invertidas da sociedade moderna, e não o Estado moderno, montado para afastar a sociedade civil de sua determinação, ratificando sua divisão em classes como exclusão política. 

Marx toma a democracia para mostrar que o Estado moderno está longe de ser ou significar uma instância administrativa dos negócios públicos. Para ele este mesmo Estado não passa de uma negatividade da sociedade quando pensamos nas formalidades políticas para afastar os indivíduos das decisões de seus interesses, como se as decisões de Estado não implicassem em interesses voltados à sociedade civil. Marx exorciza as demais formas de Estado quando não se leva a contento o papel do indivíduo nos assuntos públicos. Não cabe discutir o número dos participantes nas discussões ou decisões de Estado, deve-se, isso sim, discutir o princípio democrático da sociedade civil se transformando em sociedade política, isto é, em sociedade real onde se possa participar do poder legislativo de uma forma tão geral quanto possível. (Marx, 1983: 181). 

 

6. Conclusão

 

Concluindo, a democracia no entender de Marx, no momento da Crítica de 1843, naquele passo que decide tomar a história como fundamentação do seu pensamento, tendo o indivíduo como seu construtor, não é um plano ideal, mas racional como negatividade do Estado, do Estado abstrato, uma vez que Marx percebe que pode existir um Estado real, desde que obviamente fundido na sociedade civil, que por fim não subsiste mais como Estado político, porém a própria sociedade civil se autodeterminando. O Estado não é um ser como o homem, a pedra, a árvore ou o sol. O Estado é uma construção dos homens na história, que pode ser lido de diversas maneiras, nunca, porém, como uma determinação em si, nunca como algo em si, uma idéia absoluta. Para Marx o conteúdo da opinião pública torna não só o Estado como a própria burocracia refém dos interesses públicos, “pois a democracia é quem insere o povo nos negócios do Estado, tornando o Estado um negócio da sociedade civil” (Marx, 1983: 48). 

Considerar a democracia como uma propriedade do liberalismo constitui não só um equívoco histórico como também um problema de formação teórica. O conteúdo democrático passa pelo interesse de participação e de como participar das decisões de Estado, uma vez que cada decisão política tem em si uma decisão de ordem social, pois até agora nunca se decidiu alguma coisa que não tivesse o ser humano como objeto mediato ou imediato. A democracia não resulta apenas de fórmulas para quantificar o processo decisório, sua natureza específica determina que se tenha em vista os interesses gerais com os particulares, que se respeite os interesses gerais enquanto interesse de cada um, e que a instância governativa não seja um movimento em si, sujeito de si mesmo. Portanto, na medida que pensa democracia, Marx é levado a pensar a sociedade civil penetrando em massa e se possível integralmente no interior do Estado. [29] Mas para isso é preciso romper com a estrutura classista que o Estado representa e impõe no seio da sociedade.   

NOTAS:

[1] Esse texto foi redigido por Marx quando de sua estada em Kreuznach, em 1843. Foi originalmente publicado em 1927, portanto 56 nos após a morte do autor. O manuscrito de Marx foi organizado para publicação  por David Riazanov, fundador do Instituto Marx-Engels, de Moscou.

[2] Bobbio, N. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. RJ: Campus, 2005: 130.

[3] Platão. Fedro. Lisboa: Guimarães editores, 1994:105.

[4] Trotta, Wellington. A Liberdade Como Império da Lei. Artigo publicado na revista www.achegas.net  nº. 9.

[5] Item VI da Declaração de 1789: “Todos os cidadãos, sendo iguais aos seus olhos, sendo igualmente admissíveis a todas as dignidades, colocações e empregos públicos, segundo suas virtudes e talentos”. Item V da Declaração de 1793: “Todos os cidadãos são igualmente admissíveis aos empregos públicos. Os povos livres não conhecem outros motivos nas suas eleições a não ser as virtudes e os talentos”. (Ralph, 1983).

* A Prússia disputava com a Áustria, dentro da liga germânica a supremacia dos estados envolvidos.

[6] Anderson, Perry. Linhagens do Estado absolutista.  1984:  280)

[7] Hegel, G.F.W. Princípio de filosofia do direito. Lisboa: Guimarães, 1990:  274.

[8] “Rege o princípio da hierarquia de cargos e da seqüência de instâncias, isto é, um sistema fixamente regulamentado de mando e subordinação das autoridades, com fiscalização das inferiores pelas superiores – sistema que oferece, ao mesmo tempo, ao dominado a possibilidade fixamente regulamentada del apelar  de uma autoridade inferior à instância superior desta. Quando o tipo está plenamente desenvolvido, essa hierarquia de cargos está monocraticamente organizada.”  Weber, Max. Economia e Sociedade. Vol. 2, 1999: 199

[9] Idem: 277.

[10] “Existe em todas as cidades três classes de cidadãos: os muitos ricos, os muitos pobres, e em terceiro lugar os que ficam no meio destes extremos. Como é geralmente aceito que aquilo que é moderado e está no meio é melhor, é sem dúvida melhor desfrutar moderadamente de todos os bens proporcionados pela sorte pois nessa condição de vida é mais fácil obedecer à razão [...] de fato, os primeiros tendem para a insolência e para a prática de atos de extrema perversidade, e os últimos se tornam maus e inclinados à prática de perversidades mesquinhas, impelidos para tais ofensas pela insolência ou pela maldade. Outrossim, a classe média é a menos propensa a fugir ao exercício de funções públicas ou a buscá-las sofregamente, e ambas estas atitudes são prejudiciais à cidade.” Aristóteles, Política. 3ª. Ed. Brasília: UnB, 1997: 143-144.

[11] “Está, pois, suficientemente esclarecido que a virtude moral é um meio-termo [...] é um meio-termo entre dois vícios, um dos quais envolve excesso e o outro deficiência, e isso porque a sua natureza é visar à mediania nas paixões e nos atos.”  Aristóteles, Ética a Nicômaco. Os Pensadores. 1ª ed., São Paulo: Abril, 1973:  277.

[12] Marx, Karl. Crítica a filosofa do direito de Hegel. Lisboa. Editorial Estampa, 1983: 64.

[13] Ibdem.

[14] Para maiores esclarecimentos quanto ao tema, ler  o Político de Platão, e a Política de Aristóteles.

[15] Marx. CFDH, 1983: 69.

[16] Idem: 70.

[17] Idem: 71.

[18] Marx, CFDH, 1983: 72.

[19] Cópia das Idéias. Ver: Platão. A República, Livro X.

[20] “Uma burocracia, uma vez plenamente realizada, pertence aos complexos sociais mais dificilmente destrutíveis. A burocratização é o meio específico por excelência para transformar uma ‘ação comunitária’ (consensual) numa ‘ação associativa’ racionalmente ordenada (...) Onde quer que a burocratização da administração tenha sido levada a cabo, cria-se uma forma praticamente inquebrantável das relações de dominação (...) O funcionário individual não pode desprender-se do aparato do qual faz parte. Em oposição aos honoratiores, que administram honorifica e acessoriamente, o funcionário profissional está encadeado à sua atividade com toda a sua existência material e ideal.”  Weber, Max. Economia e Sociedade, Vol. 2, 1999: 222.

 * Esta passagem da obra citada de Weber, aponta o quanto Marx, em 1843, bem percebia o papel da burocracia no Estado moderno. Não conheço nenhum texto que trate da relação aqui aventada, por isso estou impondo a mim mesmo, um estudo mais aprofundado desta relação, com o fim de frisar a importância do trabalho teórico como matéria prima da Ciência Política.

[21] Marx, CFDH, 1983: 72.

[22] Idem: 73.

[23] “O poder da burocracia plenamente desenvolvida é sempre muito grande e, em condições normais, enormes (...) Toda burocracia procura aumentar mais ainda esta superioridade do profissional instruído, ao guardar segredo sobre seus conhecimentos e intenções (...) Tendencialmente, a administração burocrática é sempre uma administração que exclui o público. A burocracia oculta, na medida do possível, o seu saber e o seu fazer da crítica (...) O conceito de ‘segredo oficial’ é sua invenção específica, e nada é defendido por ela com mais fanatismo que precisamente esta atitude, para qual não há motivos puramente objetivos fora daquelas áreas especificamente qualificadas”. Weber, Max. Economia e Sociedade. 2º. Vol, 1999: 225-226.

* Como anteriormente destacamos, A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, escrita em 1843, por Marx, só foi publicada em 1927. Max Weber faleceu em 1920, portanto sem  poder ter tido contato com estes apontamentos. Destaco este fato por uma razão muito simples: as considerações dos dois pensadores acerca da burocracia, embora com enfoques diferentes, guardem entre si relações importantes e preciosas. Estou pesquisando a fundo a questão, no afã de produzir trabalho original a respeito.

[24] Marx, CFDH, 1983: 74.

[25] Idem: 46-47.

[26] Marx, CFDH, 1983: 46.

[27] “O direito de uma sociedade assim chama-se Democracia, a qual, por isso mesmo, se define como a união de um conjunto de homens que detêm colegialmente o pleno direito a tudo o que estiver ao seu poder”. Espinosa, Tratado Teológico Político. SP: Martins Fontes, 2003: 240. 

“Pelo que precede, é manifesto que podemos conceber diversos gêneros de democracia; o meu desígnio não é falar de todos, mas de me cingir ao regime em que todos os que são governados unicamente pelas leis do país não estão de forma alguma sob a dominação de um outro, e vivem honrosamente, possuem o direito de sufrágio na assembléia e têm acesso aos cargos públicos”. Espinosa. . “Os Pensadores.Tratado Político. SP: Abril Cultural, 1983: 363.

[28] Marx, CFDH, 1983: 179-180.

[28] Idem: 181.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS:

 

ARISTÓTELES.  Os Pensadores. “Ética a Nicômaco”. São Paulo: Abril, 1973.

 

_____________. Política. 3ª. Ed. Brasília: UnB, 1997.

 

BOBBIO, N. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. RJ: Campus, 2005.

 

ESPINOSA, B. Os Pensadores. “Tratado Político”. SP: Abril Cultural, 1983.

 

____________.Tratado Teológico Político. SP: Martins Fontes, 2003.

 

HEGEL, G.F.W. Princípio de filosofia do direito. Lisboa: Guimarães, 1990.

 

MARX, Karl. Crítica a filosofa do direito de Hegel. Lisboa. Editorial Estampa: 1983

 

WEBER, Max. Economia e Sociedade. 2º. Vol. Brasília: UnB, 1999.

 

BOBBIO, N. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. RJ: Campus, 2005.

 

 

RESUMO: O presente trabalho tem por fim analisar o conteúdo burocrático e suas relações no mundo contemporâneo a partir das reflexões hegelianas e marxianas, estas como oposição aquelas. Destaca-se ainda que o texto também discute a subordinação do Estado ao seu formalismo que é o espírito burocrático, e o seu antídoto representado pela opinião pública fundada no sentido do espírito democrático

 

PALAVRAS-CHAVE: burocracia – democracia – crítica – Estado – serviço público.

 

* Wellington Trotta, ex-bolsista da Faperj, é bacharel em Direito, licenciado em Filosofia e Mestre em Ciência Política pelo IFCS-UFRJ. Atualmente leciona Filosofia do Direito na UNESA.

 

** Este trabalho foi apresentado como material de aula na disciplina Sociologia das Organizações, Curso de Administração do Campus Cabo Frio (UNESA) em 2005. 2. Agradeço aos meus alunos pela paciência e elegância que tiveram no processo de discussão que muito contribui na reformulação do texto original.

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