RIO NEGRO

 

Texto de Vera do Val *

Fotos de  Kiti Grobe **

 

 


O Amazonas é absolutamente diferente do que pensamos sobre ele lá no Sul Maravilha. Falo do Amazonas estado, capital Manaus. A começar pelo rio. No nosso imaginário de paulista, o rio Amazonas é a alma da floresta. Para os manauaras é diferente, o rio Amazonas é quase um estranho. O Negro, com sua magnificência, sua força, seu enigma, engole toda e qualquer referência. Sou uma paulista apaixonada pelo meu Tietê, quando, nos confins do interior, ele reina poderoso e límpido. Mas quem viu o Negro na vida nunca mais se encantará com outro rio. A imensidão de águas escuras, a magia que ele espalha à sua volta, o esplendor dos seus ocasos são coisas que impregnam a alma da gente. Tudo é o rio. É a gênese da cidade e da vida. Seus infindáveis igarapés, suas praias de areias muito brancas, o brilho de lantejoula negra e coruscante ao sol, seu humor, um dia vem outro vai, um dia sobe outro desce.

 

O Negro é sensual, insinuante, muito masculino. É um rio macho. Vem e se apossa da nossa paixão sem pedir licença. O caminhar inexorável de suas águas escuras e densas escorrega pela nossa vida, o esplendor dos igapós, terra de duendes aquáticos e mistérios submersos, árvores fazendo rendas e insondáveis grutas sombreadas. É uma teia de águas, um emaranhado de rios e fontes, uma imensidão cheia de segredos e de historias. O Negro entranha na pele, emprenha nossos desejos, cavalga nossos sonhos. Como um enorme risco à carvão ele estupra a floresta e desse fecundar nascem árvores imensas, coqueiros e sagüis. Nasce a pupunha e o açaí, a gameleira e o oiti, a samaúma gigantesca e o camu-camu com suas frutinhas vermelhas, o apuí, as castanheiras, o cipó do guaraná, as orquídeas deslumbrantes e as bromélias enrubescidas. Também o tucumã com seus espinhos, o urucum, fruto partido pingando sangue, e a seringueira que chora lágrimas de borracha. Nasce a floresta esmeraldina, o tamanduá, a onça pintada, o índio.

 

O Negro é isso tudo e mais ainda. É pai e mãe de botos e iaras e de curuminhas perdidas; tem a todos aninhados nas suas funduras cheias de lendas fantásticas, de pescadores enlouquecidos, de cobra d’água e de lua cheia. É pai do peixe boi, do aracu riscado e quatro pintas, dos acarás, das matrinchãs, dos jundiás, o preto e o amarelo, dos araripirás coloridos e rápidos, do pirarucu sobranceiro e orgulhoso da sua supremacia no reino das águas escuras.

 

Nas noites o Negro é regaço de namorados, de praias enluaradas e areias macias. Suas águas sussurrantes recolhem suspiros, aconchegam carinhos e murmuram gemidos de amor. Aos domingos se veste de festa e paciência, as lanchas e barcos rasgam suas águas, a algazarra das crianças, os cuidados das mães, o colorido das bandeirolas, a tolha xadrez, e os piqueniques feitos nas suas margens. O rio parece se irritar um pouco com o som estridente dos toca fitas, fazer um muxoxo de desdém com os exibicionistas, mas sobretudo, estende-se majestosamente ao sol. Ao fim do dia é o seu esplendor áureo. O entardecer do Negro tem todas as cores e nuances imagináveis. É a hora que o rio  conversa com Deus. Então nesse diálogo de suprema e efêmera beleza ele se supera. Ruge esplendoroso nos vermelhos, geme nos amarelos, chora nos azuis, para acabar se acalmando, langoroso, na doçura dos rosados e lilases. E quando a noite chega, escurecendo tudo, eles se juntam. Rio e noite, noite e rio, não se sabe onde é o céu e onde é a  terra, onde começa o sonho e acaba o mundo.










 

* Premiada autora de textos literários. Editora do blog: www.rosebud.rose.bud.zip.net

e.mail: rosebud.rose.bud@uol.com.br

** Arquiteta. As fotos foram tiradas em janeiro 2006.

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