A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA NO BRASIL E AS TEORIAS DA DEPENDÊNCIA DE RUY MAURO MARINI E FERNANDO HENRIQUE CARDOSO *

        

                                                               

 Maryann Büchler**

 

 1. Introdução

 

O presente trabalho tem como propósito contrapor duas vertentes da chamada “teoria da dependência”, a de Fernando Henrique Cardoso e a de Ruy Mauro Marini, examinando se o conceito de “desenvolvimento dependente-associado”, de Cardoso (1974), tem potencialidade explicativa capaz de ajudar a compreender o modus operandi do setor farmacêutico brasileiro.

 

Tendo se passado mais de três décadas da elaboração original do pensamento destes autores sobre “dependência”, nos parece interessante pontuar os caminhos que foram trilhados pela indústria farmacêutica brasileira  ao longo do período,  com base na avaliação teórica de cada uma das distintas  linhas teóricas dos  citados intelectuais, cujas análises devem voltar a ser confrontadas nos dias atuais.

 

2. Origens da teoria da dependência: duas vertentes.

 

A teoria da dependência nasce no calor da crise do nacional-desenvolvimentismo dos anos 60 e vai ter sua primeira etapa de formulação entre os anos 1964 e 1973, no encontro de exilados das diversas ditaduras que começavam a eclodir na América Latina.  Nesse movimento de fundação da teoria da dependência cristalizam-se duas grandes versões, que estarão em confrontação a partir dos anos 70.

 

De um lado, tem-se a versão desenvolvida por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, para cujos autores a crise da industrialização latino-americana era a crise do projeto de constituição do capitalismo nacional, pautado na substituição de importações sob a coordenação do Estado Nacional. Segundo os autores, a solução estaria em aceitar a penetração do capital estrangeiro que traria a poupança externa sob a forma de tecnologia industrial ou moeda mundial, superando a escassez nacional de divisas. O crescimento econômico permitiria uma melhoria na renda e nos padrões de vida da população em seu conjunto e as desigualdades se reduziriam com políticas sociais impulsionadas por regimes democráticos.

 

De outro lado, surge a vertente da teoria da dependência de caráter marxista, a qual teve no brasileiro Ruy Mauro Marini, seu principal idealizador. Aliado a Ruy Mauro Marini, outro nome, Theotonio dos Santos, também vem corroborar uma mesma constituição de pensamento.

 

A participação do marxismo no impulso aos estudos da teoria da dependência não se restringiu aos aspectos teóricos, contribuindo também para a formação de um ambiente em que estes eram desenvolvidos. Havia uma busca por desenvolver-se uma leitura marxista, pensada para interpretar a realidade latino-americana. A revolução cubana e sua reverberação no seio da América Latina, somadas aos movimentos de esquerda pelo mundo, fizeram com que ascendessem  as perspectivas em busca de vias transformadoras das realidades adversas, como a do subdesenvolvimento.

 

Da análise da posição da burguesia e das classes dominantes latino-americanas no conjunto da economia mundial capitalista, Ruy Mauro Marini extraiu,  além do   conceito de superexploração, o conceito de  sub-imperialismo. Ambos conceitos tornar-se-iam marcos no desenvolvimento da teoria da dependência. Para o autor, havia uma impossibilidade de desenvolvimento capitalista na periferia. Segundo Marini, o capitalismo brasileiro teria atingido o seu limite histórico e caminhava para a estagnação, para o que havia apenas duas alternativas: do lado das elites, a manutenção do status quo capitalista  através do recurso ao “fascismo”  (do que a ditadura militar seria a expressão) e, do lado da população em geral, a ruptura completa  do processo histórico-social brasileiro através de uma revolução socialista. Segundo o autor, sem isso, o único caminho seria o da estagnação.

 

Ainda de acordo com Marini (1979), a crise do atual modelo de desenvolvimento latino americano, caracterizado como um desenvolvimento capitalista dependente, conduziria, inevitavelmente, na América Latina e particularmente no Brasil, a uma alternativa inescapável entre socialismo e fascismo.

 

Segundo os autor e de outros que defendiam essa vertente, a crise no capitalismo latino-americano não era apenas uma crise de direção nacional; era, sobretudo, a crise de um capitalismo que já havia vinculado, desde meados dos anos 50, seu dinamismo industrial à empresa multinacional e à ampla penetração do capital estrangeiro. Esse capital não representava uma poupança externa que se integrava às economias latino-americanas, mas antes, buscava lucros e excedentes que eram direcionados aos seus centros de acumulação, situados fora da região. O resultado a médio e longo prazo era a evasão de divisas dos países da região que se saldava com a superexploração do trabalho, criando um poderoso obstáculo à consolidação e aprofundamento do processo democrático.

 

O conceito de superexploração do trabalho, sem dúvida, foi importante na formulação da teoria da dependência, com repercussão na economia política das últimas décadas. O citado conceito, construído por Marini em Dialética da Dependência (1976), traduzia um regime de regulação da força de trabalho em que a acumulação de capital não se fundamentava sobre o aumento da sua capacidade produtiva através do desenvolvimento tecnológico, mas em uma maior exploração, ou seja, em uma superexploração do trabalho. Essa maior exploração do trabalhador encontraria três formas possíveis de manifestação: a mais grave, através da redução salarial, e outras duas que seriam o aumento da jornada de trabalho ou o aumento da intensidade de trabalho sem a elevação salarial correspondente. Em outras palavras, o autor afirmava que o regime capitalista de produção desenvolveria duas grandes formas de exploração que seriam a obtenção do aumento da força produtiva do trabalho pela via de uma maior exploração do trabalhador.  Essa maior exploração do trabalhador que se caracterizava pelos  três processos acima referidos, poderiam atuar de maneira  conjugada ou de forma isolada.

 

 Sua teoria articulava a forma de inserção das economias periféricas no mercado internacional com os mecanismos de acumulação de capital e de exploração do trabalho. Segundo o autor, tendo chegado tarde ao mercado mundial, as burguesias dos países da periferia buscariam compensar o atraso tecnológico elevando o nível de exploração da força de trabalho, ou seja, através da superexploração do trabalho.

 

Esse mecanismo, por sua vez, entre outras conseqüências, achataria ainda mais o mercado de consumo popular, provocando uma ruptura entre o mercado (como um todo) e a alta esfera do consumo, da qual passaria a depender a realização do capital, juntamente com os mercados externos, através da via da exportação. Como uma das conseqüências desse processo, viria o aumento do nível de desigualdades entre a maior parcela da população - esta privada do acesso dos bens de consumo - daquela parcela cujo acesso aos bens de consumo seria preservado.

 

Era, pois, dessa forma que Marini apresentava a essência do mecanismo de acumulação de capital nas economias dependentes, mecanismo este, responsável pelo caráter deformado e pleno de contradições que caracterizaria o seu desenvolvimento.

 

F.H.Cardoso e Falleto discordavam de Marini, quanto à  tese da superexploração do trabalho, pela qual os países periféricos tinham necessariamente que intensificar a exploração do trabalho a fim de compensar a transferência de mais-valia dos países da periferia para os centrais, cujo resultado seria a realimentação da dependência e a manutenção do subdesenvolvimento. Para F.H.Cardoso e Falleto, a dependência, ao contrário dos argumentos que Marini sustentava, não se assentava sobre a exploração da mais-valia absoluta, mas sim sobre a mais-valia relativa, uma vez que o capitalismo dependente seria capaz de gerar  novas formas de exploração e de relações de produção que dispensariam a mais-valia  absoluta e servir-se-iam da mais-valia relativa. Segundo Cardoso, o capitalismo industrial seria um processo constante de superação e de dinamização das relações de produção, referindo-se ao progresso tecnológico e o aumento da produtividade do trabalho. [1]

 

Hoje, ainda que a temática da “dependência” possa estar de certo modo marginalizada em função da emergência da globalização e do “triunfo” do ideário neoliberal; a referida temática era básica na década de 70, no sentido do entendimento da exclusão, do atraso e do autoritarismo. Processos presentes nas sociedades de países da América Latina em geral e, particularmente, no Brasil.

 

 Marini procurou distinguir as principais características que assumiria a superexploração da força de trabalho na América Latina, mormente a partir dos anos 60, justamente quando se afirmava  a crise da industrialização voltada para o mercado interno e iniciava-se na região sua inserção numa economia mundial globalizada sob o domínio de políticas de natureza neoliberal.

 

No que concerne à específica questão do desenvolvimento industrial, o que se verificou foi que o hiato tecnológico existente entre os países já industrializados e os países da periferia, dentre eles o Brasil, fez com que estes países não adquirissem uma estrutura industrial “completa”, consolidando uma estrutura produtiva constituída ao mesmo tempo por um caráter complementar com relação à economia dominante e especializado em bens que já não constituíam o eixo motor do capitalismo dominante. Em relação ao exposto, o economista Heitor Ferreira Lima (1973) chamou a atenção para uma forma particular da penetração capitalista americana, que se manifestou através da implantação de uma série de filiais de empresas no Brasil, em geral empresas industriais, visando o domínio do nosso mercado. [2]

 

 A instalação de filiais de grandes empresas americanas começou, na verdade, a tomar vulto na América Latina já nos anos 1920. Cardoso e Faletto [3] apresentam a questão afirmando que “O período de dependência clássica no qual os produtos primários constituíram a base da ‘expansão orientada externamenteprolongou-se até o início da década de 1930”. Segundo os autores, a crise da depressão tornou impossível a sobrevivência na velha base e forçou o foco da transição no mercado interno dependente.

 

A consolidação do “mercado interno”, ou seja, o crescimento de uma industrialização “fácil”, de substituição de importações, é, por sua vez, seguida da “internacionalização” do mercado interno [4] ; período durante o qual a penetração das multinacionais se torna mais intensa à medida que a substituição das importações passava dos bens de consumo não-duráveis para os duráveis, bens intermediários e alguns bens de capital.

 

O’Donnell [5] refere-se ao fato como sendo a transição da industrialização “horizontal” para a “vertical” e concorda com Cardoso e Faletto quando salienta que  seu caráter interno, político e econômico é diferente da fase anterior da substituição de importações.

 

Para F.H.Cardoso e Faletto, uma vez ocorrida a internacionalização do mercado interno, estaria, então,  preparado o cenário para a burguesia internacionalizada [6] .  A aliança do capital nacional e internacional surgiria como elemento comum a essa descrição.

 

O modelo de “desenvolvimento dependente-associado” de Cardoso (1974) levaria mais longe a idéia de aliança: envolveria a expansão simultânea e diferente dos três setores da economia: o setor nacional privado, o setor estrangeiro e o setor público.

 

Politicamente, o desenvolvimento dependente-associado exigiria a “estruturação  de um sistema de relações entre os grupos sociais que controlam esses setores econômicos [7] .                                                

 

Como complemento empírico da discussão, tomando como referência a indústria farmacêutica brasileira, pode-se dizer que o modelo proposto por Cardoso e Faletto não se adequou ao acontecido, pois não se deu a imaginada aliança entre o setor nacional privado e o setor estrangeiro. O modelo de desenvolvimento dependente-associado não se concretizou, nem tampouco a aliança entre o setor estrangeiro e o setor público vingou, como pontuado  na proposta de Cardoso e Faletto.

 

Para o poderoso e hegemônico setor estrangeiro da indústria farmacêutica, o setor público, na maior parte do tempo, representou um limite às suas estratégias expansionistas, monopolistas e suas propostas liberalizantes de mercado, através de controle de preços, controle das importações e pela imposição de leis protecionistas à produção nacional.

 

 Mesmo a CEME (Central de Medicamentos), embora estruturada em bases diferenciadas daquelas inerentes às empresas estatais,  e portanto não representando ameaça de redução da fatia de mercado do setor privado, era vista pelas multinacionais com extrema cautela, desconsiderando, desse modo, o fato de que sua meta estratégica visava o bem-estar social e, portanto, baseava seus padrões de eficiência em bases conceituais de produtividade distintos dos padrões utilizados pelo setor privado. Em outros termos, para a CEME, um maior nível de distribuição e ampliação de fornecimento gratuito de medicamentos para as populações carentes era seu objetivo como instituição.

 

 Além disso, a CEME era cliente do setor privado, nacional e estrangeiro, já que um terço dos produtos  por ela distribuídos na década de 1970, não eram  fabricados em seus próprios laboratórios, devido ao limite da capacidade das instalações dos laboratórios oficiais. [8] Essa situação não foi suficiente para transformar as multinacionais em suas aliadas. Pelo contrário, a CEME era considerada como uma concorrente potencial a longo prazo. Era um perigo porque levantava a possibilidade de uma aliança contra a desnacionalização, entre o Estado e o capital nacional.

 

 A CEME possuía um projeto de incentivo à P&D  nas empresas de capital nacional, e isso não era algo recebido com alegria pelas empresas internacionais.

 

É preciso salientar que, no que diz respeito a um dos elementos-chave do setor farmacêutico, a questão tecnológica é o que há de mais fundamental, pois se trata de indústria que tem como mola propulsora a inovação.  Se no período inicial de internacionalização do setor farmacêutico apenas uma pequena parte do processo produtivo era transferida para o Brasil, o tempo mostrou que esperar que gradativamente se ampliassem os processos de internalização das tecnologias não foi uma boa estratégia.

 

Como pontuou Caio Prado Jr., a abertura destas empresas subsidiárias tinha por objetivo assegurar o nosso mercado aos seus produtos, aproveitar certas facilidades aduaneiras ou a mão‑de‑obra mais barata de que dispunha o nosso país, ou ainda, beneficiar-se de vantagens de transportes, dividindo assim o processo de produção em duas partes: uma de fabricação de peças ou de componentes na matriz; outra, da montagem aqui.

 

A importância relativa da parte da produção executada no país variava, obviamente, segundo o produto. No processo vivido pela internacionalização da indústria farmacêutica há casos em que a seção brasileira se limitava à embalagem de artigos acabados, produzidos pela matriz. O ramo da indústria farmacêutica, inclusive, era um dos principais interesses das subsidiárias americanas. Os medicamentos vinham a granel e eram apenas fracionados e embalados nas instalações aqui implantadas.

 

Conforme Peter Evans discute em A Tríplice Aliança, as multinacionais sempre relutaram em se dedicar às atividades tecnologicamente inovadoras na periferia, mesmo num clima favorável de investimento, como era o Brasil em fins dos anos 1960. Com pequenas variantes, essa situação permanece até os dias de hoje. Aqueles princípios ativos menos sofisticados passaram a ser produzidos por algumas empresas multinacionais em suas subsidiárias no Brasil por força de decretos criados no decorrer de governos de cunho mais nacionalista. Isso, no entanto, apenas ocorreu por terem sido colocados diante do risco de redução do montante de seus lucros. No momento em que a nova ordem liberalizante se estabeleceu, rapidamente paralisaram suas plantas, passando a importar estes produtos também, além  daqueles insumos que jamais produziram no país, os mais relevantes. Tais produtos, quando exclusivos, prestavam-se ao uso da conhecida prática de preços de transferência [9] . Tal expediente, inclusive, terminou por levar ao estabelecimento de uma CPI no ano de  2000, para a investigação desta prática por parte das multinacionais.

  

Segundo Bertero ( 1972 ), “a situação da indústria farmacêutica no Brasil de hoje, basicamente controlada pelas empresas multinacionais, é de dependência auto-perpetuadora, sem perspectivas para o desenvolvimento da tecnologia [10] . Embora esse juízo subestime o grau em que é possível modificar o comportamento das multinacionais, é certamente verdade que a tendência dessas empresas em negligenciar ou evitar o investimento em instalações locais para a inovação de produtos apresenta um obstáculo à evolução tecnológica de um país em fase de desenvolvimento dependente.

 

As empresas estrangeiras ao concretizarem a compra dos laboratórios nacionais deixaram rapidamente de produzir a linha de medicamentos que nelas havia. Se por um tempo, os antigos donos permaneceram com uma parte da sociedade, rapidamente foram afastados. Novos produtos exclusivos são a condição sine qua non das operações lucrativas para uma empresa farmacêutica internacional.

 

Evans ao comparar o Brasil à Argentina utilizou o trabalho do argentino Jorge Katz (1974) e afirmou: “Esse país é um bom lugar para se examinar a atividade inovadora nacional, porque a desnacionalização não se processou no mesmo grau. Na Argentina as firmas nacionais representam mais de 50% das vendas totais e 9 das 25 maiores firmas são nacionais [11] . Esse aspecto dá uma preciosa indicação de que a compra dos laboratórios nacionais brasileiras pelas empresas estrangeiras tenha eliminado a possibilidade de um desenvolvimento tecnológico local.

 

Para as empresas multinacionais, a discussão sobre se a capacidade de desenvolver esses novos produtos deveria ser transferida para a periferia juntamente com as operações de manufatura nunca foi seriamente colocada como passível estratégia empresarial. Uma indagação pode ser colocada de maneira menos abstrata: haveria sentido em tentar desenvolver novos remédios no Brasil? Embora em algumas situações, através de incentivos fiscais, governos tenham tentado fazer com que as multinacionais implantassem estruturas de P&D  no Brasil, tais laboratórios não atenderam a sugestão, alegando não haver no país o ambiente adequado à implantação de pesquisa e desenvolvimento de novas entidades.

 

Como afirma Evans, enquanto interesses contraditórios separarem as multinacionais e os nacionalistas, a questão do controle do setor terá importância central para o progresso do desenvolvimento dependente. [12]

 

Enquanto as multinacionais puderem manter controle sobre suas empresas e investimentos no Brasil, as decisões serão tomadas de acordo com sua própria racionalidade global.  Desse modo, as considerações sobre acumulação nacional estarão sempre em segundo plano. Levantar a questão dos controles significa avaliar a possibilidade de que as multinacionais sejam obrigadas a dar maior prioridade à acumulação nacional, mesmo com algum sacrifício de suas estratégias globais  e  essa lógica não tende a se verificar.

 

Resumindo, para um setor intensivo de tecnologia, manter o controle significa deter tecnologia com exclusividade. Ou seja, o desenvolvimento dependente não eliminou o conflito entre a racionalidade global da multinacional e a lógica nacionalista que dá maior ênfase à acumulação nacional. A questão da disposição das multinacionais de se dedicarem a operações de manufatura foi substituída por outras e  a tensão persiste. Uma das principais áreas de tensão no contexto do desenvolvimento dependente é a tecnologia, o que não constitui surpresa. A tecnologia é algo que as multinacionais têm, e que os países da periferia , especialmente os países em desenvolvimento dependente da “semiperiferia”, desejam. Superficialmente, os nacionalistas e os multinacionais parecem estar de acordo. As multinacionais desejam levar  sua tecnologia para o Brasil, e os brasileiros desejam vê-la implantada em seu país. Mas sob esse evidente interesse comum estão dois interesses totalmente contraditórios. Nesse sentido, novamente, não se verifica tese de  Cardoso e Faletto.

 

Ambos os lados, empresas nacionais e estrangeiras reconhecem que o controle proprietário do conhecimento cria o potencial para rendas monopolistas. As multinacionais querem ser capazes de exercer esse potencial da maneira mais amplamente  possível. Sentem-se satisfeitas em levar sua tecnologia envolvida na produção de medicamentos ao Brasil, desde que isso não prejudique seu monopólio. Os brasileiros queriam exatamente o oposto. Queriam ver a utilização local da tecnologia precisamente porque consideram essa utilização local como o primeiro passo para a viabilização do desenvolvimento de conhecimento local. Em última análise, os nacionalistas gostariam de ser capazes de colher seus próprios rendimentos monopolistas oriundos do conhecimento gerado localmente.

 

 Desse modo, a relação estreita entre os grupos sociais inerente ao modelo  proposto por Cardoso e Faletto não se verificou no caso do setor farmacêutico.

 

 O cenário para uma burguesia internacionalizada não surgiu, na medida em que a aliança do capital nacional e internacional, elemento essencial do sistema proposto, não se verificou.

 

 O modelo de Cardoso de desenvolvimento dependente-associado não vingou, como o previsto, nem mesmo conseguiu estabelecer a idéia de aliança, a não ser nos casos em que o controle de preços impostos pelo Estado se fez presente. Nesse aspecto ocorreu consenso e os interesses eram os mesmos, mas só isso.

 

 Verifica-se que o único ponto de convergência entre os setores farmacêutico nacional e estrangeiro diz respeito ao processo de acumulação de capital. Quanto à expansão simultânea dos três setores – capital nacional, capital internacional e Estado -, dados disponíveis demonstram que a convergência não se verifica.

 

 Expansão medida através da dimensão de mercado em valores de dólares  apenas ocorre com as empresas internacionais.  Se politicamente, o desenvolvimento dependente-associado exigiu  a estruturação  de um sistema de relações, somente foi possível a estruturação política dos partícipes internacionais através de associações hegemônicas. No sistema interno, com a ABIFARMA e a INTERFARMA  e,  externamente,   através da capacidade de  interferência  do poderoso lobby da Pharmaceutical Manufacturers Association (PMA) [13] , uma associação comercial que reúne mais de cem companhias atuantes em P&D que produzem a quase totalidade dos medicamentos vendidos nos EUA e na maioria dos países, capaz de fazer com que o governo norte-americano , através de graves retaliações, impusesse  mudanças na lei de patentes do Brasil.

 

O questionamento do conteúdo substantivo da inovação nacional suscita a questão das contradições entre as necessidades da massa da população periférica e a inovação do produto que visa à lucratividade.

 

A essência do argumento é que há tensão entre as multinacionais e os nacionalistas, mesmo quando o nacionalista é definido em termos de lucros nacionais. O comportamento do Estado brasileiro vis-à-vis o setor farmacêutico presente na coleção de exemplos históricos sempre oscilou entre a preservação dos interesses nacionais – como quando aboliu a proteção patentária em duas etapas, em 1945 e em 1969 – e a adoção de medidas destinadas a facilitar a entrada de capital estrangeiro - como as instruções nº 70 e 113 da SUMOC, e mais recentemente, quando o governo Collor enviou projeto de lei ao Congresso prevendo o reconhecimento de patentes, sem prazo de carência, como queriam os laboratórios multinacionais. [14]

 

As contradições entre os interesses das multinacionais e o desenvolvimento da periferia persistem mesmo depois que as multinacionais começaram a se dedicar à alguma etapa de manufatura na periferia, mesmo no contexto da “internacionalização do mercado interno”, “desenvolvimento dependente-associado” e o aparecimento de novas associações com a burguesia nacional. É nesse ponto que se verifica a impossibilidade da aplicação da teoria proposta por Cardoso e Faletto.

 

A ampla penetração do capital estrangeiro que se verificou ao longo da segunda metade do século XX no setor de fármacos no Brasil, não deixa dúvidas quanto aos impactos que a sociedade brasileira vivenciou na área da saúde. Os produtos desenvolvidos pelas empresas internacionais não trouxeram uma elevação no padrão de saúde para a grande parcela da população. Esta permaneceu sem acesso aos modernos medicamentos lançados no mercado, oriundos  de inovações desenvolvidas nos grandes centros. Para esta população, (ou melhor, para apenas uma fração dela, já que os programas nunca contemplaram todos os necessitado),  estavam direcionados os medicamentos da CEME, constantes da lista da RENAME – Relação de Medicamentos Essenciais, cujo custo de produção, afirmavam seus diretores , não chegavam a 40% dos custos apresentados pelas empresas internacionais.

 

Embora apenas uma pequena parcela da população brasileira tivesse o privilégio de poder ter acesso aos modernos lançamentos do setor, o mercado brasileiro, nos seus melhores momentos, chegou a figurar como 5º mercado mundial de medicamentos [15] , conforme apresentado na tabela I, ajudando a demonstrar o já sabido elevado grau de concentração de renda numa pequena parcela da população, provavelmente, aquela parcela que Cardoso denominou de internacionalizada.

 

Tabela I – Países líderes no faturamento mundial da Indústria Farmacêutica – 1998

Classificação           País                        Faturamento(US$bilhões)               %

       1                    Estados Unidos         74,09                                   24,26

       2                    Japão                      38,76                                  12,69

       3                    Alemanha                 15,47                                    5,06

       4                    França                    14,16                                    4,32

       5                    Brasil                       10,31                                   3,37

       6                    Itália                       9,12                                     2,98

       7                    Reino Unido              8,38                                      2,74

       8                    Espanha                   5,28                                     1,73

       9                    Canadá                    4,27                                      1,40

     10                    Argentina                 3,55                                      1,16

Total dos 10 lideres                              182,34                                    59,71

 (Fonte: ABIQUIF/ABIFARMA/SINDUSFARMA)

  

3. Algumas Conclusões

 

Para finalizar, não há evidências de que esse capital estrangeiro entrante especificamente no setor farmacêutico brasileiro tenha representado uma poupança externa que se tivesse  integrado  à economia brasileira, mas antes, evidenciou-se sua busca e obtenção de  lucros e excedentes que foram direcionados aos seus centros de acumulação, muitas vezes através de sutis procedimentos e práticas tais como a utilização de preços de transferência [16] , cujos dados levantados em estudo apresentado em tese de doutoramento da Escola de Química da UFRJ  indicam a existência de profundo veio de evasão de divisas,  que as subsidiárias das grandes corporações internacionais do setor farmacêutico  já transferiram para suas casas matrizes, com  cifras que  chegaram a alcançar a casa de 600 milhões de dólares , causando uma perda de arrecadação tributária ao país da ordem de  180 milhões de dólares a cada ano.

 

Quanto ao setor farmacêutico brasileiro em si, é inegável o fato de que desde sua implantação tem atravessado intermináveis mudanças em suas diretrizes,  definidas em função de diferentes ideologias  e diferentes contextos políticos-econômicos.

 

Nas últimas décadas, sua relação com o Estado variou desde uma ampla proteção até sua total ausência na agenda de prioridades políticas dos governos.

 

Nas décadas de 1970 e 1980 verificou-se um apoio por parte do Estado na implementação de  políticas que redundaram na implantação de uma série de plantas industriais produtoras de um razoável  rol de princípios ativos básicos, principalmente aqueles contemplados pela RENAME, definindo uma trajetória que talvez pudesse determinar resultados  relevantes em termos de consolidação de um parque nacional farmacêutico, caso tivessem sido encetados de maneira sistemática e  ordenada.

 

No início da década de 1990, com o rompante neoliberalizante do governo Collor, e sua plena consolidação nos governos de Fernando Henrique Cardoso, grande parte deste parque industrial foi paralisado. Não somente as empresas de capital nacional interromperam suas atividades, mas praticamente todas as empresas internacionais aqui instaladas suspenderam suas produções , passando a importar de suas matrizes todos os insumos de maior valor agregado. Obviamente, as motivações  de cada segmento, nacional e internacional, diferenciaram-se entre si.

 

Vale  citar o fato de que as empresas internacionais que  produziam alguns princípios ativos em suas plantas instaladas no Brasil o faziam, exclusivamente, por força de instrumentos legais que  haviam sido criados para impedir a prática de concorrência desleal capaz de  inviabilizar a produção das empresas nacionais.

 

No momento em que tal legislação foi substituída por medidas liberalizantes, o que se verificou foi a paralisação das plantas das empresas  internacionais instaladas em território brasileiro e  a conseqüente importação dos princípios-ativos de suas matrizes.

 

Os medicamentos fabricados por tais empresas tiveram seus preços aumentados paulatinamente e o que se verificou foi um aumento generalizado no custo dos medicamentos no Brasil, a partir de então.

 

Hoje, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, volta-se a falar em implementação de políticas industriais focadas no setor de fármacos, novamente avaliado como sendo estratégico por razões que passam tanto pelas questões de ordem sociais, quanto tecnológicas.

 

 Devemos, pois, aguardar os acontecimentos, e assistir as ações e reações por parte dos atores envolvidos. Não há, no entanto, indícios de que possam ocorrer associações entre o capital nacional e o capital internacional visando a implantação de centros de pesquisa e  desenvolvimento de novas entidades farmacêuticas no Brasil.

 

 A indústria nacional fala apenas em melhorias tecnologias incrementais... No entanto, a história nos mostra que o setor farmacêutico vive de saltos tecnológicos. Ou seja, a menos que a via da  inovação tecnológica   possa ser o caminho ora escolhido e viabilizado, o país estará fadado a se posicionar de modo subalterno no que se refere ao setor farmacêutico em seu próprio território.


Notas:

 

[1]  A discussão pode ser  encontrada em  detalhes em  Cardoso F.H.  e Falleto, E. (1973).

[2] Ver excelente discussão em LIMA, Heitor Ferreira. História Político‑Econômica e Industrial do Brasil.  São Paulo: Ed. Nacional,1973.

[3]
Cf. Cardoso e Falleto (1973:39-51).

[4] Cf. Cardoso e Falleto (1973:114-138).


[5] Segundo apresenta  O’Donnell apud Evans, P.( 1982).


[6] Cf. Cardoso e Falleto (1973:134).


[7] Cf Cardoso e Falleto (1973:130).


[8] Cf. Relatório CEME (1974:35).


[9] Em Isidoro da Silva (1999) foi desenvolvido um substantivo trabalho sobre o tema.


[10] Cf. Bertero,C.Drugs and Dependency in Brazil (1972) apud Evans, P. ( 1982).


[11] Cf. Katz, J. (1974) apud Evans,P.(1982).


[12] De acordo com Peter Evans  ( 1982 ) em  “A tríplice Aliança”.


[13] Há em Tachinardi. M.H. (1973)  uma análise detalhada sobre a questão.


[14] Amplamente discutido em Tachinardi, M.H. (1993).


[15] De acordo com ABIQUIF/ABIFARMA/SINDUSFARMA  apud  Isidoro da Silva ( 1999).


[16] Em  Isidoro da Silva, Ricardo (1999) há  um vasto conjunto de dados acerca da questão dos preços de transferência.  

 

Referências Bibliográficas

 

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TRASPADINI, Roberta.  A teoria da (inter)dependência , Rio de Janeiro:Topbooks, 1999.

 

 

 

Resumo:

 

Os anos de 1964 e 1973 delimitam a  primeira etapa de formulação da teoria da dependência. Nesse movimento de fundação da  teoria, cristalizam-se duas grandes versões. Enquanto a vertente de caráter marxista, tendo em Ruy Mauro Marini como seu principal idealizador, postula que “dependência gera mais dependência”; Fernando Henrique Cardoso defende a penetração do capital estrangeiro como fator de desenvolvimento dependente associado, como solução para a crise da industrialização latino-americana. O presente artigo utiliza o setor farmacêutico brasileiro como modelo empírico para a discussão das duas vertentes da teoria da dependência, com ênfase em exame de questões colocadas por Cardoso e, por fim, reflete sobre o problema da inovação tecnológica no setor.    

 

 

Abstract:

 

The first  period  of Dependence Theory formulations occured  between  1964 and 1973’s. Two versions are consolidated  as result of these moviments. The marxist version had Ruy Mauro Marini as the main representative. In the other side, Fernando Henrique Cardoso defended  the penetration of the foreign capital as an associative-dependent development element and the fundamental solution to the latin american  industrialization  crisis. This paper analyses the brazilian  pharmaceutical sector as an empirical model  to discuss the versions of the Dependence Theory  in opposition since  1970’s and introduce the sectoral technological inovation discussion.

 

Palavras-chave: Indústria farmacêutica brasileira, Teoria da Dependência, Duas vertentes da Teoria da Dependência, desenvolvimento dependente-associado, Inovação tecnológica.

 

Key-words: Pharmaceutical sector, Dependence Theory, Two versions to the Dependence Theory. Technology inovation.

 

 

*A versão original deste trabalho, aqui bastante modificada, foi apresentada na disciplina “Pensamento Político Brasileiro”, ministrada pelo Prof. Dr. Aluízio Alves Filho, no PPGCP/UFRJ, no 1º semestre de 2004.

 

** A autora é Mestre em Ciência Política pelo PPGCP/UFRJ.

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