SEM QUERER ACERTOU NA CABEÇA: O LITÍGIO COM LULA ACERCA DE UM BONÉ
 

Soraya Maria Romano Pacífico *

e

Lucília Maria Sousa Romão **

 

 Mundo em Rabisco

“Quando nasci, um anjo torto  desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida. [...]” (Carlos Drummond de Andrade. Poema de sete faces)

 

 

1.Lula e o MST nas teias da mídia

 

Neste artigo pretendemos analisar quais foram os sentidos naturalizados pela mídia, no período que corresponde aos anos de 1970 a 2002, sobre o então candidato à presidência da República do Brasil Luís Inácio Lula da Silva e, hoje, atual presidente deste país e, também, sobre o MST (Movimento trabalhista dos sem terra). Queremos investigar como a mídia construiu os efeitos de sentido sobre o MST e sobre Lula, desde o início da caminhada política deste candidato, numa época em que a mídia o apresentava como uma ameaça ao país, ou melhor, aos valores caros à classe dominante do país, até o momento em que a mídia mudou seu discurso e Lula passou a circular nos veículos de comunicação como a figura que representava a esperança para o povo brasileiro, até ser eleito, em outubro de 2002.

 

Pudemos observar que, ao mesmo tempo em que houve um deslizamento de sentido em relação à figura de Lula, o mesmo não aconteceu em relação ao MST, que sempre circulou na mídia vinculado ao banditismo, à desordem (vale lembrar, aqui, que o lema de nossa bandeira é “ordem e progresso”; daí, a transgressão do movimento), representando uma ameaça ao Brasil e ao povo brasileiro.

 

Consideramos relevante tal investigação, pois desde o mestrado nos ocupamos com reflexões sobre a leitura, entendendo leitura em sentido amplo, não simplesmente a leitura como decodificação de um enunciado, mas a leitura que exige do leitor um posicionamento sócio-histórico-ideológico, uma memória-do-dizer (interdiscurso), já que os textos são produzidos a partir de outros textos, outras vozes que se cruzam continuamente na produção textual. Isso significa que leitura, para nós, envolve toda a possibilidade de construção de sentidos; portanto, concebemos leitura como atividade de interpretação.

 

No mestrado (Pacífico, 1996), realizamos a leitura dos textos da mídia, no período que compreendeu os governos de Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, a fim de observar como estes textos veicularam a transformação do significado de Pátria que ocorreu em determinada camada da sociedade brasileira, transformação possível de ser constatada pela leitura intertextual, pois partimos do princípio de que a leitura traz a marca da intertextualidade. Bakhtin (1981) foi um dos primeiros a apresentar a noção de intertextualidade, considerando que os textos mantêm um diálogo entre si. Para este autor, o princípio dialógico permeia a linguagem, sendo impossível conceber o discurso ignorando-se o dialogismo, que constitui, na concepção bakhtiniana, a condição de sentido do discurso.

 

O dialogismo discursivo manifesta-se por meio da relação entre o enunciador e o enunciatário e, também, pela intertextualidade no interior do discurso. Por isso, procuramos traçar um percurso de leitura, a fim de que o leitor pudesse compreender a intertextualidade que sustenta a construção dos textos da mídia, que recorre a textos literários, pictóricos, enfim, a uma multiplicidade de textos que já circularam e retornam, sob a forma de paródias, de ironia, denunciando, muitas vezes, explícita ou implicitamente, uma dada situação social.

 

Diante disso, entendemos que, para compreender os sentidos veiculados pela mídia, o leitor precisa recorrer à memória-do-dizer (interdiscursividade), pois muitos destes sentidos ficaram registrados na memória do país. É uma re-significação que tem origem em um discurso que não se perdeu com o tempo, foi preservado na memória nacional. Devemos lembrar que a intertextualidade pressupõe a interdiscursividade, uma vez que a intertextualidade é constatada pela presença de marcas explícitas de um texto em outro e isso pode ocorrer nos vários sistemas semióticos. Já, com a interdiscursividade essa relação dos textos não é necessariamente explícita, pode ocorrer por meio de alguns temas que caracterizam determinadas formações discursivas e, então, a partir da análise, torna-se possível compreender o interdiscurso como um diálogo temático subjacente aos textos.

 

Diante disso, entendemos que, para compreender os sentidos veiculados pela mídia, o Pudemos constatar, assim, que os textos da mídia, embora sendo mais acessíveis ao leitor do que os textos literários e científicos, por exemplo, trazem uma leitura que exige do leitor um posicionamento sócio-histórico-ideológico para que seus sentidos sejam compreendidos, pois o leitor que não se engajar no processo de construção dos sentidos, fará uma leitura ingênua e improdutiva, ou seja, desprezará a construção histórica dos sentidos. No doutorado (Pacífico, 2002), continuamos nosso trabalho com a leitura e interpretação, mas aqui, investigamos como alunos do curso de Psicologia, de uma universidade particular de Ribeirão Preto (SP), trabalham com a interpretação e produção de textos argumentativos, se eles ocupam ou não as posições de autor e de leitor, se eles conseguem sustentar um dizer (argumentar).

 


Com base nestas pesquisas, podemos dizer que, em toda atividade de leitura, determinados sentidos (que podemos chamar de sentidos dominantes em um texto) são compreendidos pela maioria dos leitores; porém, o que pretendemos investigar não são os sentidos dominantes, mas sim, a interpretação dos sentidos que exige do sujeito, como dissemos acima, um posicionamento sócio-histórico-ideológico. Sabemos que todo homem está fadado a interpretar, desde cedo o sujeito atribui sentidos ao mundo, a sua relação com a família, com a sociedade que o cerca e vai construindo uma representação simbólica sobre a realidade que o envolve.

 

Embora esta interpretação linguajeira (interpretação cotidiana da linguagem, sem embasamento teórico) acompanhe o homem em todas as suas atividades, percebemos que os leitores dos principais veículos de comunicação de massa apresentam uma forte resistência e, muitas vezes, insegurança para realizar as atividades de leitura e interpretação, pois acredita-se que interpretar significa descobrir o que o texto “quer dizer” e qual é a “intenção” do autor do texto.

 

Essa concepção esbarra na questão da transparência da linguagem, isto é, as teorias da comunicação, as ciências positivistas, enfim, pressupõem uma relação direta entre pensamento e linguagem, como se um emissor enviasse uma mensagem a um receptor, mensagem esta que reflete o pensamento do emissor e deve ser decodificada pelo receptor, ou seja, tudo que é dito deve ser entendido por todos, da mesma maneira. Concepções como esta escamoteiam a heterogeneidade do sujeito, da linguagem, do contexto sócio-histórico e, principalmente, que a interpretação é um fato ideológico.

 

Dessa forma, defendemos que, para compreender os sentidos que circulam nos textos jornalísticos e nos textos, em sentido amplo, não é suficiente apenas lê-los, mas sim, interpretá-los, buscar compreender como se dá o processo de construção dos sentidos e sua inscrição histórica, o que, para nós, está ligado à ideologia. Para Pacífico (1996), a leitura acontece dentro de um processo histórico, que também é ideológico, vinculado a determinadas instituições sociais que orientarão a direção que a leitura poderá tomar, o que é possível porque os leitores, de uma forma ou de outra, também estão vinculados às instituições e já “aprenderam” como devem interpretar os sentidos, que não são “livres”, mas produzidos dentro das regras de determinadas formações ideológicas.

 

Ideologia, aqui, será entendida como um mecanismo de naturalização dos sentidos, e por ser assim, o sujeito, ao ser capturado ideologicamente, acredita que a interpretação que ele faz dos sentidos dos textos é “natural”, transparente, só poderia ser aquela. Assim, os sentidos naturalizados aparecem por meio de marcas lingüísticas, indícios e são estas marcas que pretendemos analisar neste artigo, procurando investigar como a mídia constrói seu discurso, quais são os conteúdos implícitos, como a ideologia sustenta a construção dos sentidos, não nos esquecendo, também, que todo veículo de comunicação é ideológico. Falar em sentido é falar em leitura e é através dela, como atividade de interpretação, que o homem adquire conhecimentos, uma vez que ele constrói sentidos no mundo, nos textos que o cercam.

 

Defendemos que as práticas sociais do sujeito dependem da relação que este mantém com as atividades de leitura e, à medida que o homem lê, ele passa a perceber os aspectos persuasivo, argumentativo, ideológico da linguagem, e isto lhe confere um certo “poder”, porque ele passa a produzir e interpretar discursos a partir de um lugar social ocupado por aqueles que sabem usar e controlar a linguagem.

 

Segundo Gnerre (1998), a linguagem não tem apenas a função referencial, isto é, veicular informações, mas também, e talvez, principalmente, a função de comunicar ao ouvinte a posição que o falante ocupa de fato ou acha que ocupa na sociedade em que vive.


Por tudo isso, consideramos necessário trabalhar com as atividades de leitura e interpretação, mostrando aos nossos leitores que as palavras não são neutras, mas sim, carregadas de um valor ideológico. Entendemos que há um continuum significativo que precisa ser (re) construído em cada ato de leitura, que todo texto é construído a partir de um já-dito e a compreensão disso reclama do leitor uma memória do dizer, que não é uma memória psicológica, mas sim, uma memória sócio-histórica e, portanto, discursiva.

 

Partindo dessas considerações, nosso artigo pretende instigar o senso crítico do leitor, (re)construindo os sentidos dos textos que circularam na mídia e investigando como esta manipula os sentidos criados e divulgados por ela, tanto em relação ao presidente eleito, quanto em relação ao MST.

 

2. Discussão teórica

 

A fundamentação teórica dessa pesquisa sustenta-se nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de ‘linha francesa, que tem como principal expoente, Michel Pêcheux, que, em 1969, instalou um novo paradigma para os estudos lingüísticos, que passam a ser os estudos do discurso. Para Pêcheux (1995), a Análise do Discurso está inserida num campo que compreende a articulação do materialismo histórico (pensamento marxista), enquanto teoria das formações sociais e suas transformações; a Lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação; a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos.

 

Com as contribuições da Análise do Discurso (A D), pôde-se avançar nas questões sobre o sentido e procurar compreendê-lo como uma construção com o sujeito, em determinado contexto histórico. Por contexto sócio-histórico, entendemos o contexto em sentido amplo, isto é, as relações ideológicas, as lutas de classes que perpassam a construção do discurso e fazem com que o sujeito ocupe determinadas posições para produzir seu discurso, criando, assim, os efeitos de sentido.

 

Segundo a AD, a noção de sujeito não é nem o sujeito gramatical, nem o sujeito psicológico, isto é, não concebemos o sujeito tal como faz a psicologia, ou seja, coincidente consigo mesmo (indivíduos empíricos), pois, para o analista do discurso, o que há são posições-sujeito, quer dizer, o sujeito pode ocupar várias posições (lugares sociais: patrões, funcionários, professores, alunos, juízes, etc.) e a partir delas é que vai produzir seu discurso.

 


Estas posições são determinadas por representações imaginárias, e são, portanto, inconscientes, determinadas pela estrutura socioeconômica e, também, pela ideológica, que faz parecer natural o sujeito produzir “seu” discurso daquela maneira e não de outra, “e este mecanismo leva os sujeitos, interpelados pela ideologia, a acreditarem, por exemplo, que “falar errado” é próprio das classes trabalhadoras”, e também os leva a agir como se esse efeito ideológico fosse algo inevitável. Assim, a ideologia sustenta o processo de dominação de uma classe pela outra, ou de grupos minoritários por grupos hegemônicos” (Tfouni, 2000, em comunicação pessoal). Portanto, o contexto sócio-histórico não é neutro, ou seja, não é apenas o relacionamento de emissor, receptor, mensagem, código e canal, visto que, existe uma relação social (de poder) diferente entre os enunciadores, o que direciona (pela ideologia) as possibilidades de interpretação. Dito de outra maneira, em cada discurso, as condições de produção dadas são distintas, pois o que se diz, o que se enuncia, o que se promete, tem ou não determinado sentido, dependendo do lugar ou posição social de onde foi produzido.

 


A questão do lugar social leva-nos a tratar do conceito de formação imaginária (FI) e formação discursiva (FD), uma vez que todo processo discursivo supõe sua existência.

 


Nas palavras de Pêcheux (1993: 82), “O que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro”.

 


Sabendo que o que funciona no discurso são as “formações imaginárias”, as “posições” assumidas pelos enunciadores do discurso conferem-lhes o poder de construir seus discursos apoiados em outros discursos que confirmam o “lugar” de onde cada um fala, e ocorre, também, por parte do enunciador uma antecipação das representações do enunciatário e sobre esta antecipação funda-se a estratégia discursiva.

 


Por isso, alguns discursos tendem a ser persuasivos, pois o enunciador antecipa que há um distanciamento entre seu “lugar” e o “lugar” ocupado pelo enunciatário, assim, é conveniente usar uma estratégia de convencimento; por outro lado, há casos em que os interlocutores se identificam e a estratégia usada é de cumplicidade.

 


Daí, temos o que Foucault (1971) chama de formações discursivas, que tornam possível qualquer discurso e constituem um componente das formações ideológicas, considerando que as formações discursivas só têm sentido em função das condições de produção, das instituições que as implicam, das regras constitutivas do discurso e das posições dos interlocutores numa dada formação social, num determinado momento da história, sempre marcado por lutas de classes e ideológicas.

 


O sistema lingüístico, considerado como organização de estruturas fonológicas, morfológicas e sintáticas, funciona com certa autonomia e é o mesmo para todo falante, independente da ideologia; no entanto, os discursos, embora utilizando o mesmo sistema lingüístico, não são os mesmos; os processos discursivos acontecem através da linguagem “e não enquanto expressão de um puro pensamento, de uma pura atividade cognitiva, etc., que utilizaria “acidentalmente” os sistemas lingüísticos” (Pêcheux, 1995: 91). Desse modo, o objeto de estudo, da A D, não é a língua, nem a linguagem, mas, sim, o próprio discurso, compreendido em seu funcionamento. Disso decorre que, para a AD, a relação da língua com a exterioridade é entendida como constitutiva e não como uma fortuita relação interdisciplinar, uma vez que a Análise do Discurso investiga como a ideologia intervém, através da língua, na sociedade e na história, determinando a construção dos sentidos dos discursos.

 


Visto sob esta perspectiva, o discurso é definido como “efeito de sentido entre locutores” (Pêcheux, 1969), e tais efeitos de sentido são construídos de acordo com as condições sócio-histórico-ideológicas que afetam os interlocutores do discurso. Então, a língua funciona como a materialidade do discurso; em outras palavras, a língua é o lugar material em que se realizam os efeitos de sentido. Assim, apesar de a língua funcionar como base comum de processos discursivos, os sentidos não estão prontos, mas são, antes, construídos em cada texto; então, é correto pensar que nas atividades de produção e interpretação de textos seja permitido ao sujeito investigar, produzir e interpretar os sentidos que circulam ali. Entretanto, sabemos que a interpretação é uma questão ideológica vinculada à ideologia das instituições dominantes e, sendo a escola uma instituição, a interpretação, no contexto escolar, deixa de ser “um ato de vontade própria” e continua ligada a uma classe que controla os sentidos que podem e devem ser lidos. Não podemos nos esquecer de que é, na escola, que a maioria dos sujeitos aprende a ler.

 


Partindo dessa concepção teórica, pretendemos investigar a interpretação como uma questão ideológica, vinculada à ideologia das instituições dominantes. Para nós (cf. Pacífico, 2002), leitura e interpretação não são a mesma coisa, fazem parte do mesmo processo, sim, mas a interpretação vai além, pois, de acordo com nossa filiação à Análise do Discurso, sabemos que a interpretação está ligada ao sujeito, à história e à ideologia, ou seja, a interpretação está ligada a questões que se sobrepõem à atividade de leitura.

 

Orlandi (1993) entende que, ao ler, o sujeito está participando do processo (sócio-histórico) de produção dos sentidos e isto acontece a partir de um lugar social e com uma direção determinada. É a partir deste lugar imaginário, marcado pela posição social do sujeito e pela ideologia, que se dá a compreensão dos textos lidos. Dessa forma, alguns sentidos serão lidos e outros não, pois as palavras assumem seus significados de acordo com as formações discursivas nas quais estão sendo usadas e, ao passarem para outra formação discursiva, novos significados são incorporados às mesmas palavras, pelo fato de que toda formação discursiva tem subjacente uma, ou mais, formação ideológica. Daí, a naturalidade ou opacidade dos sentidos.

 

Disso decorre que os textos sempre apresentam várias possibilidades de leitura, mas cada sujeito, de acordo com sua história de leitura (que está relacionada à sua história pessoal) compreenderá dentro de algumas possibilidades e não de outras. Concordamos com Orlandi (1996) quando diz que os conhecimentos são distribuídos socialmente, e que, portanto, não são compartilhados homogeneamente. Observamos, muitas vezes, que o leitor interpreta o texto ancorado em um sentido “garantido”, “sedimentado”, ou literal, não realizando uma leitura sócio-histórica do texto. É como se as palavras estivessem em estado de dicionário, e assim, provavelmente, o texto terá um só sentido para o leitor (aquilo que Orlandi (1993) chama de leitura parafrástica), e não várias possibilidades de interpretação que, para Orlandi (op.cit.), é a leitura polissêmica.

 

Sabendo que, todo sujeito lê, a partir de determinada posição discursiva, consideramos relevante pensar na noção de movimento do sujeito, tão importante para a AD. Podemos dizer que, na escola tradicional, o sujeito, no ato de leitura, não se movimenta, isto é, não troca de posição discursiva, não ocupa as posições de autor e de leitor; assim, ele não percebe que o sentido pode ser outro, uma vez que, neste contexto, o sujeito assume a fôrma-leitor (Pacífico, 2002) e repete um sentido (leitura parafrástica) permitido por esta instituição; logo, não realiza a interpretação (leitura polissêmica). Por outro lado, a AD procura compreender o sujeito que se movimenta com o texto, que percebe que o sentido pode ser outro, que compreende o equívoco, os deslizamentos de sentido que a língua possibilita, realizando, assim, a interpretação.

 

Diante disso, podemos pensar que a interpretação, como estamos defendendo e de acordo com a AD, exige um aparato teórico, enquanto a leitura que é praticada nas escolas, é uma questão ideológica, isto é, faz parecer que a leitura só poderia ser de uma determinada maneira, que o sentido já está lá (fixação do conteúdo), e os alunos precisam saber qual é ele; em outras palavras, há um apagamento da materialidade da linguagem e da constituição histórica do sujeito.

 

Pensando no sentido que estamos tentando construir sobre leitura e interpretação, podemos dizer que, para nós, a memória (o interdiscurso) “significa” quando a interpretação acontece. O mesmo não ocorre quando a atividade de linguagem fica só no nível da leitura parafrástica, em que, mesmo estando lá, o interdiscurso é “esquecido” (está interditado para o sujeito). Para Orlandi (2001), uma proposta para se ensinar leitura, é dar condições ao leitor de trabalhar com aquilo que ele não sabe, e isso, em nossa concepção, está relacionado à interpretação. Partindo dessa proposta de leitura, o sujeito estaria exposto a tantas possibilidades de construção de sentidos (função-leitor) (c.f. Pacífico, 2002), a pontos de vista diversos sobre um mesmo tema e isso o levaria a formular, também, seus pontos de vista sobre o que está em seu redor, permitindo-lhe fazer parte do jogo argumentativo passível de ser encontrado em toda atividade discursiva.

 

E é nessa perspectiva que pretendemos trabalhar com a leitura dos textos da mídia, ocupando a função-leitor, analisando, discursivamente, o processo de construção dos sentidos dos textos. O corpus dessa pesquisa é constituído de textos que compreendem as principais manchetes de revistas e de jornais brasileiros, impressos e eletrônicos, além de sites que abordaram, como tema principal, a trajetória política de Lula e do MST.

 

Faremos, a partir de agora, a interpretação dos textos lidos, observando o confronto dos textos produzidos nos diferentes contextos históricos; os sentidos construídos, desconstruídos e reconstruídos nessa trajetória, bem como a análise das condições de produção dos discursos.

 

 

3. Sobre a análise dos dados

 

Segundo os pressupostos teóricos da A D, o dado é considerado um indício de um determinado tipo de funcionamento que se mostra nas marcas formais (lingüístico-discursivas). Não são postuladas categorias prévias de análise, uma vez que a construção e organização dos dados dependem de mecanismos de interpretação que só podem ser aplicados após a constituição do corpus. Porém, para o analista do discurso, os sentidos não permitidos podem ser capturados através de pistas, de modo indiciário e, para investigá-las, o paradigma indiciário proposto por Ginzburg (1980) traz importantes contribuições, pois os indícios deixam de ter um caráter místico, como tinham na Antigüidade, e adquirem um caráter científico baseado em teorias. Segundo Ginzburg (1980: 177), “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la”.

 

Tfouni (1992) trabalha com o paradigma indiciário, que leva em conta os indícios que permitirão ao investigador uma análise que não seja predeterminada, uma análise que possibilite o conhecimento do “novo”, do “diferente”. Nesta obra, a autora relata a necessidade que teve para efetuar descentrações em seu trabalho com adultos não-alfabetizados e uma delas diz respeito ao fato de a autora considerar o “diferente”, aquilo que não é evidente de ser encontrado nos dados, isto é, aquilo que foge da análise tradicional que considera o diferente como “déficit”. Assim sendo, o analista do discurso estudará os indícios a partir de marcas lingüísticas, e trabalhar com estes indícios será extremamente relevante para poder compreender como estas marcas ou pistas aparecem e significam no modo de funcionamento dos textos da mídia. Além disso, o paradigma indiciário vem confirmar, como já dissemos, que a linguagem não é transparente, isto é, o sentido não está pronto, predeterminado, mas, sim, é construído, a partir de pistas, de acordo com o funcionamento discursivo. Pretendemos, então, investigar o modo como o discurso torna-se palco de conflitos entre o institucionalizado e o “diferente”, aquilo que foge do sentido dominante e, portanto, deve ser controlado, dominado, até tornar-se a repetição do sentido, legitimado pelas instituições sociais. Dessa forma, buscamos interpretar, numa perspectiva discursiva, os textos produzidos pela mídia sobre Lula e sobre o MST, procurando alargar um caminho que já existe, que é o trabalho com leitura e interpretação, tecendo mais uma vez, “os fios significativos da história”. Para isso, analisaremos, a seguir, como a mídia, através de seus textos, foi tecendo uma imagem negativa e perigosa de Lula, trabalhando, implicitamente, e por meio do jogo de significados que a língua permite àqueles que sabem usar a linguagem para construir efeitos de sentido desejados e, nesse caso, como veremos, tais efeitos pretendem distanciar o leitor do referido candidato.

  

4. Uma imagem em início de carreira: a solidão da estrada “Lula sozinho na estrada”

 

A manchete acima é confirmada pelo recurso não-verbal, inscrevendo o efeito de solidão (“sozinho”), pois, na imagem de capa da revista, a estrada é isolada, sem-fim, sugerindo que o candidato não conta com o apoio de ninguém em sua campanha. Aliás, não é usada a palavra campanha, mas sim, “estrada”, ou seja, qualquer um pode estar na estrada, mas não é qualquer um que pode estar em campanha presidencial. Importante observar, também, que a estrada assemelha-se à rampa do Planalto e, nesse sentido, Lula está descendo e, não, subindo, indiciando que o candidato não subirá a rampa do Planalto, pois não ganhará a eleição.

 

No interior da revista, nessa mesma reportagem, Lula é chamado de sem-terra, sem-sapato, associação explícita do candidato ao movimento sem-terra, ou melhor, a todo movimento de exclusão, o que possibilita a leitura de que o candidato é sem-cultura, sem-educação, sem-preparo para o poder e isso justifica o fato de ele estar na descida e, não, em ascensão ao poder, uma vez que este pode ser ocupado por aqueles que possuem tudo aquilo que é negado ao candidato e vem marcado, lingüisticamente, pelo uso da preposição “sem”. Disso decorre a solidão, pois ninguém acompanharia um candidato sem requisitos para assumir a presidência da República. Isso sugere, ao leitor, que também não acompanhe um candidato que está sozinho.

 

“O jogo suspeito dos amigos de Lula” [i] , o signo lingüístico “jogo”, aqui, cria o efeito de sentido de trama, pois vem ligado ao adjetivo “suspeito” que, como sabemos, tem sentido de falcatrua, armação desonesta, tráfico de influência e poder. O uso da partícula “dos” indicando, lingüisticamente, uma relação de posse entre Lula e seus amigos, indicia que, se Lula tem amigos que criam “o jogo suspeito”, o sentido de suspeito pode estender-se a Lula, ficando implícito que ele também pode ser suspeito, que também é conivente com negociatas, com jogadas desonestas. Essa ligação entre jogada desonesta e política foi construída historicamente em relação aos sentidos negativos que circulam sobre a política e seus atores e, aqui, está se condensando na figura pessoal de Lula.

 

         No interior dessa reportagem temos: “A casa onde Lula mora de graça.”  Morar de graça tem uma conotação de aproveitamento, privilégio, aquele que não trabalha, favoritismo e tais sentidos não são valorizados historicamente; por isso, é um sentido estranho para um candidato à presidência da República, principalmente para um líder popular que se intitula trabalhador o que cria um paradoxo em relação à historicidade do sentido construído sobre trabalhador, ou seja, de que todo trabalhador assume seus pagamentos de moradia, impostos, etc.

 

Ainda nessa reportagem encontramos: “O visual retocado. A imagem de Lula está cada vez menos metalúrgica. Desde o final da campanha em 1989, quando esteve bem próximo da Presidência da República, Lula tem tratado de desbastar a cabeleira e a barba, para ficar com uma aparência menos agressiva”. O uso de “menos” deixa implícito que a figura de Lula ainda é agressiva e a mudança é só na “aparência”, a essência continua agressiva. Sendo agressiva assusta, causa medo; portanto, o leitor deve afastar-se de tal candidato.

 

Além disso, a “cabeleira e a barba” representam ícones visuais que remetem a interdiscursos que sustentam a construção de sentidos ligados a comunistas, socialistas, intelectuais e militantes da esquerda, sentidos esses que até, então, deviam ser mantidos à margem da sociedade brasileira, pois representavam a iminência do perigo. “Lula entra no jogo. Mas será que ele tem chance de ganhar a eleição?” [ii] , nessa manchete, temos, novamente, o uso do signo lingüístico jogo, mas aqui, este signo está ligado à copa do mundo; porém, não podemos esquecer-nos da polissemia aí presente e, como vimos na análise anterior, permite a possibilidade do sentido de armação.

 

A capa que traz essa manchete mostra Lula de terno e gravata, com a bola no pé, o que sugere uma mudança no visual do candidato, agora, mais requintado do que na campanha anterior, indiciando que, nesse momento, há uma identificação maior do candidato com o poder. No entanto, o mesmo sentido de solidão é criado nessa capa, em que Lula está sozinho em um campo de futebol, imagem raramente observada neste lugar, principalmente numa situação de jogo. Lula está só, sem técnico, sem treinador, sem uma equipe, elementos fundamentais para a participação em um jogo de futebol e, por um deslizamento de sentido, podemos interpretar que faltam tais elementos para o candidato em campanha, isto é, falta quem o apóie.

 

Estes sentidos vão sugerindo ao leitor que Lula não tem muita chance de ganhar a eleição, o que é confirmado pelo uso do conectivo interfrástico “mas” que, neste caso, possibilita a oposição à interpretação argumentativa que é construída entre “jogo” e “ganhar a eleição”, criando um efeito de sentido oposto ao daquele que circula no dito popular; em outras palavras, “entrou no jogo é para ganhar”. Ainda nessa reportagem, lemos “Cabeça a cabeça, em que Lula aparece do lado esquerdo da página (p.43) e Fernando Henrique Cardoso aparece do lado direito, confirmando para o leitor, por meio do texto visual, de que lado está, em relação ao governo, cada candidato.

 

E, assim, Lula não subiu a rampa do Planalto, mais uma vez.


5. O operário em outra posição: de bandido a herói

 

Percorrendo, novamente, “os fios significativos da história”, alcançamos Lula na campanha à presidência da República, em 2002. Interessante observar como, nessa nova candidatura, os sentidos sobre Lula são construídos numa direção oposta àquela que tinha como âncora dominante, o medo, o perigo, a ameaça ao poder e ao povo brasileiro. Lula, agora é visto como “o salvador da Pátria”. Em 2002, o slogan da campanha foi “Agora é Lula”, deixando implícito que antes não era, mas que no momento presente chegou a hora e a vez de Lula.

 

Outro ponto importante a ser investigado, diz respeito ao modo como a mídia explicou o uso que Lula faz da língua portuguesa, seus discursos, suas expressões. Aqui, também, houve uma inversão de sentidos, pois o que antes, nas campanhas anteriores era motivo de zombaria, agora ganha algumas explicações e justificativas. De acordo com Gnerre (1998), “uma variedade lingüística “vale” o que “valem”na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais”. Diante dessa citação, buscamos compreender a mudança de posição discursiva da mídia, pois antes da campanha de 2002, todo uso lingüístico de Lula era desqualificado pelo fato de Lula não dominar a chamada variante culta ou padrão; logo, de acordo com Gnerre ( op.cit.), o “valor” desse candidato não lhe permitia ocupar o lugar de um presidente, visto que, segundo a mídia, o candidato “falava errado”.

 

Contudo, em 2002, a mídia começou a veicular opiniões de autoridades econômicas do país (empresários, banqueiros, etc.) que defendiam não ser condição necessária para um presidente da República ter um curso superior, ou falar corretamente. A partir daí, a mídia deixou de enfatizar os então chamados “erros” de português de Lula e passou a construir um novo discurso sobre este candidato, ou seja, o que importa para um líder é saber governar e não falar corretamente.

 

Sabemos que a mídia é um veículo ligado à ideologia das classes dominantes. Por isso, em determinado contexto sócio-histórico, alguns sentidos são construídos, ideologicamente, e legitimados, permitidos pela classe dominante, enquanto outros são apagados, silenciados.

 

Passaremos, a seguir, à análise de alguns recortes que circularam, na mídia, nessa última campanha à Presidência do Brasil, em que Lula disputou com José Serra, ex-ministro da Saúde do então governo Fernando Henrique Cardoso.

 

A primeira manchete, “O operário Presidente foi retirada do site www.estadao.com.br/ext/elecoes2002 em que o colunista Ariosto Teixeira faz uma análise do cenário nacional. O primeiro destaque é dado para o lugar de presidente, pois a letra maiúscula funciona de modo a dilatar a importância do cargo. Destaque é dado à conjugação dos dois papéis de operário e presidente do país, papéis que não costumam andar emparelhados. O título causa vários efeitos de sentido, dentre os quais anotamos, em primeiro lugar, o foco à trajetória brilhante do líder operário que saiu da fábrica e chegou ao Planalto: “ o líder operário que saiu do subúrbio industrial do ABC paulista no final dos anos 70 para fundar o Partido dos Trabalhadores (PT), deve vencer, neste domingo, o segundo turno da eleição presidencial. O ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva sobre ao primeiro plano da cena política cercado de esperanças populares, e expectativas dos agentes econômicos, de que seja capaz, como promete, de fazer um bom governo e lançar o Brasil em um período inédito de crescimento econômico e bem-estar social”. O presidente é falado como trabalhador, cuja candidatura é apoiada pela esfera popular, homem que soube escalar a dura pirâmide social, deslocando-se de uma classe tradicionalmente fora do circuito do primeiro escalão e chegando ao topo do poder executivo do país. Esse brilhante trajeto se soma a características pessoais estranhas ao cargo que sempre foi ocupado pelos filhos da elite brasileira. Lula tem baixo grau de letramento, é nordestino de origem pobre, sempre trabalhou em setores braçais e começou a sua luta política subindo em carros de som improvisados em portas de fábrica do ABC.

 


Agora, todos esses sentidos circulam de modo a valorizar o operário que superou adversidades econômicas e obstáculos políticos e porta-se como um vencedor. A subida na vida e a ascensão ao poder mostram um deslocamento inverso àquele que pautou o Lula sozinho na estrada em posição de descida, andando na contramão do poder instituído. O sindicalista é apagado em, em seu lugar, aparece um novo herói dos anseios populares, ícone da esperança de resolução do caos social que se instala progressivamente no país: é preciso dizer que os anos de FHC não representaram investimentos maciços nas áreas de saúde, educação, reforma agrária, geração de emprego e moradia. O ex-metalúrgico sobe não como representante dos sindicalistas, mas como unanimidade nacional e como líder de todos os brasileiros. Colocado no lugar de representante de todos, Lula deixa parte de sua raiz de sindicalista esmorecer e passa a ser falado (e a falar) como Presidente com letra maiúscula.

 


O jogo de posições de poder, tão opaco aos olhos de uma interpretação linguajeira, merece destaque: quando sindicalista Lula assumia uma posição de confronto com o poder, certo litígio com os detentores do capital e das instâncias executivas, posto que naquele lugar, ele reivindicava justiça social, cumprimento de direitos trabalhistas, melhores acordos entre o sindicato e as empresas automobilísticas etc. Quando candidato sozinho na estrada, sua posição também era pautada pelos mesmos sentidos, agora em esfera nacional, o clamor girava em torno da reforma agrária, da distribuição de renda, da criação de empregos, da moratória da dívida externa etc. A base política do sindicato, da organização popular e da dissonância com o poder esculpiam uma imagem de rebeldia tão ácido, cujo perigo maior era a revolução socialista, e por isso Lula perdeu três campanhas.

 


Enquanto “operário Presidente”, Lula aproxima-se da sociedade “como um todo”: banqueiros, latifundiários, representantes do Fundo Monetário Internacional (FMI), caciques das oligarquias políticas corruptas etc. Passa a ser o líder brilhante que preserva a ordem nacional; que evita confrontos com o poder econômico das grandes corporações; que representa a estabilidade e a governabilidade; que promove políticas de bem-estar social; enfim, sua representação é pautada por um mundo semanticamente organizado, onde o perigo inexiste. O funcionamento ideológico faz os sentidos se encaminharem para essa direção como se ela fosse a mais correta, clara e adequada á realidade. A mídia que o diga, pois grande parte das imagens e discursos aqui interpretados tiveram a mídia como suporte amplificador.

 


“O Brasil votou em Lula, não no PT” é
outra manchete do site do Estadão, que expressa o confronto entre o Lula no lugar de presidente em contraste com Lula na posição  de líder do PT. A sigla do Partido dos Trabalhadores evoca a composição da história do militante e, por isso, recebe um “não”. A imagem de Lula e os discursos sobre ele são o produto midiático, capaz de afastar o radicalismo e a fúria reivindicatória de outrora: constituem-se, assim, novos sentidos para novas alianças, antes inconciliáveis para o partido. Vemos que o que está em jogo são formações imaginárias, construídas historicamente pelos sentidos permitidos e/ou proibidos por relações de poder e que o lugar de presidente é politicamente marcado por esse imaginário.

 

“Serra tenta reforçar associação entre Lula e MST” [iii] , interpretar esse enunciado reclama do leitor uma memória-do-dizer, o acesso ao interdiscurso que circula sobre o MST, o que será discutido na próxima seção. Associando Lula ao MST, Serra retorna ao sentido do perigo, ameaça, balbúrdia, sentidos sempre ligados ao movimento e, anteriormente, ao candidato. Associação, aqui, também, cria o efeito de sentido de sociedade, rede de influências, ligação organizacional que une o candidato ao movimento pelas idéias de rebeldia que um dia foram defendidas pelo sindicalista “sozinho na estrada”. Esse sentido já existia e é forte, causa medo, pavor, por isso Serra tenta reforçá-lo, ou seja, ele tenta ancorar seu discurso numa região de sentido que, momentaneamente (devido à empolgação dos eleitores com o “novo” Lula), estava silenciada pelo lugar de candidato ocupado por Lula, que é um outro Lula, diferente das campanhas anteriores, posto que alianças de ordem econômica, antes rejeitadas, foram estabelecidas e, em conseqüência disso, a figura de Lula deixou de ser tão assustadora, o que preocupa Serra, visto que este produz seu discurso a partir do lugar de adversário que se sente ameaçado por Lula, em outras palavras, um candidato do governo, intelectual, perdendo espaço para um operário.

 

Diante disso, Serra usa essa estratégia, pois ao retomar a ligação que Lula tinha com o MST, os sentidos perigosos retornam para os leitores que acessam a memória discursiva e, conseqüentemente, lêem o já-lá. Nesse mesmo texto, Serra diz que: “O PT usa diferentes discursos para diferentes situações. Tem o PT da televisão, o de quando está no governo e o do MST”. Com essa afirmação, podemos inferir que Serra quis apresentar o PT (e Lula) como um tríplice perigo, trabalhando com os sentidos que antes afastavam o eleitor deste partido e deste candidato. Ao afirmar que o PT tem um discurso para a televisão, Serra indicia que a mídia é um objeto de manipulação; logo, quando o PT fala à televisão, usa um discurso camuflado, dissimulado, tentando “esconder” seu lado obscuro que tanto assustava o eleitorado. Na televisão, o PT mostra-se diferente, não-radical, não-assustador.

 

Em outra situação, interpretando a afirmação de Serra, o discurso do PT enquanto governo, mostra-se seguro na busca pelo poder, apoiado nos governos petistas que deram certo, deseja chegar ao poder para “mudar” o país. Aqui, também, não encontramos um PT assustador. No entanto, Serra diz que há o discurso do PT para o MST e, nesse caso, estão circulando, pelo interdiscurso, os sentidos da baderna, revolução, radicalismo, perigo, que o discurso do PT para a televisão tenta abafar. Nesse caso, mais uma vez, Serra apostou na memória discursiva do país no que se refere aos sentidos cristalizados sobre o PT, isto é, greves, violência, necessidade de intervenção policial para conter os grevistas raivosos, pouca flexibilidade nas negociações, luta por aumentos salariais, insatisfação com o não-cumprimento de medidas trabalhistas, fortalecimento dos sindicatos como categorias capazes de enfrentar os patrões, etc. Todos esses sentidos assustavam os eleitores pelo perigo da revolução e os distanciavam de Lula, nas campanhas anteriores.

 

Observamos que o enunciado produzido por Serra encerra uma trama discursiva, sustentada pela historicidade das palavras usadas, trama esta que não pode ser interpretada pelos leitores que não têm acesso ao interdiscurso, visto que os sentidos não são transparentes, como defende a Análise do Discurso, mas sim, construídos sócio-historicamente. Podemos constatar, pela interpretação desse texto, que há um diálogo intertextual em relação ao analisado acima, considerando que, de acordo com os sentidos implícitos no enunciado de Serra, não existe mérito no fato de um operário chegar à presidência da República, mas sim, há um perigo. Importante lembrar que Serra fala de um lugar que interdita a possibilidade de um operário chegar ao poder e exercer a presidência da República. Dessa forma, o desmerecimento é pessoal, de organização política, de filiação ideológica e de trajetória, agora em dose tripla.

 

A análise desse enunciado marca, explicitamente, a posição antagônica ocupada por aqueles que estão no poder e aqueles que estão do lado de fora, o que pode ser “lido” pela luta entre os sentidos legitimados pela classe dominante e os sentidos que devem permanecer silenciados, como, por exemplo, a análise do texto anterior mostrou, ou seja, a vitória de um operário chegar à presidência de um país.

 

E, assim, os leitores lêem, ou são lidos, sem perceber, muitas vezes, que não há “naturalidade” nas palavras, nos textos, nos sentidos, mas sim, há uma relação desigual de poder que perpassa todo uso de linguagem e, poucos, conseguem participar da tessitura textual, construída, às vezes, por um “anjo torto”, que determina a leitura que pode e deve ser feita.

 

6. No lugar de presidente com o boné do MST

 

Ao pontuar que “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência”, Bakhtin nos apresenta o mote para analisar os desdobramentos do encontro dos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) com o presidente Lula, fato ocorrido em 2 de julho de 2003. Na ocasião, Lula recebeu de presente uma cesta com produtos da reforma agrária, uma bola produzida nos assentamentos e um boné, que usou por alguns instantes. Foi o suficiente para que o sinal de alarme do terrorismo midiático soasse alto: a notícia sobre o encontro e sobretudo a imagem do boné na cabeça presidencial correram como rastro de pólvora pelas redações dos principais órgãos de imprensa, pelos sites novidadeiros de fofocas, pelos bastidores do Congresso Nacional e pelas conversas informais na rua. Estava dada a cena enunciativa para que o fato boné aparecesse como avalanche de perigo, desrespeito às leis do país, ameaça à democracia e à paz social e afronta ao Estado de direito.

 

Tais sentidos, determinados por condições de produção bastante especiais, (o MST não visitava o Planalto desde 18 de abril de 1997), precisam ser pontuados, afinal o pavor ao Movimento deriva de uma construção histórica dominante, que sempre prezou em colocar os camponeses e lavradores politicamente organizados no lugar de malfeitores, bandidos e ladrões, que invadem propriedades privadas, agridem a Constituição federal e criam instabilidade e caos no campo. Narrados dessa forma, os sem-terra ocupam no imaginário nacional, o sítio simbólico dado pela ruptura da democracia e do Estado civilizado e representam o lugar da barbárie, da ausência das leis e da desordem social. A mídia, pelas ligações umbilicais que mantém com a classe dominante, em geral, tem se comportado como o grande e principal amplificador dos sentidos apresentados acima. Nesse artigo, pretendemos interpretar alguns recortes de reportagens, manchetes e artigos, veiculados em jornais, revistas, listas de discussão e sites eletrônicos, que contam o encontro Lula/ MST, ou seja, o mesmo acontecimento é observado de diferentes posições, indicando que as palavras são afetadas pelo lugar social que o sujeito ocupa em uma conjuntura historicamente datada.

 

Tendo pontuado o que está naturalizado sobre o MST (incluindo o seu ícone mais divulgado, o boné vermelho), iniciamos a interpretação do nosso primeiro recorte. O nosso ponto de partida é o artigo de Jorge Bornhauseu, publicado no jornal Folha de S.Paulo em 03/07/2003, cujo título O boné da insensatezsitua a loucura como um atributo daqueles que usam o boné (leia-se aqui integrantes do MST). Assim, o presidente é falado como demente, sem razão, nada lúcido, privado de juízo e de bom senso. Logo no início, o texto estabelece a seguinte comparação: “Antes que se completassem 24 horas, o mesmo boné que aparecia na cabeça de um homem preso na zona da mata de Pernambuco por saquear um caminhão de cargas apareceu na cabeça do presidente da República (...) o presidente da República e o MST assumem a causa comum, ou seja, estão embarcados na mesma nau insensata que inquieta a nação”. Sob a forma da repetição, amarra-se um ponto no bordado ideológico, que faz o sujeito colocar o MST como ilegal e criminoso e seus integrantes e/ou usuários do boné merecedores de prisão. Aos poucos, esse sentido é deslocado ao presidente, que, para esse sujeito, na condição de primeiro mandatário jamais poderia ter colocado o símbolo de uma quadrilha na cabeça.

 

Sabemos que o discurso dominante é produto da historicidade, que construiu e ainda constrói a criminalização da luta camponesa e indica apenas que a luta de classes não mudou: as capitanias hereditárias de ontem continuam a existir sob a forma de latifúndios e os senhores de outrora tiveram sua designação alterada, mas em nada mudaram o seu poder concentrado no/pelo latifúndio e as estratégias de defesa de seus privilégios.

 

Observamos que o interdiscurso, ou seja, a memória discursiva sobre a luta dos camponeses e a sua criminalização constituem peças/chaves interpretativas para a investigação de alguns efeitos de sentidos apresentados hoje. Diz o autor:

 

O presidente da República, no mínimo, contemporizou com os saques e desordens assumidamente realizados pelo MST, por pessoas usando o boné comum (...) Ora, todo mundo está cansado de saber que o MST não tem nada a ver com os sem-terra e a reforma agrária. Todos sabemos  que o MST é um movimento político revolucionário que apenas usa a grave questão campesina para efeito de propaganda e, principalmente, de financiamento, pois recolhe uma porcentagem considerável de todo o dinheiro que o governo repassa aos assentados; que o MST tornou-se massa de manobra de aluguel, usada por grupos que precisam de equipes táticas treinadas em sabotagens, como se viu na semana passada no Paraná; que o MST ameaça provocar uma nova guerra de Canudos (a loucura crudelíssima que há um século explodiu no sertão da Bahia) no Pontal do Paranapanema, em São Paulo; que o MST tende a se ampliar agregando o que, na linguagem da própria esquerda radical, chamam de lúmpen urbano, com toda a carga de risco que tal mobilização representa para o país sem meios, como está sentindo o próprio governo do PT, para implementar programas sociais compensatórios pela desigualdade de renda ”.

 

Só mesmo fazendo uma escavação arqueológica dos sentidos aqui construídos a partir do já-dito é que chegamos à identificação de alguns genéricos “Todo mundo está cansado” “Todos sabemos” e, assim, com frases disponibilizadas como verdades absolutas e com força de lei, o autor apresenta a sentença que se pretende jurídica: “MST tornou-se até massa de manobra de aluguel” e “MST ameaça provocar nova guerra de Canudos”. Retornam aqui todos os sentidos de baderna, desordem, ilegalidade, loucura e crime, que ora já definimos.

 

Alinhada à mesma retórica, a manchete ‘“Lula coloca boné de movimento sem-lei”, diz líder do PFL’ aparece no jornal eletrônico Terra (TV.terra.com.br/jornaldoterra), do dia 02/ julho de 2003. Chama-nos atenção a seqüência “boné de movimento sem-lei”, cuja marca da preposição “de”, sem a presença do artigo, indica que o “movimento” é de qualquer um, não existindo elemento restrito e definitivizador. É como se o sujeito desse discurso falasse de conceitos abstratos e não sujeitos que fazem leis e as respeitam (ou não). A lei aqui é narrada como patrimônio de uma única classe, no caso, aquela detentora da terra. É, portanto, posse de quem tem posses. O lugar destinado ao MST é dado pela ausência de leis: como se o Movimento e os sem-terra não tivessem regras e estatutos internos; como se a organização política desse movimento popular não existisse e como todos os sem-terras (e usuários do boné) não se submetessem à Constituição Federal, vivendo como fora-da-lei.

 

Tal síntese não se fixa apenas na manchete, no interior da notícia o deputado federal José Carlos Aleluia (BA), líder do PFL na Câmara, ocupa o lugar daquele que condena brutalmente o fato do presidente Lula usar o boné do MST, apenas por alguns instantes, voltamos a ressaltar. Vocifera ele: “O encontro em si poderia ter sido para buscar a paz, mas o presidente, ao colocar na cabeça um símbolo do MST, resolveu se afastar de todo o resto da sociedade brasileira e incorporar o sentimento do MST”. Há aqui um efeito de distanciamento entre a sociedade em geral e o  MST; entre o presidente com e sem boné; entre o boné do MST e “o boné de movimento sem-lei”. Há uma tentativa de atribuir a Lula os sentidos veiculados e despertados pelo boné, deixando-o em situação de oposição à sociedade brasileira. A expressão “o boné do MST” marca uma delimitação de posse, afinal o dono do boné é o MST e a ele cabem todas as responsabilidades da causa política que os sem-terras sustentam. Desta forma, a implicação do ônus e da ilegalidade tem como destinatário o movimento popular. No caso em questão, ao enunciar “o boné de movimento sem-lei”, o sujeito cria uma proximidade entre Lula e o MST. Ambos são emparelhados na mesma condição e, entre os dois nomes, circula o sangue quente da desordem, da ilegalidade e do perigo em uma transfusão irreversível.

  

“Lula extrapoloué um artigo de Antônio Canuto, que recebemos por e-mail da Via Campesina, organização que agrega as lutas camponesas em diversos paises e que constitui um circuito de dados e uma rede eficaz de informação, que geralmente não circula nos órgãos da grande mídia. Em tom de ácida ironia, o autor recorre a sentidos naturalizados sobre o papel do presidente e a sua representação no país. Identificamos aqui que esse lugar no país é historicamente marcado por uma classe detentora de privilégios, representada por um pólo de poder, que está distante dos trabalhadores, sem-terra e excluídos.

 


Perguntamos: a quem serve o presidente? O que se espera que um homem nesse lugar coloque na cabeça, ou seja, quais ícones podem tatuar o corpo de um estadista no trono do poder? Para quem o presidente deve governar? É preciso recorrer ao interdiscurso para constatar que, na posição de presidente, é aceito o uso de botton, boné, lenço, chapéu e camiseta de sociedades ruralistas, de criadores de nelore, de uniões de proprietários de terras e de siglas de latifundiários. Nenhuma delas deflagra susto, medo ou pavor. Ao contrário, no âmbito do poder, elas circulam como pratas da casa, adereços do cenário político e peças necessárias à produção do país. Estranho e pavoroso é ostentar emblemas da plebe; expor ícones da senzala e deixar à mostra vestígios dos que se encontram na zona perigosa da pobreza e da indignação.

 

Nesse sentido, ao colocar o boné do MST, o presidente atuou como o tenor que desafina durante a ópera. Comportou-se como aquele que quebra os protocolos do lugar que ocupa e que destoa do circuito de ações que o poder permite. Daí, “extrapolou”, foi além do pólo constituído como permitido para a sua condição e ultrapassou a fronteira suportável da transgressão. Excedeu-se no limite do proibido e conjugou sua imagem à  falta de bom-senso. Por não atuar dentro das convenções e sentidos que o seu papel impunha, o presidente virou notícia bombástica, pois no discurso da democracia, facilmente entendido como engodo, reza a ladainha de que o presidente, eleito por todos, deve governar para alguns, para os poucos detentores  da terra e do capital. O boné do MST na cabeça presidencial é a metáfora invertida de todo esse processo, pois representa a evocação do movimento popular na esfera do poder constituído. Usá-lo é a síntese da insanidade e do perigo, porque fere aquilo que se entende pertinente e adequado para o cargo de presidente eleito e coloca em evidência aqueles sentidos de reivindicação, que sempre foram solapados pelo discurso dominante.

 


Marcamos que, em diversas outras ocasiões, Lula usou o boné do MST ao longo de sua trajetória sindical, militante e de candidato, mas foi a primeira vez que o fez do lugar de presidente. Voltarei a usar o boné do MST, diz Lula” é o recorte que escolhemos no endereço www.folha.uol.com.br, data de 12/07/2003, em que o presidente se pronuncia a respeito do caso: “Já devo ter tirado mais de 200 fotos com o chapéu do MST na cabeça: vou continuar pondo”. Ao se referir ao passado, o sujeito, no lugar de sindicalista, líder operário e simpatizante da reforma agrária, ganha voz, identificando o momento e as condições anteriores à eleição. Vale destacar que naquele momento
em que Lula angariava apoios políticos; transitava com feroz arsenal de crítica a ruralistas e postava-se como candidato capaz de fazer a reforma agrária no país. “Já devo ter tirado” materializa lingüisticamente tal trajeto político, cuja essência lutadora marcou os anos de chumbo, as greves do ABC paulista e as primeiras candidaturas de Lula: existe aqui o efeito de sentido de resistência com a marcação da quantidade bastante dilatada de vezes em que ele se apresentou ao lado da sigla MST, afinal foram “mais de 200 fotos”!

 


A insistência do gesto de usar o boné do Movimento e a permanência dos sentidos que ele esboça (a saber, a reforma agrária, condenação do latifundiário, simpatia à luta popular) retornam na forma de um futuro impreciso e indeterminado, silenciado momentaneamente pelo lugar que o sujeito ocupa. Há uma interdição no presente, que faz a frase “Voltarei a usar o boné do MST” significar um passo a ser dado não se sabe quando. O futuro verbal direciona os sentidos de boné e derivados para outra temporalidade, pois no presente não é estratégico para o sujeito-presidente se indispor com ruralistas nem com o setor do agronegócio. Esse jogo de posições, embora silenciado, significa e tece uma urdidura de sentidos sobre o estigma que existe em se filiar aos círculos populares, longe dos salões da corte palaciana. Melhor dizendo, a seqüência “voltarei a usar o boné” nem desagradar o MST nem os latifundiários: o controle dos sentidos e as zonas de interdição e legitimação do sujeito-presidente demarcam mais do que performances pessoais, delineiam representações discursiva e ideologicamente determinadas.

 


Representações de poder e resistência tão marcadas que, quando levadas à exaustiva divulgação midiática, correm o risco de fazer cabeças rolarem. O Portal do Diário Vermelho (site www.vermelho.org.br/diário) apresenta um texto de opinião da autoria de Bernardo Joffily, cujo título é: “O boné do MST e a cabeça presidencial”. Observamos que “cabeça” evoca vários efeitos de sentido: o primeiro, sentido literal do órgão do corpo em que o boné foi depositado. Outro, que exige um gesto de interpretação, ou seja, “cabeça” indicia o conjunto de idéias que compõe o projeto político do presidente. O cabeça do país, autoridade máxima legitimada por eleições diretas e merecedora da confiança do eleitorado, perdeu a cabeça quando usou o boné, e aqui “cabeça” engendra os sentidos de lucidez, razão, bom senso como já discutimos anteriormente. A suposta perda da credibilidade, transferida ao presidente, está marcada no texto citado acima: “O presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), fazendeiro Antonio Ernesto de Salvo, opinou que a imagem da Presidência ‘ ficou maculada’ quando Lula pôs na cabeça o boné. O artigo do banqueiro/ senador Bornhausen [já interpretado anteriormente], presidente do PFL, concluiu que ‘ o presidente da República e o MST assumem a causa comum, ou seja, estão embarcados na mesma nau insensata que inquieta a nação’. Qualificou o gesto de ‘insensatez’, ‘temeridade’, (‘nenhuma pode ser considerada mais grave’, ‘síndrome de Estolcomo’. O deputado Antonio Caiado (PFL/GO), ex-presidente da UDR e membro da bancada ruralista, achou que ‘esse gesto leva toda a população a entrar em estado de total perplexidade’. Para o líder do PSDB na Câmara, deputado Jutahy Magalhães Júnior (BA), Lula ‘quebrou o protcolo e não combate as invasões de terra. Já o líder tucano no Senado, Arthur Virgilio (AM), sempre mais estridente desde os tempos de Fernando Henrique, viu no gesto ‘ uma sinistra e perigosa escalada que o governo tolera de maneira licenciosa, por vezes indecorosa, da agressividade do MST’ ”.

 


Pelo que se vê, a grande mídia divulga os sentidos que constroem uma imagem negativa do MST e do gesto do presidente; controla a polissemia na tentativa de manipular o gesto de leitura do internauta e direciona a representação lingüística, visual e simbólica para uma região naturalizada como a única possível de ser dita e narrar o fato. O que nos chama atenção é que na rede eletrônica, em geral, há um apagamento das condições históricas de produção dos dizeres; silenciadas elas aparecem como se os fatos não tivessem ancorados em uma sociedade, no nosso caso desigual no quesito distribuição de renda e de terra. O virtual tampona a realidade de modo a expor apenas fragmentos de sentidos.

 


A emblemática foto Lula com boné do MST, reproduzida abaixo, apareceu estampada em quase todos os jornais e revistas impressos e/ou eletrônicos, isso sem falar da divulgação dela na obesa programação televisiva. A imagem do presidente de terno e gravata, vestido formalmente e ocupando uma sala no Palácio da Alvorada se contrapõe ao boné vermelho, tão usado nos barracos de lona preta, onde famílias inteiras insistem em sobreviver como refugiados dentro de seu próprio país. Está montada a radiografia da desigualdade: o confronto entre posições de classe, que tem como metáfora o corpo de Lula. Na cúpula política, incorpora-se um símbolo da base. O boné tatua a marca dos silenciados; dos que tiveram sua vez negada; daqueles que não são ouvidos fora do período eleitoral e cuja dor sempre pode e deve ser adiada. Pensamos que, dialeticamente, o boné inclui na cabeça presidencial os que são excluídos- seu fiel e histórico eleitorado- na mesma proporção em que promove a expulsão de Lula do lugar da credibilidade e confiabilidade por parte dos representantes da classe dominante. Para sintetizar, a fotografia condensa o jogo de poder derivado da luta de classes, e só a referência a este termo cunhado pela teoria marxista já provoca celeuma nacional.

 


Os artigos e notícias aqui interpretados nos apontam a direção de que as condições históricas de produção do dizer determinam o jogo tenso entre o poder instituído e legitimado e aquele que resiste de maneira marginal. Também indicam que a mídia enuncia de uma posição política, que nunca é neutra dentro do contexto de disputa e confronto de poderes. Configurada como o grande megafone da classe dominante, ela tende a ser hostil aos movimentos populares em geral, como o foi quando Lula era apenas um solitário líder sindical na estrada. Também tende a sentenciar julgamentos preconceituosos e sensacionalistas nas suas páginas, em cujo funcionamento discurso os significantes retornam sob a forma do mesmo; repetem o já-dito; silenciam a desigualdade social e deslizam para outras formas de condenação da luta camponesa e do MST. Em suma, a narrativa do boné e todos os seus desdobramentos retratam quão naturalizado pela ideologia é o estigma atribuído ao Movimento; quão retrógrada politicamente é a elite agrária do país e como a posição presidente é restritiva no tocante a atitudes “revolucionárias”, ainda que colocar o boné não tenha nenhuma relação com a realização da reforma agrária (é preciso ressaltar que, no primeiro ano de governo, Lula assentou apenas 30% do que era sua meta para o referido período).

 


Assim, chegamos ao nosso último recorte, um artigo de Marcelo Barros que correu mails e listas de discussão de esquerda, cujo título é : “O perigoso boné do presidente”. Com data de 24/07/2003, o autor expõe sentidos que dialogam com o que temos discutido até aqui. Sintetiza ele, entre irônico e inconformado, que: “Os meios de comunicação de massa (cujos proprietários, evidentemente, não defendem seus próprios interesses e agem apenas pelo bem comum) se encarregarão de mostrar que o culpado das atuais desordens sociais que correm no Brasil é o MST e não o crescente desemprego urbano e acelerada ocupação capitalista do campo”.

 


O perigoso e ameaçador boné deixa de ser narrado como símbolo do MST e tem a sua posse atribuída ao presidente. Um efeito dominó faz circular em cadeia os sentidos de gravidade, alarme e risco emprestados do movimento popular: primeiro em relação ao presidente, depois à governabilidade política e econômica, e, por fim, a todo o país. Temos aqui uma coreografia discursiva que sem querer acertou na cabeça.
 



NOTAS

 

[i] Revista VEJA, 31 de agosto 1994. Editora Abril. Ed. 1355. Ano 27, nº 35.

[ii] Revista VEJA, 10 de junho 1998. Editora Abril. Ed. 1550. Ano 31, nº 23.

[iii] http://www.lainsignia.org/2002/octubre/ibe-110.htm (16-10-2002)

 

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RESUMO: Este artigo analisa como os meios de comunicação constroem sentidos que se tornam dominantes em determinado contexto sócio-histórico. Fundamentadas pelos/nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa, analisamos textos veiculados por meios impressos e eletrônicos sobre Lula, nas campanhas para presidência da República do Brasil de 1994, 1998 e 2002 e, também, sobre o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra).

 

ABSTRACT: This article analyses how the media makes senses which become dominating in a particular social historical context. Established in the theorical basis of the Discourse Analysis of the french line, we have analysed published texts from the printed media and internet about Lula during his running presidential campaign in 1994, 1998 and 2002 as well as the MST (Movement of the Landless Peasants).

 

PALAVRAS-CHAVE: Interpretação, Lula, MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), memória discursiva, ideologia.

 

KEYWORDS: interpretation, Lula, MST (Movement of the Landless Peasants), discoursive memory, ideology.

 

* Soraya Maria Romano Pacífico. Professora Doutora da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

** Lucília Maria de Souza Leão. Professora Doutora da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

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