CARTA AOS GUERREIROS DESTE MUNDO

 

Fábio M. Candotti*

 

Vamo acordá! Vamo acordá! Agora vem com a sua cara, sou mais você nessa guerra! A preguiça é inimiga da vitória, o fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar. Não vou te enganar, o bagulho doido e ninguém confia em ninguém, nem em você! E os inimigos vêm de graça... É a selva de pedra, ela esmaga os humildes demais. Você é do tamanho do seu sonho. Faz o certo, faz a sua! Vamo acordá! Vamo acordá! Cabeça erguida, olhar sincero. com medo de quê? Nunca foi fácil... Junta os seus pedaços e desce pra arena! Mas lembre-se, aconteça o que aconteça, nada como um dia após o outro dia...”  (Racionais MC’s)

 

Os últimos acontecimentos que vêm sendo noticiados a respeito do governo e do Partido dos Trabalhadores assustam. No entanto, o que parece ser ainda mais assustador é o silêncio público da grande maioria que por tanto tempo compartilhou a construção desse partido e da esquerda brasileira em geral. Não se trata aqui de uma convocação em defesa do partido, mas de uma lamentação angustiada de alguém que, apesar de nunca ter sido um militante ou mesmo um filiado, sabe da importância histórica dessa organização, como um imenso símbolo histórico de esquerda, e respeita a enorme energia despendida por milhares de pessoas durante duas décadas de luta.

 

Em conversas privadas ou mesmo em depoimentos individuais à imprensa, muitos dizem que nunca haviam pensado em ver tais denúncias ligadas à esquerda democrática, que sempre transpareceu ser sinônimo de honestidade política e administrativa. Mas não é de hoje que são observados problemas de cunho “ético” no PT. Muitos pularam fora desse barco há mais de dez anos pelos mesmos motivos que levaram tantos outros a fazerem o mesmo há pouco tempo. Autoritarismos, corrupções, traições, elitismos, burocracias, abandono de bandeiras fundamentais etc. – os motivos das críticas e discórdias internas são velhos conhecidos por aqueles que em algum momento participaram do partido. Contudo, foi apenas quando chegou à cena pública, assumindo cargos mais visados, que esses problemas vieram à tona, para além da militância. Foi assim no Espírito Santo, no Mato Grosso do Sul, no Rio Grande do Sul e em diversas prefeituras de São Paulo, apenas para citar alguns exemplos.

 

         O que vem ocorrendo nessas últimas semanas ultrapassa todos esses eventos, deslocando a própria escala do problema. As últimas notícias não se referem mais a problemas pontuais e localizados, mas à própria imagem do PT e da esquerda como um todo. As “bombas” não estão caindo apenas sobre a cabeça de alguns, mas sobre a própria bandeira vermelha, sobre décadas de lutas que não se restringem ao conjunto que compõe o atual governo. Atingem uma imagem maior composta pelas diversas manifestações políticas dos mais variados movimentos e grupos visualizados como “de esquerda”. Enquanto isso, as burguesias de todo o mundo gargalham sem parar e apontam o dedo para todos aqueles que dizem acreditar numa outra forma de organização social e que neste momento crucial para sua história se calam como se não tivessem relação alguma com os atuais eventos.

 

         Após termos sido silenciados pelo terror militar e nossas lutas mais desesperadas e arriscadas terem sido literalmente arquivadas pelos nossos próprios torturadores, mais uma vez estamos vendo a nossa história ir para o saco do espetáculo midiático. Fomos derrotados em 1970 e não tivemos forças, pessoais ou políticas, para contar aquela história. Hoje, assistimos paralisados os nossos velhos torturadores, sob suas novas embalagens – a imprensa, os bancos, o agronegócio e as multinacionais –, passarem a borracha em mais vinte anos de lutas, dizendo desmascarar a nossa “verdadeira cara”. Enquanto isso, o que fazemos? Damos passos para trás, apontamos individualmente alguns culpados e chegamos à hipocrisia de dizermos uns aos outros, com um sorriso cínico no canto da boca, que já sabíamos que ia “dar no que deu”.

 

         Não se quer aqui defender as vítimas pessoais dos “escândalos”, nem fazer mea culpa. Muitos de nós já concordávamos que tínhamos traçado um caminho errado e que não cabia chegar ao governo federal do modo como o grupo majoritário do PT chegou. Muitos de nós há um bom tempo já não enxergavam no PT uma organização que pudesse organizar uma real transformação na sociedade. Isso não importa neste momento. O que importa é que, de modo absurdo, estamos acuados. Reafirmar todas essas diferenças para nós mesmos não interfere em nada agora na conjuntura política, que certamente não tem como palco apenas Brasília.

 

O problema é que é através do planalto central que está partindo um ataque mortal à nossa história mais recente. E não estamos sabendo defendê-la publicamente. Se a própria atuação do PT no governo federal já colaborava para um esquecimento da sua própria história, para um esvaziamento de sentidos históricos de palavras como esquerda e socialismo, o que está em jogo agora é o fato de que esses termos podem passar a remeter publicamente a valores puramente negativos. E estamos nos abstendo de participar desse jogo, de disputar esses sentidos, de lutarmos pela preservação pública da nossa história.

 

         Não se propõe aqui a “salvarmos” o PT ou o governo federal. Isso pode ser tentado por diversos grupos interessados. Coloca-se apenas em questão um certo mal-estar, expresso em burburinhos, piadas, cinismo e, principalmente, num silêncio público angustiante entre aqueles cujo esforço de mais de duas décadas está sendo atingido indiretamente – e os verdadeiros donos do poder estão se deliciando com isso. Não cabe nos distinguirmos, mostrarmos comprovantes de “ética” – cabe, sim, reafirmar a nossa luta, que é múltipla e plural, e continuar trabalhando pela liberdade, em busca de novos caminhos por dignidade e igualdade social.

 

Ou será que não temos mais nada a dizer sobre o mundo quando este é corroído pela mais perversa das afrontas, quando se pretende retirar da boca de seus guerreiros o direito de contar a sua própria história? Talvez, no movimento hip hop, possamos encontrar uma boa resposta e um belo estímulo...

 

* Fábio M. Candotti é mestrando em sociologia na UNICAMP.

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