SOBRE A EDUCAÇÃO VOLTADA À CONSERVAÇÃO DA DEPENDÊNCIA

 

Roberto Bitencourt da Silva*


Mundo em Rabisco

 

– I –

 

Uma retórica que dá grande ênfase à educação tem representado, há anos, um dos principais componentes do imaginário político e cultural brasileiro. Sem dúvida, a bandeira da educação, particularmente a educação básica, tornou-se um senso comum muito difuso entre nós. Por isso, em um ano eleitoral como este, mais uma vez, as promessas em torno dessa bandeira como de costume irão vicejar.

 

Todavia, levando em conta o caráter projetivo que a educação possui, orientando a formação de indivíduos e grupos conforme os diversos valores, necessidades e aspirações construídos socialmente, faz-se necessário pensar em qual espécie de educação, e de país, se almeja.

 

Por consistirmos em uma economia dependente [1] , tem prevalecido a educação concebida e moldada para a reprodução de tal condição. É o que nos indicam, a título de ilustração, os recentes dados levantados pelo Instituto Paulo Montenegro (2005) sobre o analfabetismo funcional: cerca de 75% da população brasileira é incapaz de ler textos mais longos, localizar e relacionar mais de uma informação, comparar vários textos e identificar fontes. Sinal expressivo da precária e degradada escola que se tem ofertado no país. Um escandaloso crime que se comete contra o povo brasileiro, pois tal índice representa, dramaticamente, alguns dos nossos mais graves dilemas: a substantiva maioria está interditada tanto do exercício da cidadania, quanto da capacidade de apropriação dos fundamentos do conhecimento técnico-científico aplicado no sistema produtivo. Essa situação configura um obstáculo considerável ao exercício da soberania nacional, representando, com efeito, um poderoso instrumento de perpetuação das desigualdades sociais e de reprodução da nossa condição subalterna no cenário internacional – inclusive como importadores de equipamentos e tecnologia.

 

Partindo dessas questões, destacamos, inicialmente, algumas nuanças teóricas que envolvem a problemática da nação, assim como alguns entraves à construção nacional brasileira. Por fim, abordamos e problematizamos determinados aspectos do tipo de educação básica (ensinos fundamental e médio) ensejada por nossa dependência.

 

– II –

 

De acordo com a versão mais extremada da globalização, fenômenos como o incremento da dispersão geográfica das atividades produtivas, controladas pelas corporações multinacionais, a extraordinária mobilidade do capital produtivo e financeiro e a elevadíssima circulação de informações, implicaram uma quebra da capacidade decisória e das fronteiras nacionais. A tecnologia, o dinheiro e as informações transcenderiam em muito o marco nacional; transitando, ou devendo transitar, em livres águas internacionais. A idéia de nação, nesta perspectiva, de corte liberal, representa nada mais do que um anacronismo a inviabilizar a integração e a geração de uma riqueza crescente entre os mercados. Estes, supostamente estimuladas pelos fluxos de um comércio internacional livre das peias do “atraso”, representado por interesses localizados nacionalmente.

 

Aceitando em sua estrutura central a referida versão globalizante e imersos em um mesquinho descompromisso com o nosso país, os estratos dominantes e a expressiva maioria das elites políticas, têm relegado ao limbo a reflexão e a discussão a respeito dos nossos desafios e mazelas e sobre os meios de superá-los; desconsiderando, também, por extensão, a idéia de projeto de nação. Típica postura de uma consciência colonizada, que prefere governar em função de qualquer interesse internacional a governar para o país e o seu povo.

 

Em contraste com essa visão subserviente, e tendo em vista acentuar a relevância ética e política da questão nacional nos dias que correm, parece-nos oportuno, inicialmente, mobilizar o instrumental teórico do austro-marxista Otto Bauer. Extremamente atual, o autor desenvolveu, na Europa do início do século XX, uma singular concepção sobre a problemática da nação, que, além de se prestar ao questionamento dos cânones liberais vigentes, põe em relevo a estreita relação existente entre política e educação – em particular os poderosos laços de interdependência entre um esforço de construção nacional e a educação.

 

Bauer (2000) define a nação como uma comunidade cultural e de destino, formada no curso de sucessivas gerações, que produzem, distribuem e socializam de determinado modo os bens materiais e os valores culturais de suas vidas. Em suas palavras:

 

“Não é a semelhança de destino, mas apenas a experiência e o sofrimento comuns do destino, uma comunhão de destino, que criam a nação (...). Somente esse destino, vivenciado numa interação mútua geral, em constante ligação de uns com os outros, produz a nação” (Bauer, 2000: 57).

 

Segundo a ótica do autor, são os atributos culturais, a formação histórica, as necessidades e desafios, experienciados e compartilhados no seio de uma coletividade (num tempo histórico e em um espaço determinado), que fornecem, por um lado, o “cimento” da comunhão entre indivíduos e grupos e, por outro, o tom da especificidade da nação em face de outros povos e nações. Não é, pois, a mera adoção de técnicas e processos produtivos e de padrões de consumo mundialmente difundidos que invalidam o fenômeno da nação, como advogam análises de cunho liberal e um certo marxismo de corte economicista.

 

Tecendo uma ácida crítica ao capitalismo, Bauer (2000) acentua que, para que a nação se constitua plenamente, em todas as suas potencialidades, em uma comunidade cultural e de destino, deve estar organizada e orientada para o bem-estar coletivo – de modo a possibilitar o envolvimento efetivo das amplas massas da população com o patrimônio cultural nacional e com o destino e os rumos seguidos pela nação. De acordo com o autor, uma comunidade nacional de destino só pode realmente ser construída a partir de um amplo envolvimento coletivo; o que demanda previamente, em conformidade com esse marco teórico, uma capacidade socialmente transformadora por parte das organizações das classes populares, trabalhadoras, para se tornarem sujeitos partícipes do destino nacional.

 

Posto isso, um dos requisitos indispensáveis para a construção de tal comunidade de destino é o acesso universal dos membros da coletividade ao patrimônio cultural, técnico e científico produzido pela própria nação e pelo conjunto da humanidade; isso tendo em vista a participação e o controle coletivo sobre os processos de decisão política e as necessidades e fins econômicos. Não obstante, levando em consideração a dura realidade social da Europa na virada do século XIX para o XX, a exploração capitalista – submetendo as maiorias a uma alimentação precária, a uma extensa jornada de trabalho e a dramáticos problemas de moradia – inibia o envolvimento efetivo dos trabalhadores com o destino da comunidade. O seu trabalho, além de gerar riqueza material para os donos dos meios de produção, propiciava também a concentração dos bens culturais.

 

 

“A grande dor da classe trabalhadora (...) é ficar excluída do tesouro mais valioso de nossa cultura espiritual nacional, ainda que o mais simples biscateiro tenha contribuído para promovê-la. Continua tão verdadeiro como sempre o fato de que essa cultura transforma só os patrões numa comunidade nacional (Bauer, 2000: 53-54).

 

Sem lugar à dúvida, o cenário europeu mudou drasticamente no pós-guerra com a experiência do welfare state. A expansão da oferta e da qualidade do ensino e o provimento de condições elementares de vida generalizaram-se em diferentes países europeus. A criação e a universalização de serviços estatais de interesse público, como a educação, proporcionaram a emergência – parcial, diga-se –, no continente, de comunidades culturais e de destino [2] , tais como definidas por Bauer (2000).

 

No entanto, considerando o desenvolvimento desigual e combinado em que se apóia o capitalismo, países como o Brasil ainda se encontram numa importante encruzilhada civilizatória, qual seja: constituir-se em uma nação; erguer, nos termos de Bauer, uma comunidade cultural e de destino.

 

Para usar uma feliz expressão cunhada por Celso Furtado, a nação brasileira consiste em uma construção interrompida. Aquilo que Guerreiros Ramos, em fins dos anos 1950, assinalava como próprio ao nosso então processo de construção nacional – um viver projetivo que adquire uma individualidade subjetiva, vendo-se a si mesmo como centro de referências (Ramos, 1996: 48-58) –, foi jogado para escanteio. O golpe civil e militar de 1964 certamente representa um marco da paralisação, e mesmo retrocesso, da construção de uma comunidade nacional de destino por estas bandas da América [3] . O que foi ainda agravado nas últimas décadas. Agravado, por um lado, com a marginalização do povo de qualquer participação efetiva nos processos decisórios nacionais e com o seu parco acesso aos processos e frutos do progresso técnico, científico e cultural.

 

Por outro, no plano estritamente econômico, a referida construção nacional tem sido obstaculizada pelo império do financismo parasitário, marcado por uma política de desregulação financeira, associada a altíssimas taxas de juros e a uma conservadora diretriz antiinflacionária que têm estrangulado a capacidade de investimento público e do setor produtivo (cf. Assis, 2004). Por conseguinte, tem prevalecido a lógica do desenvolvimento (ou do antidesenvolvimento?) pela via da absorção integral aos ditames do capital internacional. A hegemonia da lógica globalizante de mercado, notadamente pela centralidade dada às exportações e à entrada de capital externo, produtivo e especulativo, como sustentáculos do “desenvolvimento”, tem acarretado sérios problemas ao país. Isto, sobretudo ao seu sistema econômico, conteúdo material de qualquer reivindicação em torno da construção de nossa comunidade nacional de destino.

 

Um sistema econômico nacional não é outra coisa senão a prevalência de critérios políticos que permitem superar a rigidez da lógica econômica na busca do bem-estar coletivo (...). Ora, a partir do momento em que o motor do crescimento deixa de ser a formação do mercado interno para ser a integração com a economia internacional, os efeitos de sinergia gerados pela interdependência das distintas regiões do país desaparecem, enfraquecendo consideravelmente a solidariedade ente elas (...) a integração regional com o exterior se fará por vários meios, em detrimento da articulação em nível nacional” (Furtado, 1992: 30-32).

 

Portanto, não são minúsculos os desafios e problemas com os quais o país se defronta, tendo em vista ensaiar a necessária retomada de sua construção nacional. Uma economia apoiada como está na dependência de tecnologia e capitais das grandes corporações internacionais, para mencionar apenas o setor produtivo, dificilmente pode contribuir para o exercício de qualquer ação ou controle nacional sobre o seu próprio destino.

 

Por extensão, além de um desafio político-econômico para a construção de uma comunidade nacional de destino, a dependência se apóia e enseja uma peculiar espécie de educação, tipificada por um débil investimento público no setor e por uma sui generis formação técnica e (anti)política que marginaliza amplas camadas da população brasileira de qualquer envolvimento efetivo nos rumos e no destino do país.

 

– III –

 

Esquematicamente, a educação pode contribuir tanto para a formação de indivíduos orientados pelos valores da liberdade, da igualdade e da capacidade de criação e inovação do conhecimento quanto para a formação de indivíduos condicionados a aceitarem uma ordem social iníqua, e impróprios à criação e à inovação. Um país, como o Brasil, dramaticamente dependente do exterior e dominado por estratos sociais notoriamente envolvidos por uma capa oligárquica e conservadora, manifesta uma clara opção pela segunda alternativa de formação da maioria de sua população.

 

A aludida opção manifesta-se em nosso sistema educacional, que, além de carente de recursos financeiros e materiais, em grande parte devido à retração dos gastos e dos direitos sociais nestes sombrios tempos liberais, tende a privilegiar uma espécie de formação de indivíduos autômatos, condicionados a somente manejar/operar com conhecimentos e equipamentos prontos, sobretudo elaborados em outras praias, e a serem destituídos de sólidos recursos para a participação e a intervenção políticas. E isso a despeito da panacéia, que se constata no discurso hegemônico (político, patronal e midiático), acerca da educação como fonte para o desenvolvimento econômico e para a consolidação da democracia.

 

As ambigüidades que o patronato brasileiro, sócio menor e subalterno do capital internacional, apresenta no tratamento da questão educacional, por exemplo, são bastante ilustrativas da prevalecente educação ensejada por nossa dependência.

 

Incorporando do exterior determinadas teses da chamada sociedade do conhecimento, não raro se vê, há anos, algumas ponderações de entidades e lideranças do patronato defenderem uma educação básica (ensinos fundamental e médio) voltada para uma formação sólida, abstrata e polivalente – abrangendo habilidades e conhecimentos técnico-profissionais e humanísticos. Isto tendo em vista, economicamente, o primado da qualidade total, da flexibilização e do trabalho integrado em equipe (Frigotto, 2003). Entretanto, a despeito de se constituir em uma demanda efetiva imposta pela nova base tecnológico-material do processo de produção no centro do capitalismo, tal demanda entra em contradição com o próprio modelo de “desenvolvimento”, voltado para as exportações, defendido pelo patronato do país: baseado em alta tecnologia, fundamentalmente importada, que requer cada vez menos mão-de-obra (Furtado, 1992: 46), fica claro que, na prática, o tipo de formação educacional advogada restringe-se apenas a um jogo retórico. Nessas condições, para que realmente destinar recursos consistentes para a educação?

 

Ademais, a demanda formativa posta em evidência entra em choque também com os imediatistas e parasitários interesses do patronato [4] , como ilustram, velada ou explicitamente: (i) a sua defesa da redução dos gastos sociais do Estado, afetando precisamente a possibilidade de se desenvolver mesmo o modelo de educação em tese advogada; e, como complemento, (ii) a sua defesa da manutenção, em geral, da subserviente relação estabelecida entre o país e os organismos e mercados internacionais, que inspira a contração dos investimentos públicos, entre outros, na educação. Projetos educacionais concretos? Mais representativo que o caritativo Amigos da Escola, patrocinado pela Rede Globo de Televisão, impossível...

 

Essa ambigüidade patronal, também refletida no discurso da mídia, revela-se ainda na percepção do ensino extra-escolar – ou o ensino estritamente profissional. O patronato encampa abertamente o imperativo da “reciclagem” dos trabalhadores, mormente através do aprendizado de certas noções de informática. Como tradução do referido imperativo, exalta-se a idéia, profundamente disseminada, de que se tem que “correr atrás” para obter um emprego, transferindo a responsabilidade do Estado para a caridade social e para os trabalhadores por sua própria formação e sorte. Além deste cruel significado, o emblemático “correr atrás” encarna apropriadamente a subalterna relação estabelecida entre o país e o exterior: como a sociedade brasileira não tem se caracterizado pela inovação tecnológica, estimula-se a reprodução de tal condição por intermédio da ênfase exclusiva no aprendizado da capacidade de destreza e operação de conhecimentos, técnicas e maquinários elaborados no exterior, incorporados e requisitados pelo sistema produtivo brasileiro. Afinal de contas, só se “corre atrás” daquilo que se encontra num patamar mais avançado. Portanto, nada de inovação e uso criativo. Apenas capacidade de operar com o que já está pronto; transplantação literal, no dizer de Guerreiro Ramos (1996).

 

Disso tudo, numa dimensão mais abrangente, deriva ainda a bandeira pseudodemocrática da descentralização da responsabilidade pelo ensino brasileiro, com propriedade problematizada por Frigotto (2003: 164):

 

“Na prática, a descentralização e flexibilização têm se constituído em processos antidemocráticos de delegação a empresas (públicas ou privadas), à ‘comunidade’, aos Estados e aos municípios a manutenção da educação fundamental e média, sem que se ‘desentulhe’ os mecanismos de financiamento mediante uma efetiva e democrática reforma tributária”.

 

Há mais de um século, a descentralização do ensino básico, em particular a pífia participação da União, cria um ambiente propício às críticas, como as tecidas, em um passado remoto, pelo educador e sociólogo Manoel Bomfim (Aguiar, 2000: 190).

 

 Em primeiro lugar, podemos destacar o caráter elitista da descentralização, que encurrala amplas camadas da população seja para a falta de acesso à escola seja para uma formação pobre ou à própria evasão escolar. Os incentivos fiscais concedidos, nos dias atuais, às escolas particulares são uma boa prova de um dos efeitos nocivos da descentralização, pois contribui para a apropriação privada de uma minoria sobre o fundo público (Frigotto, 2003: 186-187). Em segundo lugar, salientamos a pindaíba em que vivem os cofres do grosso de nossas municipalidades. Críticas à política descentralizadora foram também vocalizadas por um notório defensor da escola pública, gratuita, universal e de qualidade, Darcy Ribeiro, que ressalta uma importante faceta política do problema:

 

“Para mim, nossa comuna é o que há de mais retrógrado, vejo-a sob a garra do fazendeirão que não deseja educar ninguém. Onde prevalece o latifúndio e o triste mundo que ele gera, não há lugar para vida comunitária nem para pendor cívico” (Ribeiro apud Aguiar, 2000: 191).

 

Os dados sobre a previsão dos gastos da União com a educação, para 2006, revelam a perversidade da situação: R$ 17,3 bilhões a serem alocados no setor (Brasil, 2005), mormente para o ensino superior e para algumas parcas instituições do ensino básico sob a sua responsabilidade. Se comparados com a previsão do volume de recursos a serem encaminhados pelo governo federal, também em 2006, para a rolagem e o pagamento das dívidas pública e externa – superávit primário de R$ 67,3 bilhões, não computados os das empresas estatais, e os R$ 179,5 bilhões para os juros e encargos da dívida (Brasil, 2005) –, tais números demonstram significativamente, além da prioridade orçamentária, o tipo de país que se está construindo hoje e o que se pode vislumbrar no horizonte [5] .

 

Os números fornecidos pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – SAEB de 2003, pesquisa realizada pelo INEP/MEC (Brasil, 2004), também revelam o dramático quadro da educação brasileira. Os índices de evasão na escola pública são gritantes: 7,5% nas quatro séries iniciais do ensino fundamental, 12% na 5a a 8a séries do ensino fundamental e 17% no ensino médio. Assim, considerando ainda o pequeno número de alunos que abandonam as escolas particulares, e deixando de lado outras possíveis variáveis, esquematicamente, pode-se afirmar que, por baixo, cerca de 40% dos jovens não concluem hoje a educação básica. Ademais, considerando tanto os evadidos quanto os que concluem a educação básica, o panorama, em geral, é marcado por um aprendizado insuficiente que não atinge os patamares mínimos de competência, por exemplo, na prática da leitura e em matemática (Brasil, 2004). As precárias condições sociais que envolvem o estudo de grande parte das crianças e dos adolescentes – trabalho infantil, jornada de trabalho incompatível com o estudo para amplos segmentos de jovens e adolescentes [6] , má alimentação, habitação precária, desemprego e subemprego dos pais e responsáveis, baixa ou nenhuma escolarização destes etc. –, em muito contribuem para a deficiência de aprendizagem em questão. Formam-se brasileiros/as de 2a, 3a, 4a classes, impróprios/as tanto à participação e à intervenção competentes no espaço público/político, quanto à inovação e à elaboração própria no plano técnico-científico.

 

Evidentemente, esses problemas não se limitam aos educandos. A desatenção com a educação e as suas mazelas também alcançam, como sobejamente conhecido, a própria formação e o ofício dos educadores. Como extensão e produto dos quadros econômico, político e educacional do país, pressupostos e métodos pedagógicos, grosso modo vigentes, se contrapõem sobremaneira com qualquer premissa democrática para a construção de nossa comunidade nacional de destino.

 

Vêem-se com freqüência práticas “educativas” apoiadas em concepções e técnicas fundamentalmente orientadas para o adestramento, a cópia e a memorização. E isso independentemente de um certo senso comum pedagógico, que sustenta um discurso diametralmente oposto a estas práticas. É claro, não pretendemos argumentar que a cópia e a memorização devam ser descartadas do aprendizado escolar. Ao contrário, fazem parte do negócio, como instrumentos básicos de qualquer aprendizado. O problema, e grave, é que as aludidas práticas “educativas” tendem a se limitar somente a isso, deixando de lado o indispensável estímulo à atividade intelectual criadora.

 

De acordo com Theodoro da Silva (2002), em virtude da precária formação docente, dos péssimos salários e das débeis condições e equipamentos de trabalho (elevado número de alunos por turma, inexistência de laboratórios, e bibliotecas muito limitadas ou mesmo inexistentes, por exemplo), não raro os professores tendem a apoiar seu trabalho exclusivamente no uso do livro didático. Refletindo especificamente acerca da prática da leitura na escola brasileira, o autor ressalta que a interpretação autônoma e o gosto pela leitura são interditados para amplas camadas de alunos – particularmente os filhos das classes populares. Isso devido à generalizada pedagogia norteada pela transmissão unilateral, não-dialógica, dos conhecimentos, pelos exercícios de preenchimento de lacunas e pelas perguntas com respostas semiprontas. Leitura apenas como instrumento mecânico para se dar respostas pré-moldadas [7] . Divergiu, elaborou outro tipo de interpretação e resposta, nada resta a não ser a nota baixa e o atestado de incompetência ao aluno.

 

Ao invés de representar uma fonte de conhecimentos e de abertura dos horizontes intelectuais e afetivos, a leitura tem encarnado uma “tortura”. Nada de exercício intelectual criativo. Nada de construção/reconstrução coletiva do saber, envolvendo uma troca de interpretações e experiências entre os alunos e o professor. Apenas cópia e memorização, momentânea, de saberes a serem decorados passivamente para provas e exames.

 

A natureza perversa do modelo de ensino que tem produzido estes fenômenos, e seus potenciais frutos à coletividade, tendendo a gestar peculiares homens e mulheres do povo, são bastante conhecidos na sociedade brasileira: o regime de obediência extremada à ordem social, para evitar qualquer “punição”, beirando a passividade – que possui também na televisão um extraordinário agente para favorecê-la –, e a capacidade de operar, repetida e monotonamente, sobretudo com os conhecimentos, instrumentos e técnicas produzidos por outros, sem a correspondente apropriação e desenvolvimento criativos. Algo a ver com o alto grau de marginalização do povo brasileiro sobre os processos decisórios do país e com as relações de dependência econômica e tecnológica com o exterior? 

 

– IV –

 

Levando em conta o relevante papel ético e projetivo que a educação pode, e deve, exercer na mudança da mesquinha e colonizada cultura política brasileira (Frigotto, 2005), entendemos que dois imperativos educacionais necessitam ser incorporados ao nosso ensino, tendo em vista encetar um caminho que reduza os laços de dependência com o exterior e, por conseguinte, propicie a retomada da construção nacional brasileira:

 

1 - O aprendizado do aluno precisa ser norteado pela ação prática, i.e., mediante um esforço intelectual próprio;

 

2 - O professor deve possuir uma sólida formação intelectual, para incentivar a curiosidade dos alunos e a construção do seu pensamento próprio.

 

“Velhos” imperativos educacionais, ardorosamente defendidos por um símbolo do pensamento democrático, Jean-Jacques Rousseau (2004), e por um expressivo, mas “esquecido”, porta-voz dos interesses nacionais e populares brasileiros, Manoel Bomfim (1993 e 2000) [8] . Imperativos que se prestam à formação de indivíduos críticos, reflexivos e autodisciplinados, dotados da capacidade de conjugar seus interesses particulares com o bem público, e instrumentalizados para a participação política e à apropriação e construção do saber técnico e científico requerido no mundo contemporâneo.

 

Contemporaneamente, no Brasil, esses dois imperativos educacionais têm sido acentuados, entre outros, por Pedro Demo, que põe em relevo a necessidade de se educar pela pesquisa. Criticando a percepção generalizada do professor como um perito em aula, tendente a ensinar apenas a copiar, Demo (1997) advoga uma educação fundada na ação, na pesquisa, com o fim de possibilitar a emergência da autonomia reflexiva dos alunos – convertendo-os também em sujeitos e parceiros da produção do saber. Não obstante, o autor toca em uma questão nodal para alcançar esses frutos: o necessário investimento público na educação e, em particular, na formação dos professores. Apresentando um quadro melancólico no Brasil, Demo (1997: 2) afirma que:

 

“O problema principal não está no aluno, mas na recuperação da competência do professor, vítima de todas as mazelas do sistema, desde a precariedade da formação original, a dificuldade de capacitação permanente adequada até a desvalorização extremada, em particular na educação básica”.

 

Logo, sem a devida atenção e respeito com a formação do educador, e com o exercício de suas atividades, certamente qualquer proposta calcada no estímulo ao exercício, pelos alunos, da liberdade, da criatividade, da inovação e da participação na produção do seu próprio saber tenderá a fracassar. Do mesmo modo, a gestação de uma efetiva contribuição educacional para a reconstrução de nossa comunidade nacional, nos planos político, cultural, técnico-científico e econômico, ver-se-ia inteiramente frustrada.

 

Na prática, os imperativos educacionais postos em evidência (longe de encaminharem exclusiva e ingenuamente a “salvação” do país), demandam, necessariamente, numa dimensão mais global, a reformulação dos rumos político e econômico brasileiro. Que estes sejam norteados por fins e prioridades humanísticos e não pelos obscuros meios supostamente técnicos e neutros prevalecentes – advogados tanto pela tecnocracia dos governos do ex-presidente FHC e do continuísta príncipe operário, quanto pela base de apoio de ambos, em especial o financismo imperante e a poderosa mídia subserviente.

 

Em outras palavras, e em um nível de ação mais urgente, uma educação consoante ao esforço de reconstrução nacional requer um significativo corte com a parasitária captura do Estado pelos interesses do setor financeiro. Para isso, é preciso a atuação de lideranças, partidos políticos e movimentos sociais que tenham suficiente coragem de nadar contra a corrente e vontade de realização. Para superar o atual e desolador cenário nacional, e para a felicidade do povo brasileiro, esperamos que surjam tais atores políticos o quanto antes.

 


NOTAS

 

[1] A respeito, ver: Theotonio dos Santos, Teoria da dependência: balanço e perspectivas (2000).

 

[2] Atualmente muito ameaçadas pelos interesses e exigências das forças conservadoras, especialmente pelo setor financeiro e pelas corporações multinacionais. Por outro lado, também envolvida com o desafio da incorporação jurídica, cultural, política e econômica dos imigrantes do “terceiro mundo”, e de seus filhos. Sobre o assunto, entre outras obras de igual relevância, consultar: Pierre Bourdieu, Contrafogos (1998).

 

[3] Mesmo possuindo um projeto de país, o chamado regime militar não encetou o caminho da construção de uma comunidade nacional de destino, nos termos aqui discutidos. Ao contrário, o paralisou, em função de sua marca excludente, conservadora e elitista.

 

[4] Do patronato em geral, mas particularmente do setor classificado por Boito Jr. como burguesia de serviços, uma miríade de pequenas, médias e grandes empresas, que se beneficiam com a retração dos direitos coletivos e dos gastos públicos nas áreas sociais – como a educação. Ver Armando Boito Jr., 1999, pp. 67-76.

 

[5] E isso mesmo se observados, por exemplo, os dados da complementação orçamentária da União ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – FUNDEF, que, no ano de 2004, foi de aproximadamente escassos R$ 400 milhões, em face dos cerca de R$ 28 bilhões dispensados pelos municípios e, principalmente, pelos estados. Vê-se que, mesmo computando os recursos dispensados pelas três esferas da administração, não se pode afirmar que a educação consista em uma prioridade nacional, pois vale lembrar que os estados e municípios também contribuem, para o regozijo dos rentistas e banqueiros, com o superávit primário, no caso, em torno de 1,10% do PIB (Brasil, 2005), ou seja, cerca de R$ 25 bilhões. A respeito dos números do FUNDEF, consultar: Brasil, Boletim FUNDEF, ano VII, n.º 11, Brasília, Tesouro Nacional, novembro de 2004, disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br . Ver, também, Brasil, Boletim FUNDEF, ano VIII, n.º 1, Brasília, Tesouro Nacional, janeiro de 2005, disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br

 

[6] Vale destacar que, de acordo com Frigotto (2005: 75), “aproximadamente 60% dos que freqüentam o ensino médio no Brasil, o fazem de forma supletiva e/ou à noite”.

 

[7] Nesse sentido, não é de surpreender que a média de leitura no país seja tão pequena. Segundo a Associação Nacional de Livrarias, o brasileiro lê, em média, apenas dois livros por ano. Comparado, por exemplo, à média argentina, de 8 livros/ano, e a de alguns países europeus, 15 a 25 livros/ano, vê-se que a escola brasileira, a pública em especial, deve exercer um papel muito diferente do que tem exercido hoje, tendo em vista o necessário estímulo ao exercício e ao hábito da leitura. Dados extraídos de: Pedro Porfírio, “Na raiz de tudo, a pobreza do conhecimento”, in: Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 21/11/2005.

 

[8] Sobre o autor, ver a tese de doutorado de Ronaldo Conde Aguiar, publicada pela Topbooks (2000), e o ensaio pioneiro de Aluizio Alves Filho (1979).

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SANTOS, Theotonio dos. Teoria da dependência: balanço e perspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

THEODORO DA SILVA, Ezequiel. A produção da leitura na escola: pesquisas x propostas. São Paulo: Ática, 2a ed., 2002. 

 

RESUMO: propomo-nos com este artigo a discutir a relação entre política e educação. Por um lado, salientamos alguns entraves à construção nacional brasileira e, por outro, descrevemos e problematizamos algumas nuances do tipo de educação ensejada por nossa dependência.

PALAVRAS-CHAVE: educação básica, dependência, nação, cidadania, inovação tecnológica. 

* O autor é mestre em Ciência Política pelo PPGCP/IFCS da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor do ISEI/FAETEC da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: betobitencourt@hotmail.com

 

Itaperuna-RJ, 10 de dezembro de 2005.

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