A QUESTÃO DO EXPERIMENTALISMO INSTITUCIONAL NO PENSAMENTO POLÍTICO DE MANGABEIRA UNGER

 

Carlos Sávio G. Teixeira*

 

Roberto Mangabeira Unger tem como leitores de sua obra figuras da estatura intelectual de Jürgen Habermas e Richard Rorty. O escopo de seus projetos teórico e político são grandiosos. Considero não ser insensato compará-lo, em termos de abrangência e objetivos, àquele empreendido por Karl Marx no século XIX. Trata-se de uma reflexão que tem como meta principal reconstruir os estudos sociais a partir de novas perspectivas metodológicas e, em decorrência disso, propor arranjos institucionais que promovam uma “reforma revolucionária” da sociedade [i] .

 

A teoria política-social  de Mangabeira Unger desenvolve-se em duas direções bem definidas: uma de natureza explicativa e outra programática. Na parte explicativa, esta teoria tenta levar às últimas conseqüências a idéia da contingência das instituições contemporâneas. Na parte programática, ela investiga as formas institucionais alternativas que o pluralismo político, econômico e social pode revestir-se. Paralelamente a esse esforço teórico, tem desenvolvido um trabalho de interpretação do Brasil e de debate programático acerca de suas alternativas [ii] .

   

         Entre os temas principais animadores da sua obra, o primeiro é o da transcendência do ser humano em relação a todas as estruturas específicas, ao lado da possibilidade de inventar estruturas que reconheçam e desenvolvam esse poder de transcendência. Isto é, para ele a nossa relação com as estruturas da vida não está condenada a ser uma relação de contradição entre o ser transcendente e a estrutura prisioneira, inclusive porque podemos formar estruturas que são menos constrangedoras e mais abertas à revisão.

 

         A segunda grande preocupação dos escritos de Mangabeira Unger é a possibilidade de avançar o projeto dominante no mundo hoje: o compromisso com a democracia. Na sua abordagem este projeto tem duas vertentes principais. Do ponto de vista político, a questão é a convergência entre as condições de emancipação individual e as condições do progresso material. E do ponto de vista moral, esse projeto que propõe dignificar a pessoa comum, pode avançar pela renovação das suas formas institucionais e discursivas. Quer dizer, este projeto está amarrado hoje a um repertório de fórmulas institucionais e discursivas que não são suficientes para levá-lo à próxima etapa. E para ele há uma próxima etapa: o conteúdo desse projeto democrático pode ser reinventado por meio da mudança de sua forma específica. Essa idéia, típica dos séculos XVIII e XIX, de que há uma relação entre a mensagem e o veículo, é ressuscitada com intensidade pelo pensamento de Mangabeira Unger.

 

         A terceira preocupação de sua agenda teórica é a natureza da dialética interna de todo ser humano, expressa em sua ação no mundo concreto: o conflito entre práticas que pressupõem a ordem institucional e aquelas que se rebelam contra essa ordem. Para ele essa dualidade reflete o contraste fundamental da nossa relação com os mundos discursivos e institucionais que herdamos e, necessariamente, refazemos: por um lado, as pessoas são, de alguma forma, esses mundos e, por outro, aspiram ser mais do que eles.

 

         Um dos temas substantivos centrais subjacentes a esse projeto intelectual - e o que lhe empresta interesse teórico além de prático - é a indefinição institucional do mundo econômico e político. A premissa é que não se deve identificar a idéia abstrata de economia de mercado ou de democracia representativa com conjunto específico de instituições e regras, tais como aquelas que vieram a prevalecer nas sociedades ricas do Atlântico Norte da atualidade. Pelo contrário, a idéia de uma economia de mercado ou de uma democracia representativa pode revestir grande variedade de formas institucionais, bastante diferentes daquelas que hoje predominam nos Estados Unidos e nos países centrais da Europa Ocidental.

 

         Essa forma de raciocinar abre espaço para a idéia de construir uma sociedade com instituições econômicas e políticas próprias, sem correr o risco de ser, prima facie, ridicularizada como um atavismo irrelevante e romântico. A especificidade de uma forma tradicional de identidade coletiva ligada a uma forma distinta de vida, definida no detalhe das práticas e instituições. Essa identidade é uma textura densa da vida social informada por imagens legais das relações possíveis e desejáveis entre pessoas nos diferentes domínios da experiência. Por serem concretas, as crenças que informam as práticas políticas e sociais permitem combinações e negociações daquelas identidades.

 

         Se hoje a idéia de nacionalismo, por exemplo, está associada à intransigência e intolerância isso se deve, justamente, à dificuldade de se expressar as identidades através de algo tangível. Quanto mais se quer ser diferente menos se consegue os meios de expressar e fruir a diferença. Esse processo lembra a idéia de Tocqueville segundo a qual as desigualdades se tornam intoleráveis precisamente quando os privilégios diminuem sem, contudo, desaparecer (Unger, 1999: 198).

 

         Para Mangabeira Unger o resgate fecundo da idéia do nacional tem de estar acompanhada da idéia de mudança institucional. Como? Para ele a necessidade de eficiência dos imperativos práticos e o crescente predomínio de uma cultura mundial não forçam a convergência para uma ordem institucional e ideológica única. Por isso:

 

“o caminho para tornar as diferenças menos perigosas é, paradoxalmente, torná-las mais reais. A forma de torná-las mais reais é desenvolver práticas, instituições e formas de pensar e falar que tornem possíveis gerá-las e expressá-las” (Unger, 1999: 199).

 

         A questão fundamental nesse caso é a seguinte: na mediada em que o repertório de fórmulas institucionais disponíveis hoje no mundo é muito restrito, a capacidade de criar essas diferenças passa como que por um “portal estreito” de inovações semelhantes e iniciativas análogas na qualificação do indivíduo, na democratização do mercado e no aprofundamento da democracia.

 

         O importante na compreensão dessa perspectiva, entretanto, é que ela não adota a idéia de que as alternativas possíveis de serem fecundadas no mundo contemporâneo sejam apenas nacionais. Isto é, ele não acredita que uma alternativa nacional possa combater, com sucesso, uma “ortodoxia universal”. Essa “ortodoxia universal”, em sua visão, só pode ser enfrentada eficazmente por uma alternativa também universalizante.

 

         Por tudo isso é que, embora possa parecer de significado restrito, a tese da indefinição institucional da idéia de economia de mercado ou da democracia representativa continua a ser incompatível com algumas das idéias básicas da teoria social contemporânea. No modo convencional de empregar o aparato da análise econômica, por exemplo, a idéia de uma economia de mercado se deixa identificar com os arranjos institucionais e as formas de propriedade privada conhecidos. 

No livro O Direito e o Futuro da Democracia, recentemente traduzido no Brasil, Mangabeira Unger afirma que uma das conquistas teóricas centrais da análise jurídica no último século foi a descoberta gradativa da indefinição institucional da idéia de mercado. Tal é, por exemplo, o sentido maior da idéia de que a propriedade é apenas feixe de direitos e poderes heterogêneos que podem ser desagregados e recombinados de muitas maneiras diferentes. Entretanto, para ele, ainda não se compreendeu o significado radical desta descoberta da análise jurídica para áreas vizinhas, como a economia política.

 

         A formação de um pensamento verdadeiramente institucional que estimule a prática disciplinada da imaginação institucional representa, portanto, uma das grandes tarefas inacabadas do pensamento social contemporâneo. A idéia de indefinição institucional da economia e da política pode desdobrar-se em várias preocupações mais específicas. No Brasil, por exemplo, responder se o nosso presidencialismo será aquele copiado dos norte-americanos, desenhado por James Madison, pelo sistema de pesos e contra-pesos para desacelerar a transformação política da sociedade ou se será um presidencialismo dotado de mecanismos para facilitar a resolução imediata dos impasses, tem enorme significado.

 

As respostas a indagações institucionais como esta determinam o destino de uma sociedade. E, a partir do momento que se introduzem questões como essa, o enfoque do conflito ideológico atual deixa de ser a velha oposição entre estatismo e privatismo e passa a ser o conflito emergente entre as formas institucionais alternativas do pluralismo político, econômico e social.

 

         Entretanto, as tradições mais influentes das ciências sociais de hoje são em geral hostis à imaginação institucional. A tendência a naturalizar - vale dizer, a tratar as instituições dominantes como conseqüências inelutáveis de imperativos funcionais ou evolutivos da sociedade - é um traço comum do marxismo e das ortodoxias reinantes na maioria das ciências sociais.

 

         A oportunidade intelectual para o desenvolvimento de uma família de idéias como a defendida por Mangabeira Unger, está no fato de que naquelas teorias o entendimento da história e da sociedade formou-se a serviço da idéia de destino, e não a serviço da idéia de construção e reconstrução. Por isso, a tarefa mais urgente do pensamento social é forjar os instrumentos intelectuais com que imaginar estas alternativas a que o novo conflito de idéias se abre.

 

         A concepção analítica central derivada da teoria do “experimentalismo institucional” desdobra-se em várias preocupações mais específicas ao longo do pensamento político de Mangabeira Unger [iii] . Enumeram-se três exemplos de situação onde se apresenta a indefinição institucional da economia de mercado:

 

1) o relacionamento entre os setores mais avançados e mais atrasados da economia: a vanguarda e a retaguarda produtivas. A economia mundial está sendo organizada como uma confederação internacional de vanguardas produtivas. Definidas estas vanguardas, menos por capital e tecnologia do que por um método de inovação permanente, observa-se que elas estão em cada país - rico ou pobre - separadas de suas respectivas retaguardas. Os dois mecanismos existentes no mundo para moderar as conseqüências desigualizadoras dessa divisão entre vanguarda e retaguarda - as políticas sociais compensatórias e a difusão politicamente sustentada da pequena propriedade - padecem do mesmo defeito: não guardar uma relação íntima com a lógica central da inovação e do crescimento. Portanto, se apresentaram ao longo do tempo como um ônus sobre o crescimento e não uma parte dele. A questão, então, é a seguinte: a forma institucional da organização da economia de mercado tanto pode aprofundar essa divisão supra referida como pode iniciar um processo de sua superação. Dessa forma, o problema é saber se estamos condenados a apenas moderar as conseqüências sociais dessa divisão ou se, ao contrário, temos a condição de enfrentá-la e superá-la. Essa é uma questão programática central atualmente.

 

2) o relacionamento entre finanças e produção. A forma institucional de economia de mercado que triunfou nos países do chamado primeiro mundo deixa tênue a relação entre poupança e produção. “A evolução da teoria econômica dificulta até formular essa questão na medida em que tende a transformar numa equivalência semântica investimento e poupança”, afirma Mangabeira Unger. Para ele, a questão da relação entre finanças ou poupança de um lado e, produção ou investimento produtivo de outro, não é uma questão analítica e sim institucional: depende de saber se de fato existem alternativas institucionais que possam relacionar mais intimamente o dinheiro com a economia real.

3) a participação do salário na renda nacional. Segundo Mangabeira Unger, as grandes variações que existem entre países em níveis semelhantes de riqueza e desenvolvimento na participação dos salários na renda nacional não podem ser explicadas exclusivamente por fatores econômicos ou demográficos. Têm de ser explicadas também por circunstâncias políticas e institucionais. Portanto, o dogma quase universalmente aceito de que não pode haver crescimento da participação dos salários na renda que ultrapasse ganhos da produtividade é falso. Esta idéia de que o status do salário do trabalhador depende do contexto ou da forma institucional da economia de mercado tem uma contrapartida em uma outra tese sobre o caminho para a construção de uma economia mundial livre.

 

         O modelo chamado de neoliberal teria adotado como estratégia o livre comércio e o livre fluxo de capitais acompanhado pelo aprisionamento do trabalho em Estados Nacionais relativamente homogêneos como os que integram a comunidade européia. Mangabeira Unger defende um caminho alternativo em que o capital e o trabalho ganhem juntos, porém, em pequenos passos gradativos, essa liberdade para atravessar fronteira. Pois a idéia de indefinição da economia de mercado se opõe a tese da convergência, segundo a qual todas as economias do mundo estão evoluindo para os mesmos conjuntos de práticas e instituições [iv] . Nessa perspectiva, as diferenças institucionais entre as formas do chamado capitalismo, como as diferenças de organização societária da economia de mercado alemã ou japonesa em comparação com a norte-americana, seriam limitadas e efêmeras. Para Mangabeira Unger, uma comparação convincente entre as economias dessas nações deve inverter aquele argumento: essas variações institucionais existentes, ainda que sejam transitórias, representam uma parcela ou seguimento de um universo muito mais amplo de possibilidades institucionais. Essa concepção analítica informa no seu pensamento o argumento programático: a defesa polêmica da radicalização de um experimentalismo tanto produtivo como político [v] .

 

         Na verdade, essa é uma polêmica especialmente dirigida contra a “social-democracia de compromisso keynesiano” chamada por Mangabeira Unger de “institucionalmente conservadora”, que dominou as democracias do primeiro mundo no período do segundo pós-guerra. Dessa forma, a concepção programática central, no que diz respeito a mudanças na operação do contexto, “defende a idéia de desenvolver equipamento econômico e cultural do trabalhador e do cidadão em vez de cristalizar um conjunto de direitos adquiridos em favor de trabalhadores que ocupem posições diferentes na organização atual da economia” (Unger, 1999).

 

         O resultado esperado dessa idéia programática é que esse aprofundamento do experimentalismo, por meio da descentralização política e produtiva leve a uma segunda etapa em que a forma de economia verdadeiramente democratizada de mercado seria abrigar regimes alternativos tanto de propriedade privada quanto de propriedade social, coexistindo experimentalmente na mesma economia. Ao invés de apegar-se a uma forma única de direito de propriedade como acontece atualmente. E supõe que este experimentalismo econômico prospere num contexto de aprofundamento da democracia, já que as formas existentes de democracia representativa desaceleram a transformação da sociedade pela política e mantém a vida social num patamar relativamente baixo de mobilização política. As formas institucionais alternativas defendidas por Mangabeira Unger, ao contrário, são desenhadas para acelerar a transformação da sociedade pela política e para aumentar de forma duradoura e institucionalizada a mobilização política da sociedade.

 

         Hoje existem três tipos de oportunidade políticas concretas que servem de incitamento para um projeto como este: Primeiro, a convicção das limitações desse compromisso social-democrata do segundo pós-guerra que, basicamente, abandonou a tentativa de reinventar a forma institucional do mercado e da democracia; substituindo esse esforço de reinvenção institucional por um compromisso com a democratização das oportunidades de consumo e pelo manejo contra cíclicos das economias. Esses compromissos social-democratas, de fato, têm limites cada vez mais patentes: ele é baseado numa série de barganhas entre grandes interesses organizados (parecendo até uma espécie de novo “antigo regime”) que restringe a força de inovação econômica e tecnológica e, ao mesmo tempo, supõe uma série de divisões existentes entre grupos organizados ou trabalhadores que desfrutam dos melhores empregos e grupos desorganizados ou trabalhadores excluídos. Portanto, a idéia democrática defendida por Mangabeira Unger, que é sempre procurar aproveitar a área de intersecção entre o experimentalismo econômico e o experimentalismo político, postula romper esse compromisso social democrata. Isso seria, na visão de Mangabeira Unger, por assim dizer, uma crítica interna desse mundo das democracias do primeiro mundo. Mas, ao mesmo tempo, está implícita nesta polêmica, uma “crítica externa” - não do ponto de vista deste mundo, mas de um ponto de vista fora dele - que afirma que este é o mundo em que tudo que é público (o mundo da construção coletiva) foi abandonado, e que o mundo da inovação ocorre no terreno da cultura e da subjetividade: a idéia de que “a política se torna pequena para que as pessoas possam se tornar grandes”. Para Mangabeira Unger, esta concepção que anima o mundo hoje parece inaceitavelmente restritiva, tanto das possibilidades humanas práticas como espirituais (Unger, 2001: 25-37).

 

         A segunda oportunidade prática para o desenvolvimento dessa idéia do experimentalismo institucional é a crença de que já está em curso em todo o mundo - sobretudo nas economias ricas - uma mudança do padrão produtivo. Essa mudança é às vezes descrita como um pós-fordismo, ou como uma economia flexível e inovadora. Nessa descrição, seria uma forma de produção que modera o contraste entre concepção e execução, que mistura concorrência e cooperação e que transforma a vida produtiva numa experiência de aprendizagem e inovação permanente. Esse “vanguardismo produtivo” prospera em setores relativamente isolados das sociedades e com pouca ajuda do Estado. A grande questão, para Mangabeira Unger, é saber se esta mudança vai ocorrer só em “ilhas” ou se ela pode ser generalizada para a economia como um todo. E nesse caso, a resposta é herética para os padrões dominantes: para ser generalizada ela precisa de ajuda pública. Mas essa ajuda não pode vir na forma de dirigismo ou de distribuição centralizada de favores, ou de política industrial e comercial no modelo das economias dos “tigres asiáticos”. E nesse ponto está o problema: como se pode conceber uma forma de associação entre o poder público e a iniciativa privada que ajude a difundir e radicalizar o experimentalismo ao invés de dirigi-lo ou constrangê-lo [vi] .

 

         A terceira oportunidade prática para o desenvolvimento desse tipo de experimentalismo é a ameaça periódica que a instabilidade financeira tem imposto à economia real. A oscilação dos fluxos financeiros se torna mais custosa a medida que eles se internacionalizam. Dessa forma, acabam ressuscitando o debate dos anos 30 e 40 sobre reformas institucionais que mudassem a relação entre as finanças e a economia real [vii] .

 

         A essas três oportunidades práticas talvez seja possível acrescentar uma quarta: a questão do destino das nações, não só como economias, mas como civilizações dos grandes países continentais marginalizados da atualidade como o Brasil. O que está em jogo em derradeira instância nesse debate sobre a tese da convergência e a indefinição institucional do mercado não é apenas a existência de uma alternativa ao “compromisso social-democrata”. Na verdade, o mais importante em tudo isso é a possibilidade de criação, no mundo, de formas alternativas de organização da vida social, sustentadas ou informadas por instituições diferentes a serem desenvolvidas em grandes teatros como o Brasil [viii] .

 

         Por último, algumas breves observações sobre o contexto da oportunidade intelectual para a prática do experimentalismo institucional. Mangabeira Unger sustenta que não existe hoje um pensamento verdadeiramente institucional. Por exemplo: o institucionalismo dos institucionalistas norte-americanos contemporâneos representa uma espécie de “institucionalismo antiinstitucional”. Mangabeira Unger afirma que eles procuram explicar e justificar as instituições existentes (a forma institucional dominante de democracia representativa ou de economia de mercado) como o resultado cumulativo de uma série de decisões racionais. O problema está na seguinte questão: é possível explicar a formação do arcabouço institucional de uma democracia representativa ou de uma economia de mercado da mesma forma ou por analogia à explicação que se dá a decisões racionais dentro de um arcabouço institucional já pronto? [ix] .

    

         No caso específico das alternativas para a economia de mercado, por exemplo, a literatura atual sobre organização industrial pode, segundo Mangabeira Unger, ser um ponto de partida para a construção do pensamento institucional, assim como o “development economics” dos anos 50 e 60 poderiam ter sido. Mas em sua opinião, assim como development economics daquele período renunciou ao seu potencial de ser uma visão teórica diferente que contestasse o centro do pensamento econômico, redefinindo-se como uma mera especialidade obediente, é essa também hoje a mesma tendência desses estudos sobre organização industrial [x] .

 

         Portanto, a tarefa de construir um pensamento institucional nas grandes disciplinas sociais ainda não foi realizada. Esta tarefa está ligada ao problema central do pensamento social que é a capacidade de imaginar a contingência ou as alternativas: construir uma forma de explicação que não seja uma reivindicação da necessidade das coisas.      Para Mangabeira Unger, o problema está no fato de que esse caminho não significa apenas a introdução de uma nova temática: implica uma revolução de métodos, atitudes e ambições. Não só exige grande informação histórica e comparativa, como parece incompatível com a especialização disciplinar existente hoje na academia. Incompatível, por exemplo, com as divisões existentes entre economia (política) de um lado e direito de outro.

 

         Incompatível também com teorias como o marxismo e seus “conceitos como capitalismo, que pressupõem a existência de um regime econômico e jurídico único e típico com uma lógica própria, ou distinções entre humanização reformista e suplantação revolucionária da ordem estabelecida”. Assim como, as ciências sociais positivas de corte norte-americano que:

 

“prescindem completamente da idéia de mudança estrutural, tratando as estruturas e preconcepções básicas como o resíduo cumulativo de um sem-número de episódios passados de resolução de problemas ou de concessões, ou como o resultado de convergência por tentativa-e-erro às melhores práticas disponíveis. Em tal ambiente intelectual, a transformação e a invenção das estruturas formativas de uma sociedade tornam-se literalmente inimagináveis. Como resultado, nos encontramos empurrados de volta a um entendimento do realismo político como proximidade ao que já existe” (Unger, 2004: 12).

 

         Para Max Weber (1994) toda realização científica propõe novas questões, mas também, simultaneamente, pretende ser superada e ultrapassada. A formulação e reformulação de problemas é um processo contínuo na prática do conhecimento. Por isso, o que essas idéias referentes ao experimentalismo institucional evidenciam é que parece impossível repensar os problemas brasileiros, mesmo no plano mais prático, sem entrar de corpo e alma nesse caminho de rebelião intelectual.

 

 

 

   



Notas:

[i] A obra de Roberto Mangabeira Unger espalha-se por mais de uma dezena de volumosos livros. Os mais importantes, até agora, são: Paixão – Um Ensaio sobre a Personalidade e a trilogia de teoria social e política publicada sob o título geral Politics – a work in constructive social theory. Os títulos são os seguintes: Social Theory: Its Situation and its Task; False Necessity: Anti-necessitarian Social Theory in the Service of Radical Democracy e Plasticity into Power: Comparative-historical Studies on the Institutional Conditions of Economic and Military Success, editados pela Cambridge University Press. Há um livro que traz uma seleção desses textos, contendo a argumentação de fundo de sua teoria: Politics: the central texts, organizado por Zhiyuan Cui, pensador chinês que divide suas atividades entre a direção de um centro de estudos em Beijing (China) e o MIT (Massachusetts Institute Tecnology) nos EUA, onde leciona ciência política. Há uma versão em português dessa obra, editada pela boitempo editorial em 2001: Política: os textos centrais.

        

[ii] Os escritos de Roberto Mangabeira Unger vêm sendo discutidos intensamente em várias partes do mundo. Nos Estados Unidos, país onde desenvolve sua carreira acadêmica, ele é considerado sem cerimônias um autor que rivaliza, por exemplo, com John Rawls, o mais influente filósofo político do segundo pós-guerra. Ao lançar sua trilogia de teoria social em 1987, a obra recebeu um espaçoso seminário onde suas idéias foram debatidas por ilustres figuras do meio intelectual anglo-saxônico e reunidas em Lovin and Perry (Orgs.), (1987). Além disso, tem sido objeto de várias análises: Anderson (2002), Dunn (1993), Gomes (2002), Holmes (1993), Rorty (1999), West (1988), são alguns exemplos. 

 

[iii] A obra dedicada especificamente às suas propostas programáticas é Democracia Realizada: A Alternativa Progressista. Ela é uma espécie de tradução de seu projeto teórico. É nela, fundamentalmente, que me apóio nas análises seguintes.

[iv] A perspectiva inspirada na tese da convergência se caracteriza pela defesa das seguintes idéias: 1) identifica a emergência de um mercado global nas duas últimas décadas; 2) esse processo resultou da aplicação das inovações tecnológicas mais recentes (a combinação de telecomunicações com informática) à operação dos mercados internacionais de capitais, conferindo enorme mobilidade às aplicações financeiras que promovem os investimentos; 3) dessa forma tornaram-se inócuas as tentativas  de controle e/ou intervenção por parte dos estados nacionais; 4) diante disto, os estados viram-se obrigados a liberalizar e desregular as suas economias para dar conta da nova mobilidade e velocidade alcançada pelo capital; 5) com isso os estados (de forma generalizada) perderam capacidade de gestão macroeconômica abrindo caminho para a convergência econômica mundial das mesmas práticas e instituições. Embora muitos abracem esta tese, a adesão aos itens do pacote varia de acordo com cada autor. Ver, entre outros, Barbara Stallings (Ed.) (1994), Global change, regional responses - the new international contexts of development.

 

[v] Contudo, “no pensamento programático, é um erro opor propostas de curto prazo e orientadas pelo contexto à tentativa de exploração de futuros alternativos de longo prazo, ou opor moderação a radicalismo. Qualquer trajetória de mudança estrutural cumulativa pode ser considerada em pontos próximos da realidade social atual, ou distantes dela. A direção é mais importante do que a distância”. Ver Unger (1999: 207), (grifos meus).

 

[vi] As suas propostas específicas sobre o tema encontram-se em Unger (1999: 149-167). Para uma descrição detalhada de várias dimensões desse processo numa perspectiva distinta da de Mangabeira Unger, ver STALLINGS (Ed.), (1995).

[vii] Ver, a respeito desse tema, a análise de Belluzzo (1995).

[viii] Para uma visão geral das análises de Mangabeira Unger acerca dos limites e das possibilidades colocados pela realidade brasileira atual, ver Unger (2001,b). Ele tem realizado também uma tentativa de construção de uma maneira diferente de pensar e propor programaticamente: desde 1998, mantém uma coluna semanal (às terças-feiras) de artigos no diário Folha de São Paulo.

 

[ix] Sobre este tipo de institucionalismo criticado por Mangabeira Unger, ver, por exemplo. North (1990). Para Unger, “nossas escolhas institucionais não apenas executam o projeto predefinido de nossos interesses e ideais. Elas aperfeiçoam aquele projeto. Em grande parte, é enriquecendo as possibilidades institucionais, e conduzindo-as em uma direção e não em outra, que as tornamos – e portanto, nos tornamos - certo tipo de humanidade, e não outro”. (Unger, 1999: 21).

 

[x] Mangabeira Unger reconhece que fora dos países de língua inglesa, há certas tendências de pensamento, como a escola da regulação na França que levantam a temática institucional. Mas o fazem, segundo ele, constrangidas por um grande resíduo do determinismo marxista: “a idéia de que há um sistema indivisível que tem uma lógica intrínseca de transformação”.

 

 

Referências Bibliográficas

 

ANDERSON, Perry. “Roberto Mangabeira Unger e a Política do Engrandecimento”, Afinidades Seletivas. São Paulo, Boitempo, 2002.

BELLUZZO, Luís Gonzaga. “O Declínio de Bretton Woods e a Emergência dos Mercados `Globalizados´”, Economia e Sociedade, Campinas, (4), 1995.

DUNN, John. La Agonía del Pensamiento Político Occidental. Cambridge University Press, 1993.

GOMES, Mércio Pereira. “Mangabeira Unger e seu Papel na Cultura Política Brasileira da Atualidade”. Niterói, UFF,  mimeo, 2002.

HOLMES, Stephen. Anatomy of Antiliberalism. Cambridge, Harvard University Press, 1993.

LOVIN, Robin e PERRY, Michael (eds.). Critique and Constructuion: a Symposium on Roberto Unger's Politics. New York: Cambridge University Press, 1987.

NORTH, Douglas. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. New York, Cambridge University Press, 1990.

RORTY, Richard. “Unger, Castoriadis e o Romance de um Futuro Nacional”, Escritos Filosóficos: Ensaios sobre Heidegger e outros. Rio de Janeiro, Relume Dumará. Vol. 2, 1999.

STALLINGS, Barbara (ed.). Global Change, Regional Responses - The New Internacional Contexts of Development. Cambridge, Cambridge University Press, 1995.

UNGER, Roberto Mangabeira. Paixão - Um Ensaio Sobre a Personalidade. São Paulo, Boitempo, 1998.

­­_________________________. Democracia Realizada. A Alternativa Progressista. São Paulo, Boitempo Editorial, 1999.

_________________________. Política: Os Textos Centrais. São Paulo, Boitempo Editorial, 2001.

_________________________. A Segunda Via: Presente e Futuro do Brasil. São Paulo, Boitempo Editorial, 2001b.

_________________________. O Direito e o Futuro da Democracia. São Paulo, Boitempo, 2004.

WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais. São Paulo: Campinas, Cortez: Editora da Unicamp, 1994.

WEST, Cornel. Between Dewey and Gramsci: Unger’s Emancipatory Experimentalism, Northwestern University Law Review, 81 Nw. U.L. Rev. 941, 1988.

 

Resumo: O propósito é o de expor alguns dos aspectos centrais da teoria política de Roberto Mangabeira Unger; teoria que abre caminho para novas perspectivas metodológicas através de arranjos institucionais capazes de superar “velhas contradições” e  promover a “reforma revolucionária” da sociedade [x] .

 

Palavras-chave: pensamento político, experimentalismo institucional  e reforma revolucionária.

 

 * Carlos Sávio G. Teixeira é cientista político.

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