Discurso pronunciado em 9 de dezembro de 2004, em Niterói, no Campo de Gragoatá, pelo professor-doutor Gisálio Cerqueira Filho,  patrono dos formandos em Ciências Sociais (turma Octávio ianni) do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, da Universidade Federal Fluminense

 

Gisálio Cerqueira Filho [1]

 

Este ensaio pede para ser lido ou ouvido ao som

do bandoneón de  Balada para um Loco  (Astor

Piazzola e H. Ferrer), Amelita Baltar e orquestra.

 

         Ilma. Sra, professora. Maria Lúcia Pontual, vice-diretora do ICHF e representante do Magnífico Reitor da UFF, demais autoridades universitárias componentes da mesa, senhores pais e familiares aqui presentes, meus colegas professores, querido alunos e alunas desta turma do ano de 2004.

        

         Antes de tudo quero agradecer a homenagem que me está sendo prestadas, ao me honrarem como patrono desta turma denominada “Octávio Ianni”.

 

- I -

 

         É próprio no dia de hoje retomar a pergunta que eu fazia há uns cinco meses atrás: “para que têm servido as ciências sociais?” [2]. Não vou buscar generalizações fáceis do tipo “reforçar o projeto de dominação das classes dominantes” ou “construir a hegemonia capitalista” ou, alternativamente, “propor um projeto de transformação social”. Também não vou me referir à escala planetária; antes vou me fixar na história recente do Brasil, desde que as ciências sociais começam a desabrochar entre nós, e me fixar preferencialmente no microcosmo doméstico em que - estudantes e estudiosos – estamos inseridos. Trata-se de uma contribuição modesta ao debate, que se pretende bem-humorada e otimista numa visada para o futuro.

 

         Vou me fixar a partir do movimento modernista, da emergência das primeiras manifestações organizadas da classe operária, do surgimento de uma obra que assinala, talvez, o nascimento das ciências sociais no Brasil: refiro-me à “Populações Meridionais do Brasil” (1922), de Oliveira Viana. E, como disse anteriormente, vou voltar-me para o espaço familiar e particular dos jovens quando declaram que vão estudar ciências sociais. É um Deus-nos-acuda danado.  Há alguns anos, via de regra, as famílias reagiam muito mal a isso.

 

         Como? Não optar por direito, medicina, engenharia, as alternativas clássicas do reconhecimento social! No presente, a reação é um pouco mais branda, mas ainda assim mal humorada. As ciências sociais sugeriam, e ainda sugerem, um certo far niente, um ócio e diletantismo inadmissível para acumular fortuna e fazer frente às necessidades da vida. Desde os primeiros momentos, o estudante secundarista que fala em cursar ciências sociais recebe um olhar de esguelha e desaprovação de seus pais e parentes mais próximos. Constitui-se logo num objeto de curiosidade e observação da família, quando não declarado de imediato insensato, louco ou assemelhado.

 

         Quero, pois, me fixar neste caráter pitoresco, que ainda está vivo entre nós.

         Para que têm servido as ciências sociais entre nós, isto é, no Brasil, neste microcosmo familiar da casa, projetada para fazer valer voz e voto na cena política da rua? Melhor caracterizada a indagação, segue a resposta: As ciências sociais têm servido para constituir o lugar e o papel do alegria da casa, também designado como louco da casa, ora num sentido pejorativo, ora num outro, de “louco manso” assentado no imaginário, na utopia e até na alucinação, tão bem referidas nos “Diários de Motocicleta”, do cineasta Walter Moreira Salles Jr, sobre a vida do Che, ainda antes da opção pela luta política e embora ele não fosse estudante de ciências sociais, mas, vejam vocês, de medicina ... A exceção confirma a regra.

 

         Queremos então interpretar estas duas adjetivações: alegria da casa e louco da casa, que se casam como mão e luva, diria Machado de Assis [3], quando relacionadas ao estudante de ciências sociais. Queremos compreender estas duas expressões na  variedade de significados que têm assumido historicamente, que assumem na hora presente, que podem assumir numa perspectiva de futuro.

 

         Não é de pouca importância que a louca da casa tenha sido designada, em remotos tempos, por Santa Tereza de Ávila, em Espanha, como sendo precisamente a imaginação, o imaginário... [4]

 

         O estudante de ciências sociais, na nossa Latinoamérica, não é freqüentemente visto por esta lente que o rotula como “imaginativo”, “que vive da e na imaginação”, “poeta”, no sentido de fantasista, fantasioso, “viajante”, etc., etc.? Talvez pudéssemos indagar acerca das vantagens de sermos tudo isto numa sociedade midiática e performática onde cada vez mais o meio é a mensagem. Qual o lugar do sonho e da fantasia? Tanto no nosso cotidiano, quanto realidade social propriamente dita?

 

         Já a expressão alegria da casa me trás à lembrança Mário de Andrade, este modernista tão imaginoso quanto comprometido com a expressão crítica de uma identidade pessoal, de uma língua personalíssima capaz de exprimir uma sua verdade, subjetiva e singular, mas que passa decididamente pelo problema mais intimista da busca e descoberta da identidade nacional, construída como um “quebra-cabeças” sobre um mosaico de múltiplas identidades sociais.

 

         Aqui pensamos que o dualismo entre interior/exterior, universal/particular é ultrapassado, num sentido que eu diria spinozista, por Mário e seus companheiros. Será a língua sempre exterior ao nosso eu mais profundo? Ou o problema da expressão autêntica, genuína e singular (da identidade, enfim) ganha contornos sociais precisos, o que leva à particularização circunstanciada e histórico-conjuntural? [5] Para Mário o problema universal ganha peso local e, se é mediado por condições de espaço e de tempo, deve ser considerado numa dada situação, relações de força ou circunstância histórica; tudo isto junto significa dizer que na atualidade do pós-modernismo a questão da identidade nacional é midiatizada, ou seja, mediada pela mídia. Em função do passado colonial e escravista, a crise de identidade é dupla; sendo um problema “identificar a identidade, de certo modo programá-la e criá-la, já que, por sua crise universal e local, estamos impossibilitados de sermos espontâneos espontaneamente” [6]. Mario, que se interessa pela violência e o autoritarismo da escravidão se interessa também pela relação dos brasileiros com o paternalismo, com o favor, mais ainda com a autonomia, a autenticidade, a sinceridade, a transparência. Aqui estamos no centro de complexos dilaceramentos, ambivalências e conflitos de ordem moral, ética e estética, ainda não resolvidos na sociedade brasileira e freqüentemente apresentados pelos estudantes e estudiosos das ciências sociais no Brasil. Daí o sentido de sermos, cada um de nós, o louco da casa.

 

         Todavia, essa loucura que é a imaginação, “como é que agente voa quando começa a pensar”, será melhor compreendida com a expressão alegria da casa. Antonio Carlos Brito [7] considera-a expressão espetacular e julga termos que recorrer a uma famosa carta [8] que Mário endereçou a Paulo Duarte tratando das relações entre o eu  profundo e o contexto histórico mais imediato, tendo como pano de fundo a questão doméstica ou familiar. Nesta carta ele diz:

 

“Eu noto, aliás, Paulo, que nós dois exercemos em nossas  famílias um papel muito importante e que não tem sido muito bem... (ou) nada estudado até agora: o papel de alegria da casa. Esta alegria não consiste especialmente em ser a pessoa, alegre, otimista, anedotística da família, não. Consiste essencialmente (no fato) da gente ser a movimentação familiar, a pessoa que de repente tem vontade de comer um pato, por exemplo, ou de repente tem coragem de dizer sobre um parente qualquer uma verdade deslumbrante que toda a família precisava dizer, mas não tinha coragem dentro do convencionalismo familiar (...) O alegria da casa é esse que trás do convencionalismo familiar a possibilidade de evasão” [9].

 

Esse papel de alegria da casa Mário vai levar para o campo da critica social e cultural, não escondendo e ocultando nada, vivendo a transparência, inclusive política, fazendo cessar a convivência instituída no convencionalismo do favor ou das rotinas domésticas, suprimindo e ultrapassando limites, arejando e desobstruindo as relações sociais. E tudo isto num repente, num improviso, num ato espontâneo.

 

      A isso tem servido as ciências sociais no Brasil. Elas têm oferecido as chances concretas para que algumas centenas de jovens estudantes, homens e mulheres, tenham efetivamente a possibilidade da evasão, a experiência da imaginação vivida como loucura, como falta, como deslize, como caminhada “fora dos trilhos”, ainda que temerosos de um desastre qualquer...

 

      Evidentemente que uma tal resposta não esgota a totalidade dos serviços que as ciências sociais têm prestado, em especial no Brasil. Mas eu renuncio já a qualquer pretensão de completude e digo, convocando todos à imaginação sociológica, como nos falava Wright Mills, se as ciências sociais tem servido para a constituição do louco da casa é porque elas mesmas – ciências sociais – tem sido uma “casa de loucos”.

 

      Louca da casa, alegria da casa, tomadas como metáforas para a imaginação, para o imaginário, que entranhado no simbólico mais resistente e relutante vai forjando não apenas a realidade, mas em particular o real do qual nos fala Jacques Lacan; este real que não se confunde com a realidade, todavia, cravado no imaginário, vive pulsante e liberto no impossível do desejo, na falta nunca preenchida.

 

      Não se trata apenas de um mero jogo de palavras; se as ciências sociais têm servido para uma espécie de fuga e escape para o imaginário é porque elas próprias têm servido como uma espécie de abrigo ou casa para o mesmo imaginário. Por isso é que fica bem uma tal correspondência aparentemente esdrúxula ou paroxística para quem pensa a ciência no marco do paradigma racionalista e iluminista.

 

      O louco da casa numa casa de loucos: coisa de louco [10].

 

- II –

 

      Até aqui a retomada do texto de outro dia, mas que vem bem a propósito.

 

      Permitam-me agora adotar a metáfora que julgo adequada para o quanto de louco temos, estudiosos e estudantes de ciências sociais, dentro de nós. A metáfora é do D. Quixote imortalizado na pena de Miguel de Cervantes. Quixote, este verdadeiro apólogo da alma ocidental, como sugere San Tiago Dantas [11] e a quem evoco neste daqui em diante.

 

      Iniciemos por duasa citações de Cervantes e pelo belo poema de Carlos Drummnond de Andrade.

     

“Minhas pompas são as armas e meu descanso o pelejar (Quixote, I-II) [12]

 

“Este meu amo, já tenho visto que é um louco de pedras, e eu também não lhe fico atrás (II – X, p.576).

 

     

      Agora vejamos o poema de Drumond, na verdade glosas sobre o Quixote, publicadas  em dezembro de 1987 [13].

 

DISQUISIÇÃO NA INSÔNIA

 

                Que é loucura: ser cavaleiro andante ou

                                            segui-lo como escudeiro?

                De nós dois, quem o louco verdadeiro?

                O que , acordado, sonha doidamente?

                O que, mesmo vendado,

                o real e segue o sonho

                de um doido pelas bruxas embruxado?

                Eis-me, talvez, o único maluco,

                e me sabendo tal, sem grão de siso,

                sou - que doideira – um louco de juízo.

 

      Com o Quixote, podemos observar o heroísmo isento do êxito e voltar o nosso pensamento não tanto para os resultados, mas sobretudo para a repercussão do exemplo e do testemunho.

 

      Do Quixote, queridos alunos e alunas, brota um ensinamento contrário ao ideal de eficiência, que é o da simples entrega de si para operar pelo exemplo e pela germinação. As qualidades do herói quixotesco, Miguel de Cervantes, não as tirou do nada, nem sequer as inventou; apenas as recolheu, purificou e cristalizou para sempre no seu personagem maior; ponto de chegada de uma complexa e difusa tradição literária: os romances de cavalaria.

 

      Mas a criatividade cervantina liberta o personagem heróico e o heroísmo da concepção aristocrática dos romances de cavalaria e deita raízes no solo do cristianismo primitivo [14], no início do império romano. Pois o cristianismo revelou que fracassar é, muitas vezes, o ponto de partida para vencer, e estendeu, assim, às ações humanas, no plano do tempo, a idéia evangélica de semente que morre e  se transforma em árvore e ainda produz frutos. A aspiração de D. Quixote à aventura, o seu desejo de renovar um mundo povoado de injustiças e falta de generosidade; a prática de operar esta ação pelo dom de si mesmo, é, de fato, um dos mais altos anseios dos homens no mar de provações às quais eles se sujeitam para cumprir seus ideais.

 

      Mas não esqueçamos a lição: aspirar a uma superior missão entre os homens é sublime; acreditar que se possui tal missão é ridículo.

 

      Por fim, gostaria de ressaltar a unilateralidade do sentimento, do afeto, numa maneira bem lacaniana e psicanalítica.

 

      O amor tudo pode, o amor nada pede. Tal é a metáfora do “amor-enamoramiento” do Quixote por Dulcinéa. Esse amor-entrega que, no exercício mesmo de si, se liberta de todo ciúme e desejo de controle. Ele vai contra  o absolutismo afetivo.

 

      O dom de si mesmo, o amor-entrega, o amor-servir salva-nos e ao Quixote. Tudo isto o faz triunfar de seus fracassos e enganos. Se esse dom de si salva o Quixote e a cada um de nós, heróis ocidentais afro-descendentes assumidos aqui e agora, a plenitude e o sentido da ação tem uma mediação: Dulcinéa, o eterno feminino a quem presto a homenagem do Quxote..Ella pellea en mi, vence em mi y yo vivo y respiro em ella. Em ella tengo vida y ser”.

      Muito obrigado!

 

Niterói, 09 de dezembro de 2004.

 

Notas

 

[1] Doutor em Ciência Política e Professor Titular de Sociologia. Docente no Departamento de Ciência Política (ICHF) e pesquisador senior do Laboratório Cidade e Poder/ UFF. 

( e.mail gisalio@superig.com.br )

[2] Tal pergunta e a parte I deste texto foram apresentadas no V Encontro das Coordenações dos Cursos de ciências sociais, em 23 de julho de 2004, em Niterói. Esta primeira foi resumida por ocasião da cerimônia de formatura da turma de ciências sociais/ 2004. A parte II, todavia, foi preparada especialmente para a ocasião e lida na íntegra.

[3] Referência ao romance “A mão e a luva” (1874), de Machado de Assis.

[4] Nesta direção vai o romance de mesmo nome “La loca de la casa”, de Rosa Montero, Espanha, 2003 e publicado em português pela Ediouro em 2004.

[5] Ver Anatol Rosenfeld, “Mário e o cabotinismo” in Texto/ Contexto, Perspectiva, São Paulo, 1969.

[6] Antonio Carlos Brito,  “Alegria da casa”, in Discurso 11, FFLCH/ USP, Ed. Ciências Humanas, São Paulo, 1980. p. 107/ 123.

[7] Antonio Carlos Brito, “op. cit.”, p. 115.

[8] Paulo Duarte, “Mário de Andrade por ele mesmo”, Edart, São Paulo, 1971, p. 129.

[9] Paulo Duarte, “op.cit.”, pág. 129.

[10] Na mesma pasta está o texto “A teoria política  no Brasil e o Brasil na teoria política” Gisálio Cerqueira Filho e Gizlene Neder, apresentado no 4o encontro anual da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), 21 a 24 de julho de 2004, PUC-RIO, cuja leitura recomendamos.

[11] Ver Santiago Dantas, “D. Quixote: um apólogo da alma ocidental, Agir, Rio de janeiro, 1948.

[12] Para as citações do Quixote, estamos utilizando a primeira edição da Aguilar, Rio de Janeiro, 1960

[13] Patrocínio da Sul América Seguros, Rio de Janeiro, 1987, edição com belas pinturas de Portinari.

[14] Veja-se Slavoj Zizek, The Fragile Absolute: or why is the Christian legacy worth fighting for?, Londres/ Nova York, Verso, 2000.

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