Theotonio
dos Santos*
A morte súbita e inesperada de Celso Furtado abre um
enorme vazio na construção do pensamento critico brasileiro e internacional. O
lançamento da sua candidatura ao Premio Nobel de 2004 mobilizou uma quantidade
impressionante de adesões no Brasil, na América Latina e em todo mundo.
Infelizmente os conservadores que organizam este prêmio perderam esta
oportunidade de dar maior credibilidade ao mesmo, bastante desgastada por sua
preferência por economistas inexpressivos e conservadores.
É um absurdo que se mantenha quase excluído do mainstream da Ciência Economia um vigoroso pensamento
econômico que se desenvolveu na região latino- americana a partir sobretudo da
liderança de Raúl Prebish na Comissão Econômica das
Nações Unidas para América Latina (CEPAL). Celso Furtado foi seu mais brilhante
colega na dura tarefa de demonstrar o equívoco do pensamento ortodoxo ao
consagrar uma divisão internacional do trabalho onde os países
periféricos e subdesenvolvidos se restringiam a produzir os insumos para o
consumo produtivo ou final nos países centrais.
Tratava-se de demonstrar a perda dos termos de intercâmbio
entre o centro e a periferia (conceitos que se desenvolveram a partir da CEPAL)
e a distribuição desigual dos resultados da mudança tecnológica. Daí podia-se
prever que com a falta de uma mudança política e econômica fundamental, as
relações econômicas internacionais seriam conduzidas a uma desigualdade
crescente e não a uma igualdade como o previa a lei das vantagens comparativas
consagrada pela economia ortodoxa.
A industrialização dos países
periféricos somente seria possível com o apoio de políticas de planejamento
estatal que Celso Furtado sistematizou com grande competência. Ele demonstrou
também que a situação do subdesenvolvimento não era simplesmente uma expressão
de atraso econômico mas tinha leis de funcionamento que exigiam um esforço
teórico próprio ao qual ele contribuiu com elementos decisivos.
Além de suas contribuições para a teoria do desenvolvimento
e da planificação, Celso Furtado revisou com profundidade a história econômica
do Brasil e posteriormente de toda a América Latina do ponto de vista de um
instrumental teórico e analítico moderno. Seus livros sobre a Formação
Econômica do Brasil e da América Latina influenciaram profundamente a escola
histórica dos Anais, como reconheceu Fernand Braudel.
No campo teórico, Celso Furtado
contribuiu também significativamente para o estudo da economia mundial, do
impacto das multinacionais na economia capitalista contemporânea e no processo
de globalização, cujos elementos centrais antecipou em suas obras sobre o tema
realizadas no final dos anos 60.
Ele antecipou também os efeitos
negativos que o pensamento único provocaria na situação dos países de
desenvolvimento intermediário como o Brasil. Sua obra tem sido, nos últimos
anos, uma referência fundamental para a oposição brasileira que chegou
finalmente ao governo com uma maioria esmagadora de votos na última
eleição. Não se tratava somente de um debate político senão também de um debate
teórico sobre a concepção da ciência econômica. Celso Furtado tem desenvolvido
uma ampla meditação metodológica sobre o verdadeiro sentido de uma Ciência
Econômica. Sua crítica se dirige ao caminho que tomou o ensino da economia que
se aproximou mais do modelo da física do final do século XIX de que uma ciência
social moderna.
Neste sentido o pensamento social
latino-americano tem contribuído significativamente para a teoria social e para
o método científico, ao desenvolver a concepção de um estruturalismo histórico
que Celso trabalhou no plano teórico e na sua utilização no plano da análise
empírica através de seus estudos sobre a história dos Estados Unidos, sobre a
formação do capitalismo na Europa e sua projeção mundial e sobre a dinâmica
econômica latino-americana em particular. Seus livros tornaram-se
indispensáveis na formação dos economistas e cientistas sociais da região, na
medida que seu enfoque demonstrou na prática a possibilidade de uma análise
inter e intradisciplinar.
Mas a obra de Celso Furtado não se esgota
no plano teórico. Sua atuação como homem público se inicia com a formação
da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) no final dos anos
cinqüenta no Brasil. Ele demonstrou a importância do planejamento regional
para resgatar da miséria toda uma região do Brasil. A partir da experiência
do Tennessee Vale Authority
nos Estados Unidos e do programa de planejamento para a Sicilia
na Itália, Celso Furtado abriu caminho para o resgate do nordeste brasileiro,
a região que serviu como referência fundamental para a Geografia da
Fome, livro de grande impacto internacional escrito pelo médico, geógrafo
e sociólogo pernambucano Josué de Castro, que inspirou em nossos dias o programa
de Fome Zero do presidente Lula, infelizmente cada vez mais abandonado.
Seu êxito na SUDENE o conduziu ao
Ministério do Planejamento do Presidente João Goulart, de onde pôde converter
seus avanços teóricos em instrumentos de transformação prática, abortados pela
vitória do golpe militar de 1964, que subsumiu o pensamento social brasileiro
na submissão colonial do qual não se recuperou ainda totalmente. Depois de um
longo exílio no qual desenvolveu, sobretudo seus estudos teóricos e históricos,
com a derrota da ditadura na sucessão presidencial de 1984, Celso Furtado foi
chamado a cooperar com o governo como Ministro da Cultura e posteriormente como
embaixador do Brasil junto à Comunidade Européia na Bélgica. Nestes anos
exerceu uma influência fundamental, aproximação e cooperação
argentino-brasileira que deu origem posteriormente ao MERCOSUL.
A marca de Celso Furtado no pensamento
social contemporâneo é inestimável. Mas ela será mais importante neste dias
quando o povo brasileiro e de vários países latino-americanos exigem uma política
econômica alternativa para a região. E quando os responsáveis pelo desastre
econômico e social em que nos encontramos pretendem manter em prática a “única”
política econômica possível, a obra de Celso Furtado será sempre uma referência
fundamental para romper estes mitos. E sua contribuição se agigantará ainda
mais quando retomemos o caminho do crescimento econômico, da distribuição
da renda e da igualdade social, pois seus estudos sobre o desenvolvimento,
o planejamento e as políticas econômicas deverão ser um instrumento fundamental
para orientar a formação de uma nova geração de economistas no Brasil, na
América Latina e em todo o mundo.