A REFORMA DO ESTADO EM DEBATE: UM ESTUDO A PARTIR DO CASO BRASILEIRO*
Wellington Trotta **
1. Introdução
Mesmo sendo uma
construção político-jurídica de caráter coercitivo,
tendo o monopólio da violência sobre os homens, estando ao lado de uma determinada
classe em detrimento de outra, o Estado é uma realidade sob a qual vivemos após
longa caminhada de lutas sangrentas em que se envolveram diversos grupos a
partir de múltiplos interesses. Nesse sentido penso ser impossível negar que a
esse mesmo Estado lhe seja retirado a realidade de conquista e superação de
obstáculos, no que colocou à prova a capacidade do homem na organização
objetiva de buscar garantir direitos elementares dentro de uma
vida razoavelmente coletiva. Se o Estado é um tormento na vida das pessoas por
representar uma classe, ou se se constitui em um
pesadelo à expressão mais individualista possível, sem sombra de dúvida sua
inexistência não só se tornaria um tormento como um pesadelo à própria condição
humana. Creio que o liberal mais convicto, ou mesmo o anarquista mais apegado
aos seus princípios, entendem que o grau associativo em que nos encontramos não
dá para excluir o Estado de uma hora para outra sem, em seu lugar, construir
uma outra figura política da mesma sofisticação.
É imperiosa a figura desse resultado
histórico. É marcadamente necessário, portanto, dentro de sua própria
continuidade, uma reforma que faça sua validade perpetuar-se enquanto
instrumento político-jurídico de realizações concretas no âmbito das formações sociais. Portanto, que reforma o século XXI prepara
para o Estado? Creio que a esta indagação a Ciência Política é capaz de trazer
esclarecimento, pois sua função é justamente separar doxa
de episteme, ou seja, desembaraçar aquilo que
ofusca a realidade.
O texto que ora
apresento tem por fim discutir o sentido de Estado e seu papel na formação
social brasileira, em que o poder público ainda é o grande agente de
transformações sócio-econômicas face ao desafio neoliberal de restringir suas
ações com o intuito de ter o mercado como agente regulador. Ressalto que os
autores aqui discutidos estão na tradição liberal. E por que esta ressalva? Por
uma razão muito simples: desejo assinalar que nem todos os liberais apresentam
os mesmos argumentos quanto ao papel do Estado e o significado de democracia,
contrariando um certo discurso oficial daqueles liberais tupiniquins
que defendem um Estado longe até de suas atribuições originais. Isso não
significa que a tradição liberal seja suficiente para dar conta desse imenso
problema, mas também não ouso afirmar que os seus mais destacados teóricos da
atualidade não ensejam reflexões importantes. Nestes tempos de escassez
teórica, de confusão programática, convém ter aliados, sem com isso misturar
princípios.
O presente trabalho
está dividido em três partes. A primeira tem o Estado como foco, em que a
partir dos autores citados, trato de mostrar a importância do Estado em plena
era da globalização. Na segunda parte o escopo é discutir a alternativa
da democracia como eficaz forma governativa da administração dos aparelhos
estatais. Na terceira e última parte tomo como reflexão um estudo de Eli Diniz, voltado especificamente para o Brasil, publicado
sob o título Globalização, Reforma do Estado e Teoria Democrática
Contemporânea, que serve como fechamento do presente artigo. E por fim uma
pequena conclusão.
2. O Estado Em Foco
Não se pode
pensar a sociedade contemporânea sem a presença do Estado, até mesmo em países
como Grã-Bretanha e Estados Unidos, onde o Estado, de longe, não teve o mesmo
papel como em outros países, especificamente França, Brasil e Argentina. O
Estado, de uma forma ou de outra, sempre agiu segundo determinados interesses
de grupos. Em países marcadamente liberais, o poder público de uma forma ou de
outra garantiu aos seus membros instrumentos razoáveis à criação de condições
satisfatórias ao implemento de políticas públicas no tratamento de diferenças
diversas. Tanto nos Estados Unidos como na Grã-Bretanha, o poder público atuou
forçadamente de forma a intervir em momentos decisivos em que o sentido de
unidade política sofria ameaça de descontinuidade, ou melhor, sempre quando os
conflitos não poderiam ser resolvidos longe do confronto direto e violento.
Mesmo nesses países, especificamente nos Estados Unidos, o poder público
interveio no mercado de modo a superar
os efeitos da crise de 1929. Se o Estado garantiu o capitalismo enquanto modo
de produção, dando-lhe plena legitimidade de atuação, não é com a ausência do Estado que os problemas
econômicos atuais serão resolvidos a contento; ao contrário, ainda cabe ao
Estado a função de organizar o debate quanto à sua própria reforma.
Não se defende
uma participação estatal de modo insular, é preciso “pensar a reforma do
Estado em estreita conexão com o tema da consolidação democrática” (Diniz,
1996: 5). Entende-se ser impossível
pensar uma reforma do Estado dentro dos limites da burocracia. Segundo Diniz, o
tema da democracia deve está permanentemente presente para não se perder de
vista que o Estado não é outra coisa senão um conjunto de disposições onde se
deve levar em conta as expectativas dos cidadãos. Qualquer reforma que vise
alterar a configuração das instituições públicas só terá validade se ampliar e
incluir em seu interior a cidadania. Por isso não se pode reformar uma
instituição pública ignorando o conceito de poliarquia (Diniz,
1996). Se em determinado momento da
história o Estado esteve presente na composição de conflitos de pequenos
grupos, visando uma determinada inclusão, muito mais se faz presente sua
atuação quando os participantes são muitos e de uma forma ou de outra aguardam
também suas respectivas inclusões no interior dos benefícios da cidadania.
No Brasil, o tema
da reforma do Estado está presente desde o advento da Nova República a partir
de 1985, sobretudo nos anos de 1990, sem com isso efetivar-se uma verdadeira
reforma que melhorasse as instituições públicas. O que se vê no caso brasileiro
é o debate estrutural sucumbir diante de questões meramente de ordem
conjuntural; o essencial deixa de ser discutido em favor de “programas de
estabilização econômica e o acirramento dos
conflitos em torno da distribuição de recursos escassos” (Diniz,
1996: 8). Ao que parece, a discussão sobre a reforma do Estado brasileiro não
se transformou em realidade, talvez devido ao fato de que, o que se pretendia
era tão somente uma reforma administrativa visando à privatização de estatais
com grande potencial econômico-financeiro. A reforma do Estado brasileiro ficou
a reboque de problemas paroquiais,“deixando camadas
expressivas da população à margem da área das instituições encarregadas de
resolver seus problemas primários de saneamento, saúde, segurança, transporte e
educação” (Diniz, 1996: 15).
Eli Diniz
ainda aponta um outro problema dentro do debate da reforma do Estado
brasileiro: a excessiva argumentação de que as decisões externas têm, de alguma
forma, afetado as decisões tomadas por parte do governo brasileiro, com o que a
autora não concorda, visto que na verdade o governo brasileiro não se fez
presente na condução do debate e no empenho de materializar as reformas
estatais prementes e necessárias na condução de efetivas melhorias das
condições de existência da população. A autora aponta ainda que o sistema
político brasileiro caracteriza-se como uma poliarquia segundo os
clássicos critérios assinalados por Robert Dahl, mas
em contra partida no que tange aos direitos dos seus cidadãos, desde saneamento
básico à Justiça, o que se vê é uma gritante desigualdade social que só será
definitivamente resolvida quando se levar em consideração o papel da democracia
como verdadeiro condutor da reforma do Estado brasileiro (Diniz, 1996).
A irracionalidade
produzida pela burocracia insular do Estado brasileiro,
apontada por Diniz (1996), pode ser vista com nitidez no estudo
apresentado por Angelina Figueiredo e Fernando Limongi
no livro Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Nessa
obra os autores afirmam “que o poder Executivo em virtude de seus poderes
legislativos, comanda o processo legislativo, minando assim o
próprio fortalecimento do Congresso como poder autônomo”. (Figueiredo-Limongi, 1999: 41). Tal constatação mostra que a burocracia estatal, vinculada ao Executivo, dispõe de
poderes que a torna de certa forma autônoma, distante da realidade, que por sua
própria natureza é conflitante e requer por parte da política uma atuação firme
no propósito de subordinar a técnica em favor das verdadeiras decisões de
Estado, aquelas orientadas pelo bem público. Se a reforma do Estado é urgente,
urgentíssima deve ser a reformulação das relações entre os poderes Executivo e
Legislativo, em que cada um no seu papel possa, no âmbito democrático,
estabelecer relações de natureza política e não de simples ratificação legal.
Em uma sociedade que se pretenda democrática, incluir em suas preocupações as
demandas sociais, não pode construir determinações longe da participação
popular, que em última análise tem no Legislativo o seu fórum privilegiado. Não
é com medidas provisórias que se constrói uma relação de discussão. Uma relação
de discussão tem como premissa a igualdade entre os poderes no sentido de
guardar o exercício dos poderes voltados ao interesse comum.
Figueiredo e Limongi sustentam que não é verdadeira a argumentação do
Executivo quando alega que o Legislativo não tem colaborado com o esforço de
mudar o Brasil, e implementar necessárias reformas no intuito de mudanças do
Estado brasileiro. “O Congresso se revela disposto a facilitar a tramitação
das matérias presidenciais e, sobretudo, a remover possíveis obstáculos à ação
presidencial” (idem, 1999:42). Se há
uma reforma extremamente urgente dentro do Estado brasileiro, essa está nas
relações entre os dois poderes em tela. Em uma democracia, o que deve
prevalecer é o debate com o objetivo do convencimento pela discussão pautada na
racionalidade. Em síntese, o que deve prevalecer é o político.
Ao propor uma
reforma do Estado brasileiro, o Executivo nunca levou em conta que a verdadeira
reforma deveria partir primeiramente de sua relação com o Legislativo e não
reduzir o debate a simples reforma administrativa que, além de aumentar o poder
do próprio Executivo, atendeu a princípios doutrinários em desfavor dos
interesses reais, apontados por diversos autores como Diniz, O’Donnell, Figueiredo e Limongi,
entre outros. Segundo os mesmos
teóricos, a primeira e urgente reforma do Estado brasileiro é aquela que visa
promover a independência do poder Legislativo face ao Executivo, que por
motivos legais ou não, acaba retirando do Legislativo sua qualidade de
instância política, aonde projetos e propostas efetivamente vindas dos mais
variados setores da sociedade, deveriam ser encaminhadas na efetivação do papel
de síntese nacional e supremacia da política sobre a tecnocracia.
A eficiência do
Estado não está em saber se ele deve ou não intervir no mercado, se ele deve
ser mínimo ou máximo. O ponto central da discussão é quanto à sua capacidade de
articular com o mercado uma busca exemplar de eficiência, isto é, nessa relação
construir instituições que dentro de uma racionalidade busque padrões de
correções sempre que o interesse público exigir, quando o mercado caminhar ao
contrário das expectativas dos cidadãos (Przworski,
1996).
Sendo o Estado uma realidade, sua reforma estaria mais na linha de
um aperfeiçoamento institucional, visando sua eficácia na garantia de
proporcionar segurança, educação, saúde, transporte e outras intervenções
necessárias (Przeworski, 1996). O tempo de um Estado espectador não é possível
na atualidade, são muitos os seus papéis, sua atuação ainda é relevante nas
formações sociais em geral e na brasileira em particular. Isso porque sua
atuação sempre foi decisiva no processo de desenvolvimento não só estritamente
econômico, mas científico, cultural e promoção de laços integrativos entre os
indivíduos.
Adam Przworski enfatiza a necessidade de instituições orgânicas
na relação com o mercado: “se essas instituições puderem ser – e, de fato, forem – bem desenhadas, uma economia submetida à intervenção do
Estado é superior a outra em que o Estado não tem nenhum papel” (Przworski, 1996, 18). O que o autor discute é o papel do
Estado na construção de instituições públicas cuja ação política privilegia
duas frentes importantes. A primeira frente configura-se na sua relação com os
agentes econômicos, sempre determinada pela inteligência e
eficiência no ato de ingerência; a segunda, e não menos importante,
é a sua relação junto à população, à
transparência dos seus atos junto ao público, resumindo numa accountability de corte vertical. Aprofundando a discussão, Przeworski admite
como equívoco orientar a reforma do Estado tão somente para o aspecto do seu
papel na economia. O que o autor propõe além dessa discussão, é uma reforma em
que o cidadão seja certificado das ações do Estado na sociedade. Por isso é importante afirmar que a
verdadeira reforma é a transparência da ação estatal dentro do mercado, sempre
voltada para o interesse público.
Na mesma linha
adotada por Diniz, Figueiredo e Limongi, Przeworski atrela reforma do Estado à
qualidade da democracia. Uma reforma do Estado que se preze não pode deixar de
levar em consideração o papel das instituições como mecanismos “que permitam
à sociedade realizar seus objetivos coletivos, dentro de limites
constitucionais, por conferirem ao governo a capacidade de intervir na economia
e por submetê-lo ao controle popular” (Przeworski, 1996: 34).
3. A democracia como eficácia
Parece que o
século XXI está marcado pela possibilidade da democracia se tornar um sistema
governativo universal, assim como foi a monarquia em
um dado momento da história política dos povos. Tal fenômeno tem sido estudado
- sob o ponto de vista formal -, pelos pensadores contemporâneos, por aqueles
que destacam a política como objeto central de suas análises e compreendem o
novo papel preponderante do Estado: o de substituir por meio do jogo
democrático, alicerçado sobre um sistema legal, as velhas lutas sangrentas e
violentas de outrora entre os
insatisfeitos e os privilegiados.
Ao escolher o
título deste tópico procuro sintetizar o que normalmente se pensa por
democracia nas hóstias liberais, isto é, uma forma governativa onde todos devem
ser incluídos em um sistema que contemple a liberdade e amplie a igualdade
através de medidas que valorizem o indivíduo enquanto agente capaz não só de
direitos, mas de partícipe de uma longa construção de sociedade. Partindo dessa
premissa, Robert Dahl acredita que a eficácia
governamental está intimamente ligada às instituições políticas, sobretudo ao
Executivo e seu relacionamento com outras forças políticas a partir do sistema
partidário (Dahl, 1997). O que conta em uma
democracia é saber se seus partícipes encontram respostas aos seus anseios e
como cobrar do poder público medidas que obriguem a execução do dever assumido
em praça pública no momento eleitoral. Atinando para tal propósito, Bobbio
particularmente compreende que “o governo das leis celebra hoje seu triunfo
na democracia. E o que é a democracia se não um conjunto de regras (as chamadas
regras do jogo) para a solução dos conflitos sem derramamento de sangue?”
(Bobbio, 2002: 185).
Entende-se
geralmente que a democracia além de ser um valor universal é também uma
necessidade de ordem pública. A eficácia
administrativa de um dado governo tem que levar em consideração sua transparência
no momento em que efetiva suas ações políticas, se o destinatário da ação
política do governo é a população, por isso nada mais justo que esta mesma
população conheça ipse jurer
todas as ações políticas desse governo, ainda mais quando está em jogo o erário
público que é sempre recursos financeiros do Estado vindo dos cidadãos através
de impostos sobre rendas, patrimônios e
salários.
Dahl apresenta a solidariedade como meio para
os indivíduos alcançarem seus objetivos, que de alguma forma deveriam se
organizar ao modo de uma associação, tendo por premissa básica a igualdade
entre os associados, ou seja, na associação o espírito de igualdade é o
fundamento para que todos sintam a necessidade da vida comunitária, não
esquecendo do espaço individual. Nesse sentido Dahl
apresenta uma lista com cinco critérios para tentar situar o que seria uma
democracia, visto que não adianta definir algo sem apresentar o que de fato
significa seus elementos constitutivos.
São cinco os critérios que identificam uma democracia:
1-
participação efetiva de seus membros;
2- igualdade de voto entre os membros;
3- obtenção de informação esclarecida;
4- exercício de controle final sobre a agenda, e
5- inclusão de adultos.
Dahl
pondera que na ausência de um destes requisitos, os membros não poderão ser
considerados efetivamente iguais, o que significa dizer que a democracia
basicamente é a igualdade existente
entre os membros de uma dada associação (Dahl, 1997).
A possibilidade de uma democracia existir
de fato está vinculada ao exercício de uma igualdade permanente entre os
indivíduos. Os membros de uma dada associação deverão definitivamente conviver
em um regime cuja preocupação não é outra senão garantir o mínimo indispensável
à realização de contentamentos individuais e coletivos. Dahl sustenta que
mesmo sendo importante, tal critério ainda não é suficiente para definir uma
democracia, embora seja em tais condições, verdadeiro critério de partida
dentro de uma comunidade que pretende valer-se da democracia como objetividade.
Definindo
o Estado como uma associação de proporções acima das pequenas comunidades, onde
se estabelecem determinadas normas imperativas, sendo todos coercitivamente
obrigados ao seu cumprimento, Dahl argumenta que é
possível um Estado democrático, visto que “de facto,
o foco principal das idéias democráticas tem sido, desde há muito, o Estado”
(Dahl, 1999: 52), ou seja, as instituições
democráticas sempre almejaram democratizar o governo do Estado. Com essa
preocupação, Dahl sustenta a tese histórica que o
Estado tem sido ao longo dos tempos destituído de sua majestade absolutista
para se tornar apenas um centro dinamizador,
capaz de administrar conflitos pacificamente, isto porque “é a única
associação cujo governo possui uma capacidade extraordinária para garantir
obediência às suas regras através (entre outros meios) da força, da coerção e
da violência” (idem: 55).
Mesmo
considerando que a possibilidade de um Estado democrático está condicionado a
diversos fatores, e que tais fatores são complicados no plano do concreto, Dahl considera que só a democracia é capaz de governar um
Estado no sentido de privilegiar o cidadão, guardando as liberdades necessárias
dentro de um cenário de igualdades. Por
isso o autor enumera dez vantagens de uma administração democrática de um
Estado, a saber:
1-
evita a tirania;
2-
direitos essenciais;
3-
liberdade para todos;
4-
autodeterminação;
5-
autonomia moral;
6-
desenvolvimento humano;
7-
proteção de interesses pessoais essenciais;
8-
igualdade política;
9- procura
de paz, e
10-
prosperidade.
Segundo
a apresentação das vantagens da democracia aqui exposta, Dahl
não poupa a falta de sintonia entre o ideal e o real, ponderando que “na
prática, a democracia ficou sempre aquém dos seus ideais” (idem:
73).
Ao que
parece, Dahl não deixa dúvida que quanto ao futuro, a
democracia não se apresentará como um modelo concorrente, mas como a única
alternativa segura aos anseios legítimos de liberdade e igualdade. Nessa
perspectiva a democracia constitui o fim das formas políticas, cabendo somente
seu aprimoramento face às novas realidades que surgirão. Não cabe fazer aqui
nenhum exercício de futurologia, uma vez que em ciência o máximo que podemos
fazer é uma análise das condições atuais visando uma projeção. O futuro é sempre
um produto das condições atuais que se processam no tempo, que pode ou não
ocupar uma dada realidade no espaço. Dahl acredita
que a democracia será um sistema dominante por se tratar de algo mais afeito
aos interesses de uma massa de sociedades ávidas, esperançosas, no intuito de
controlar os governos e os Estados dentro dos limites de uma constituição
imposta pela legitimidade de seus atores, acreditando no serviço que a
democracia pode emprestar aos povos.
Entendendo
que democracia é mais um ideal que propriamente um conjunto de características
determinantes de um sistema, Dahl na sua obra Poliarquia,
assinala “que uma característica-chave da democracia é a contínua
responsabilidade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados como
politicamente iguais” (Dahl, 2000: 25). O
estudioso estadunidense não deixa dúvida sobre o quanto democracia está
vinculada ao processo de aperfeiçoamento entre aqueles indivíduos livres,
constituindo mais uma vida associativa que um conjunto de formalidades, muito
embora algumas formalidades sejam inevitáveis ao bom funcionamento das
instituições democráticas, enfatizando na direção das responsabilidades por
parte dos governantes, cuja função é tão somente efetivar as expectativas dos
indivíduos politicamente livres e iguais.
Dahl acrescenta ao conceito de governo
democrático, uma categoria do absolutismo monárquico, a responsabilidade,
sendo que a transforma, segundo seu sistema de entendimento, para o mundo
liberal, de maneira a situar o governante como aquele responsável por
materializar interesses daqueles que, pelas eleições livres votaram na
constituição de um governo voltado ao cumprimento de um discurso de
campanha. Se o rei era responsável
pelo seu súdito, exercendo sobre ele direitos e exigindo deveres, uma
associação que pretenda ser democrática, firmada nos valores de uma igualdade
politicamente necessária, inverte tal relação se apropriando da categoria responsabilidade
e assim aplicando novo entendimento. Nesse sentido os governantes são responsáveis
junto aos seus governados não somente pelo discurso de campanha, mas,
sobretudo, pelo fato de exercerem um mandato que a eles foram conferidos a
título precário. Os governantes não são ocupantes vitalícios dos cargos, ocupam
cargos públicos até novo pleito, em que poderão não ser
reeleitos em razão de suas irresponsabilidades, por não
perceberem que não possuem sobre os governados mais direitos, e sim deveres, ao
passo que estes sim, possuem direitos e necessariamente prontos para receberem
respostas.
A
possibilidade da democracia vigorar enquanto valor
universal se prende ao fato de que pode assegurar por meios institucionais,
condições favoráveis às expectativas dos indivíduos, aos objetivos
transformados em realidades. Portanto, nesse entendimento Dahl
é perfeitamente claro, pelo menos no que diz respeito ao cidadão em uma
democracia: a sua grande realização é perceber que suas preferências são
consideradas pelo governo sem serem postas à prova por qualquer outra condição
senão a administrativa.
Procurando construir uma teoria
democrática capaz de satisfatoriamente considerar as novas democracias após a
derrocada do autoritarismo na América Latina, no leste da Europa e sudeste da
Ásia, Guillermo O’Donnell
parte do pressuposto que uma teoria democrática deve considerar alguns aspectos
relevantes na possibilidade real de uma democracia efetiva, por isso entende
que não existe um corpo teórico que satisfaça plenamente a discussão em torno
da configuração democrática neste ou naquele país. É explícito
em O’Donnell, ao contrário de Dahl,
uma visita ao conjunto das teorias democráticas contemporâneas para
depois elaborar sua própria concepção. Verifica-se, em primeiro lugar, se uma
determinada sociedade estabelece padrões verdadeiramente democráticos, isto é,
se dada sociedade compreende a democracia como realidade política (O’Donnell, 1999: 578).
O’Donnell considera relevante em uma teoria democrática
quatro características, a saber:
1- conhecimentos relativos à historicidade de uma determinada sociedade,
isto é, a inclusão de uma sociologia política de orientação histórica;
2- o estudo dos usos lingüísticos de dado objeto;
3- levantamento dos vários aspectos da teoria do direito na
compreensão legal de uma determinação democrática, e
4- reflexão sobre o Estado, sobretudo naquilo que se entende como
sistema legal (idem: 580).
Tais considerações de ordem
epistemológica, contribuem na elaboração de uma visão
de realidades diferentes, em que se busca formas de democracia apesar de certa
sorte de diferenças em razão de configurações culturais distintas. É da natureza de toda reflexão teórica, pelo
menos aquela fundada na crítica, estabelecer critérios de validade universal,
ou seja, na avaliação de um conceito está implícito um outro dando conta da
realidade existente.
O’Donnell pretende encontrar uma teoria democrática que dê
conta das realidades sem comprometer o que considera
elementar numa democracia, eleições livres, competitivas, igualitárias,
decisivas e inclusivas. Para o autor democracia implica em uma aposta
institucionalizada, os cidadãos são detentores de diversos direitos e deveres
garantidos por uma ordem jurídica voltada à legitimação de meios seguros e
permanentes na aplicação constante daquilo que se considera plenamente racional
em toda e qualquer sociedade, sendo os conflitos solucionados através de meios
pacíficos e plenamente vinculados aos interesses dos seus membros (idem: 588).
Em uma
democracia a institucionalização das eleições garante a presunção de agente,
o indivíduo tem certeza que seus direitos encontram no Estado amparo legal
contra qualquer arbitrariedade ou tentativa de se romper com o pacto de
respeito mútuo. O’Donnell
sustenta por meio do conceito de agency, que
autonomia e razoabilidade são condições elementares nas relações de responsabilidade,
pois o que caracteriza uma democracia é que todos são responsáveis pela sua
permanência. No entendimento de O’Donnell democracia
não é uma possibilidade, é uma realidade, para isso é preciso que o sujeito - na interação com outros sujeitos - sinta a responsabilidade
do exercício político em sociedade, constituindo tarefa fundamental para as
populações das novas democracias, aquelas que até pouco tempo não passavam de
um sonho, de uma mera possibilidade, por isso é tarefa imperiosa nessas novas
democracias, a construção do conceito de agency,
agente portador de direitos cujo papel é histórico e tem sentido comunitário.
Sendo assim, é na associação que os agentes se descobrem como iguais,
tendo por tarefa a expectativa de inclusão do maior número de participantes. O’Donnell afirma que “a missão da lei é a de determinar e
proteger a potestas dos indivíduos” (idem:
605).
Vale
dizer que o Estado nas democracias contemporâneas assume a função de garante, equilíbrio e centro capaz de absorver
todas as arengas em torno das necessidades e vontades dos envolvidos.
Entende-se aqui Estado como centro político-jurisdicional onde as decisões
assumem caráter não só de legalidade como de legitimidade: a possibilidade de
uma efetiva democracia está nas mãos daqueles que precisam se construir
enquanto valor, sujeito, agente de toda
e qualquer transformação. Ao contrário da democracia dos países originários,
onde o agency historicamente surge antes mesmo
de qualquer formalidade estatal, cabe às novas democracias, a tarefa de
transformar massa em povo, indivíduos em sujeitos de direitos, capazes da
construção do seu destino (idem: 605).
Em um Estado onde
a forma governativa é a democracia, não ficando restrita ao plano da accountability vertical – eleições,
reivindicações sociais sem coerção, cobertura por parte da mídia quanto aos
movimentos reivindicatórios e atos ilícitos de autoridade pública – mas
ampliando sua ação sob a accountability
horizontal – conjunto de mecanismos por meio dos quais o poder estatal
presta contas de seus atos -, verifica-se claramente que esse é o grande
desafio a ser enfrentado por aqueles que desejam uma verdadeira reforma tanto
em nível estrutural quanto em nível operacional do Estado, particularmente em
se tratando do caso brasileiro (O’Donnell, 1998).
Pensando estar
sintonizado com as exigências do momento, o cientista político argentino Guillermo O’Donnell avança na
tese de que uma democracia para ser entendida como tal deve necessariamente
fortalecer a accountability horizontal.
Dessa forma “para que esse tipo de accountability
seja efetivo deve haver agências estatais autorizadas e dispostas a
supervisionar, controlar, retificar e/ou punir ações
ilícitas de autoridades localizadas em outras agências estatais” (O’Donnell, 1998: 42). Para um aprofundamento
democrático em uma determinada sociedade é importante que a accountability
horizontal seja eficiente e determinante no propósito de transparência das
ações do Estado.Por esta razão que os autores, comprometidos nesta linha de
raciocínio, apontem uma reforma estatal na direção de novo paradigma de
mudança. Não basta que se diga da
urgência de uma reforma, é preciso que se mostre que tal reforma tenha um fim
último, tornar o Estado mais afeito aos interesses coletivos, ou seja, que todo
aparelho estatal fique subordinado ao seu ofício de administrar a coisa pública
com zelo, virtude e dedicação no mais alto sentimento republicano (O’Donnell, 1998).
Para O’Donnell fica claro que a democracia não pode ser apenas um
discurso de boas intenções anunciadas em palanques de quatro em quatro anos, ou
mesmo um certo esquecimento por parte dos agentes políticos de como é
instituído um governo. Um governo democrático justifica sua realidade quando
percebe em si mesmo “que a autoridade política vem de todo e cada membro do
demos” (O’Donnell, 1998: 46). Cada cidadão ou
mesmo toda a sociedade espera que o Estado confirme sua realidade na medida que
consiga levar a termo uma atuação inteiramente destinada ao exercício de
políticas públicas amplamente consignadas pelo debate democrático. Um governo
democrático é aquele que se orienta sob o império de uma legislação que garanta
o respeito às normas instituídas pelo poder competente. Governo das leis e não
simplesmente o governo dos homens deve ser a marca registrada de uma
administração pública. Portanto, na perspectiva de construir uma accountability
horizontal, tornando a democracia definitivamente um sistema governativo
eficiente, eficaz e duradouro nas suas superações, O’Donnel
assinala oito sugestões para alcançar tal escopo, a saber:
1- promover os
partidos de oposição, aqueles com ampla base de representação ao controle das
agências, investigando supostos casos de corrupção;
2- a criação de Tribunais de Contas ligados ao
Congresso;
3- um Judiciário altamente profissionalizado
com um bom orçamento que lhe garanta total independência;
4- a implantação desses e outros recursos
institucionais, o objetivo é a crença de seu sucesso ao contrário de uma
suspensão pela dúvida;
5- o fato de garantir que os pobres e fracos
marcados pela desigualdade sejam tratados decentemente pelas agências;
6- uma mídia razoavelmente independente no
sentido da informação clara e confiável;
7- a participação da mídia e de várias organizações de accountability vertical juntas aos
Organismos Internacionais, desde que estejam nacionalizados para que não sejam
acusados de interferência estrangeira nos negócios domésticos, e
8- tanto os
políticos como os lideres institucionais
devem estar imbuídos dos ideais liberais e republicanas (O’Donnell,
1998).
A
possibilidade de uma democracia em si mesma estar vinculada ao fundamento
essencial de um projeto em que o seu conteúdo se baseie no dissenso, muito mais
do que neste ou naquele sistema ideal, levou Norberto Bobbio a destacar no
livro O Futuro da Democracia, que “uma sociedade em que o dissenso
não seja admitido é uma sociedade morta ou destinada a morrer” (Bobbio,
2002: 74).
Bobbio apresenta como desafio à democracia o
convívio com o outro, portanto a aceitação do diferente por parte dos grupos em
que o maior número predomina. Nesse sentido a democracia como regime dos iguais
tem o propósito de garantir o pluralismo como oxigênio de um sistema que tem
como meta à universalização, a validade erga omnis
dentro de uma comunidade onde seja possível apresentar propostas voltadas aos
interesses de todos, não unicamente os da maioria.
Compreende-se
claramente que democracia para Bobbio não é apenas o interesse de uma maioria,
mas o de todos, até porque o cerne etimológico da palavra democracia quer dizer
povo, todos. Portanto, democracia nos limites de seu conceito, naquilo que a
define como a melhor possibilidade governativa, não se restringe ao regime. Sua
característica principal é justamente a superação das formas, ou a submissão
das formas ao conteúdo de igualdade, liberdade, participação e materialização
de perspectivas individuais e coletivas (Bobbio, 2002).
A
prova de fogo de um regime democrático prende-se ao fato de que as respostas
devem satisfazer ao mais amplo leque de possibilidades para aqueles que estão
sob sua proteção. Democracia é construir respostas às perguntas necessárias, é
ir ao encontro do desafio de superar as diferenças dentro de uma possibilidade
plural de expectativas. Bobbio assinala
que o maior desafio da democracia consiste em apresentar definitivamente
resultados satisfatórios ao conjunto de interesses dos indivíduos organizados
dentro dos seus limites. Observa-se,
contudo, que para Bobbio a democracia vive permanentemente superando obstáculos,
desafios e dissensos como prova de sua longevidade enquanto um sistema
destinado a se alimentar das contradições.
Em uma sociedade plural o dissenso só não é possível como também necessário, essencial
para sua própria existência e pretensão de universalidade.
Para
Bobbio a discussão mais importante não é aquela em que se pretende ressaltar a
excelência da democracia direta sobre a indireta, mas sim a democratização da
sociedade civil no processo de alargamento da democracia política. Bobbio entende que o desafio está em se
apropriar de um sistema que permita ao indivíduo encontrar na lei, o esteio de
uma existência baseada na liberdade vinculada à igualdade. O desafio se
encontra posto aos indivíduos, cabe aos mesmos encontrar o atalho que os leve
de maneira firme, não permitindo nenhum retrocesso, ao que se pode
considerar uma vida em sociedade.
O
verdadeiro problema no pensamento democrático não se restringe aos critérios
práticos de saber o que caracteriza um regime democrático, ainda que isso se
constitua em algo muito importante. No entendimento de Bobbio, deve-se procurar
o alargamento democrático na análise da verdadeira dimensão da democracia, isto
é, o indivíduo como partícipe do seu Estado, sujeito de preocupações de
políticas públicas, o real titular de direitos inalienáveis. O que conta na
verdade é que democracia sempre será um olhar sobre todos e para todos. São os
indivíduos que constroem as instituições na história, e não as instituições que
constroem os indivíduos. Para Bobbio, se as instituições são relevantes no
aprimoramento democrático, na salvaguarda dos interesses dos cidadãos, não
podemos esquecer que o homem é objeto de si mesmo.
4. Estado, democracia, Brasil.
Logo no início de
sua palestra, proferida na aula inaugural do Programa de Pós-Graduação de
Ciência Política da UFRGS, Eli Diniz identifica na
reforma apresentada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso uma distorção
daquilo que foi insistentemente pregado pelo governo como algo essencial ao
desenvolvimento do Brasil: a reforma do Estado. Mudanças estruturais profundas
que levariam o Brasil a uma nova etapa de sua história, colocando-o no centro
de uma retomada de desenvolvimento agora em sintonia com os novos tempos. “Entretanto, limitada por uma visão
restrita de teor administrativo, a reforma do Estado do governo Cardoso seria
capturada pela meta do ajuste fiscal, revelando-se incapaz de realizar a
ruptura anunciada” (Diniz, 2001: 1).
Diniz pondera que
as reformas necessárias à inserção do Brasil num modelo de desenvolvimento na
ordem global precisam passar pela política enquanto esfera de decisão que, em
razão de sua natureza, define as grandes metas como também os meios para
alcançá-las, visto que “elites iluminadas”, capacitadas tecnicamente mas sem a
dimensão da política, têm no trato com os problemas uma relação reducionista,
fora da realidade (Diniz, 2001). Diniz
ainda observa que essa alta tecnocracia dentro da administração pública
brasileira se estruturou a partir do governo Vargas (1930-1945) e dos governos
militares (1964-1985), que por não serem governos democráticos privilegiaram o
pensamento autoritário dos anos 30, superestimando o caráter voluntarista do
Executivo em detrimento do Legislativo, este visto como poder dos interesses
particularistas e não representante dos nacionais (Diniz, 2001).
Dentre muitas
considerações demarcadas pela autora, destaca-se aquela que se prende ao fato
daqueles dois governos autoritários terem imposto nos seus períodos uma reforma
do Estado de teor administrativo, centralizando decisões que, ignorando o
debate parlamentar, na implementação de seus respectivos projetos, destituíram
a população de participar ativamente quando silenciaram o Legislativo pela
força. Surge no Brasil “a consolidação do estilo tecnocrático de gestão da
economia, fechado e excludente, que reforçou a concepção acerca da validade da
supremacia da abordagem técnica das políticas públicas” (Diniz, 2001, 7),
repercutindo até hoje no seio da população, o argumento de que o Congresso
Nacional é um poder dispensável quando se pensa em construir um sistema estável
e garantidor da participação política dessa mesma população.
Qualquer reforma
do Estado, sintonizada com a modernidade ou pelo menos atendendo a moralidade
dos nossos dias, há de ter como claro e distinto a necessidade de ouvir a
população por meios institucionais, no intuito de não se incorrer mais em erro
como o da reforma implementada pelo governo Cardoso, que na avaliação de Diniz “ficou
muito aquém das metas estabelecidas” (Diniz, 2001: 16).
Se a reforma
implementada nos anos 90 não foi precedida por nenhum movimento contestatório
armado, como em 1930 e 1964, em compensação teve a seu favor a “hegemonia do
pensamento neoliberal”, que reforçou a centralização das políticas públicas
em âmbito tecnocrático, fortalecendo o Executivo no poder de decidir em
detrimento das instituições democráticas (Diniz, 2001). Valendo-se ou não da
cultura política autoritária brasileira, o pensamento neoliberal antes de
combater esse traço característico dentro das instituições públicas, na verdade
proporcionou mais oxigênio que enfraquecê-lo, pois na medida em que se afastava
das instâncias políticas, as reformas se tornaram mais administrativas e
economicistas, deixando de lado todo um leque de preocupações pertinentes aos
interesses da cidadania para atender preocupações com o ajuste fiscal e
outros problemas ligados à conjuntura. O que se esqueceu foi o delineamento de
metas, de fins a serem alcançados por instrumentos políticos. A reforma pensada e efetuada pelo governo
Cardoso não combateu aquilo que mais se contestava: o clientelismo político,
prática destoante nas relações entre Legislativo e Executivo, que fortaleceu a
presidência da República e todo aparato burocrático que, por sua vez, está
longe de uma racionalidade ao molde da burocracia pensada por Max Weber, como
acusa Diniz: “o loteamento dos principais cargos da administração, por sua
vez, contribui para a deterioração da capacidade de implementação das políticas
governamentais” (Idem: 11). Cria-se, portanto, uma burocracia duvidosa e “insulada”
dentro de si mesma e longe de um controle verdadeiramente institucional.
Segundo Diniz, o
Brasil está ingressando em uma nova perspectiva. Espera-se por parte dos novos
atores políticos, em novas funções políticas, a oposição que ora chega ao
poder, uma visão diferente do que
significa reforma do Estado. “Não
basta mais e mais concentração do poder técnico. É preciso levar em conta a
dimensão política da reforma do Estado” (Idem: 12). É preciso na nova
relação política, ter governabilidade e governança
como critérios necessários no sentido de se levar a bom termo o interesse
público por parte do Estado, sintonizando-se assim com o novo espírito
democrático (Diniz, 2001). Mais do que
discutir o papel do Estado na sua relação com o mercado, o importante agora,
sob o novo impacto político, é colocar este Estado a serviço do interesse
público, na tentativa de firmemente satisfazer necessidades públicas, orientado
por decisões políticas e não por uma suposta racionalidade burocrática. A verdadeira e legítima reforma do Estado, no caso brasileiro, é
torná-lo um instrumento institucional político capaz de incorporar os
preceitos da democracia em sua estrutura, fazendo com que a máquina
administrativa atenda o que foi decidido no plano político, instância adequada
para as discussões e grandes decisões de interesses coletivos (Diniz, 1996).
5. CONCLUSÃO
A discussão em
torno da reforma do Estado, especialmente do Estado brasileiro, sofreu por
parte da crítica especializada uma verdadeira chuva de significativos trabalhos
científicos, em que se pesa uma discussão sólida de argumentos bem construídos
a partir de uma visão intra-estatal. Destaca-se desde logo que o debate ficou
restrito ao âmbito de como tornar o Estado efetivo sem com isso mostrar a sua
natureza, que surge necessariamente como uma condição do capitalismo enquanto
modo de produção a determinar as condições objetivas dos indivíduos. Pode
parecer anacrônico pensar a partir de tal premissa, no entanto, a relação dos
fatos ratifica o entrelaçamento da gênese do Estado moderno ao desenvolvimento
do capitalismo. Tornar a discussão do Estado independente da discussão do
processo capitalista de produção é o mesmo que discutir instituições políticas
como criação espontânea, longe, portanto, do trabalho de mãos e interesses
humanos.
A reforma do
Estado como está posta não leva em consideração a natureza do Estado, pelo
menos a que se apresenta. Pensar reforma do Estado dentro de uma premissa
política sem levar em conta o que determina sua existência é separar a causa do
efeito, por fim, é pensar os homens concretos a partir de suas respectivas
sombras. Que a democracia tornou-se um valor universal e necessário não mais se
discute, embora seja necessário pesquisar que democracia se deseja realmente,
porque até agora tudo é muito vago e formal. Nesse sentido, observo que também
falta à Ciência Política analisar se a política enquanto instância em si mesma
é suficiente para responder a tal problema. Assim como o liberalismo se mostrou
insuficiente, apesar dos esforços dos autores supra, a Ciência Política caminha
no mesmo passo quando não se determina pelo enfoque de como os homens estão
organizados para produzir.
Não se pode
atinar para a reforma do Estado somente pelo prisma da mudança dos papéis das
instituições públicas. É preciso, antes de tudo, verificar a relação das
instituições públicas com as instituições políticas. Não basta a importação de
modelos pensados a partir de estruturas sociais completamente diferentes da que
deseja submeter. Os que assim pensam esquecem que no passado os seus
adversários teóricos eram acusados de importação de modelos, portanto não
originais. Ora assistimos o mesmo pela inversão da história.
Como
estamos no terreno da discussão da reforma do Estado, desde já implicando no
seu aperfeiçoamento antes de propor outro ente para o seu papel,
salienta-se que o Estado pensado não pode ser aquele proposto pela maioria dos
críticos do Estado do bem-estar social, pois se pensarmos como esses,
estaremos na contra-mão da história. Mas se o Estado é uma medida corretiva
pensada por muitos teóricos do mundo político como um sentido de eqüidade, por
que então esse Estado se afasta dos seus fins na subordinação do que deveria
condenar? Se levarmos adiante tal proposição, só encontraremos resposta naquela
construção que pondera ser o Estado um comitê criado para gerir os negócios da
burguesia, ou se não quisermos ser tão radicais, com Weber podemos concluir que
os:
“Interesses (materiais
e ideais), e não idéias, é que dominam imediatamente a ação dos homens. Muito
freqüentemente, porém, as imagens do mundo, que são construídas mediante
idéias, determinaram como agulheiro as vias através das quais a dinâmica dos
interesses moveu a ação humana.”
Portanto,
interesse por interesse, à democracia pode, no cotidiano dos homens, imprimir
no seio do Estado a marca permanente de um controle por parte do sujeito
principal, o povo. Não basta a criação de instituições marcadamente vinculadas
aos conteúdos de liberdade e representação política por parte de grupos de
indivíduos. As condições materiais devem ser efetivas para que a democracia
seja exercida permanentemente pela participação direta de todos nos negócios do
Estado. Esta é, portanto, a grande reforma que se espera operar no interior do
Estado no século XXI. Pensar a reforma do Estado sem levar em conta a natureza
que o determina não resolve o problema de sua legitimidade ou eficácia. A
reforma do Estado significa a reforma das condições objetivas dos homens, e
nesse sentido só pode ser pensada na reforma daquelas condições que tornem os
homens livres para pensar e conseqüentemente participar dos destinos políticos
de sua formação social.
A reforma do
Estado brasileiro como está posta inverte o que determina o real. O Estado é
uma realidade não só política mas essencialmente econômica. É através dessa
reforma que teremos uma nova estrutura de Estado. Não basta arrumar a casa sem
com isso projetar seus moradores. Ou o Estado brasileiro se democratiza no sentido
de torná-lo definitivamente público para essa imensa massa de excluídos, ou
assistiremos discursos distantes do real, à guisa do idealismo.
Notas
[1] Apude, Moya, Carlos. Imagem Crítica da Sociologia.São Paulo: Cultrix,
1977: 81.
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Resumo: O presente artigo procura, em linhas
gerais, analisar a reforma do Estado brasileiro a partir de uma discussão
envolvendo diversos teóricos, ressaltando que a querela sobre o estado ainda
está longe de se encontrar um denominador comum. Nosso estudo visa demonstrar
que o Estado brasileiro, ainda privado, deve ser reformado no sentido de
torná-lo efetivamente público.
Palavras-chave: Estado, democracia, reforma, povo,
público.
* Este trabalho, apesar das modificações, foi
apresentado para a obtenção de crédito na disciplina de “Teoria Política
Contemporânea I” (2004), ministrada pela professora Eli
Roque Diniz, no PPGCP IFCS-UFRJ.
** Wellington Trotta, ex-bolsista
da FAPERJ, é Mestre em Ciência Política pelo PPGCP do IFCS-UFRJ, bacharel
em Direito e licenciado em Filosofia. Professor de Filosofia do Curso de Direito
da UNESA.