O TRIBUNAL INTERNACIONAL PENAL E OS DIREITOS DAS GENTES

                           

Carlos Camilo Mercio Martins*

 

Resumo:

O artigo tem por objetivo aproveitar a proclamação do “Tribunal Internacional Penal” (TPI) oferecendo alguns aspectos referentes a sua história, o momento político em que se insere e os desafios que provavelmente encontrara.

 

Palavras-chave: Tribunal Internacional Penal, Estatuto de Roma, Direito das Gentes.

 

 

“Na justiça está resumida toda virtude” (Aristóteles)

 

I – Apresentação

 

Em 11 de abril de 2002, em Nova York, a alguns passos das ruínas do World Trade Center, a Assembléia Geral da ONU proclamava a criação do “Tribunal Penal Internacional” (TPI). Mais de 60 países assinaram o Tratado proposto em Roma em 1988, dando forma operacional ao projeto de Gustave Moyner, jurista suíço, fundador da Cruz Vermelha Internacional, que em 3 de janeiro de 1872, concebia a necessidade da criação de um tribunal internacional para reprimir os crimes contra o Direito das Gentes.

         Foram necessários 130 anos para que a semente lançada por Moyner desse frutos. Da proposta de Moyner até o Tratado de Roma, passamos pelo tratado de Versailles, que pretendia julgar os considerados culpados pela primeira guerra e chegou a determinar o julgamento do Imperador Guilherme II, da Áustria, sem entretanto obter sucesso. Passamos, também, pelo Tribunal de Nuremberg e Tóquio que arbitrariamente julgaram os derrotados de 1945. A seguir as cortes ad hoc, (tribunais temporários, criados para casos específicos) da ex-Iugoslávia através das Resoluções 808 e 827,  de Ruanda,  Vietnam, Biafra,  e outra participações menores, modelos parcialmente adotados para as administrações transitórias em Kosovo e Timor.

         O Estatuto de Roma finalmente consolida aquilo que a moderna doutrina e técnica jurídico-criminal exigem de um instrumento que esteja buscando “a Justiça como síntese das virtudes” - conforme, na antigüidade, Aristóteles preconizou.

Estamos cientes de que instrumentos humanos são e serão imperfeitos, mas o TPI percorreu um longo caminho até nascer e conter virtudes que o bom direito pede que sejam observadas. O TPI conseguiu alinhavar a definição dos crimes, tipificando as infrações que se propõe a julgar. Definições que além de dispersas, nas várias convenções anteriores, sempre apareceram depois que os fatos haviam ocorrido, em desrespeito ao princípio de direito penal que diz: nullun crimen nulla poena sine previa lege. Esta é uma expressão latina muito cara para os penalistas e significa que não se pode condenar ninguém sem que haja uma lei anteriormente cominada para aquele ato criminoso.

Além de não retroagir, o TPI - que tem caráter permanente - propõe-se a ser complementar aos ordenamentos jurídicos internos das nações, a não julgar crimes cometidos antes de sua instalação, posteriores a adesões e a respeitar a tipificação pactuada. Assim sendo, o julgamento só poderá se dar com fatos descritos no Tratado, além de obedecer a diversos outros princípios técnicos e jurídicos conhecidos e caros para os juristas de todo o mundo.

Segundo o Estatuto de Roma, a Corte estará exercendo sua jurisdição com relação aos crimes mais graves, de transcendência para a comunidade internacional em seu conjunto. Isto significa que a Corte apreciará  os casos onde a repercussão se dá de tal forma que, muitas vezes, impedem que o próprio Estado onde o crime ocorreu possa devidamente apreciá-lo.

 

II - Da competência do TPI

Sua competência se dará diante dos seguintes crimes: crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra, e crimes de agressão.  Estas quatro grandes linhas abrangem a subseqüente subdivisão de cada uma delas.  O crime de agressão ainda não está suficientemente claro e, numa primeira tomada de posição, será típico quando houver ameaça ou ruptura da paz internacional.

         Os elementos dos crimes ainda serão descritos e aprovados pelo voto de pelo menos dois terços dos membros da corte.

         O Estatuto do TPI entra em vigor no dia 1 de julho de 2002 e a expectativa é que a Corte  inicie suas atividades em 2003. Nesse ínterim,  as nações que aderiram ao Estatuto de Roma estarão se ajustando internamente e  alinhando seu sistema jurídico às mudanças necessárias propostas, incorporando aqueles artigos que ainda não existam em seus códigos penais ou que sejam necessários à implementação do novo documento internacional. Esta providência se faz necessária devido ao principio jurídico de complementaridade.

Vale observar que, embora sendo tipificado pelo Estatuto de Roma, quando o crime estiver sendo apreciado pelo judiciário do Estado onde os fatos se deram, não lhe caberá jurisdição internacional alguma, cabendo primariamente aos estados a primeira instância para assumir a responsabilidade da investigação e julgamento dos crimes eventualmente cometidos em seu território. O TPI só será chamado a intervir quando os estados signatários não puderem ou - por motivações políticas - não quiserem processar os responsáveis por crimes cometidos, estando estes enquadrados em suas resoluções.

         Outra importante determinação que se encontra no corpo do Estatuto do TPI é que o Tribunal será composto, preferencialmente, por juristas e penalistas de comprovada experiência e moral ilibada, com o propósito não apenas de aplicar o melhor direito, mas, também, atribuir independência aos trabalhos, evitando ao máximo a ideologização dos julgamentos. Concernente com o observado, consta no art. 36, III, do TPI:

a) os magistrados serão eleitos entre pessoas de alta consideração moral, imparcialidade e integridade que reunam as condições requeridas para o exercício das mais altas funções em seus respectivos países;

b) Os candidatos a magistrados deverão ter:

i)  Reconhecida competência em direito e processo penal e a necessária experiência em causas penais, vocação de magistrado, promotor, advogado ou outras funções similares,

i) Reconhecida competência em matérias pertinentes de direito internacional, tais como o direito internacional humanitário e normas de direito humano, bem como grande experiência em funções jurídicas profissionais que tenham relação com o trabalho judicial da corte.

Destacamos o art. 36 porque, além de um elenco mais amplo de requisitos,  nele fica clara a intenção de dar ao tribunal um perfil com predominância técnico-jurídico, afastando, na medida do possível, a politização deste instrumento e, é claro, projetando-o para no futuro exercer uma atividade importante no equilíbrio entre as nações.

 

III - O século assassino

 

O historiador Eric Hobsbawm (2002) afirmou que o século XX foi o mais assassino da história, estimando que o total de mortes causada pelas guerras foi de cerca de  178 milhões de pessoas, ou seja: o equivalente a 10% da população mundial em 1913. M. Cherif Bassiouni, penalista que presidiu o comitê de redação para criação do TPI, afirmou que o século XX assistiu à maior quantidade de violações sistemáticas aos direitos humanos através de guerras e regimes arbitrários e repressivos de que se tem noticias.

Entre as boas novas que a instalação do TPI traz, uma é que possibilitará que haja preocupação sistemática com relação ao cometimento dos crimes no Estatuto elencados.  O Estatuto de Roma tem, em sua essência filosófica, funções educativas e preventivas, uma vez que a partir de agora há um bem estruturado instrumento de investigação, inibição e punição para Chefes de Estado e demais autoridades públicas que venham cometer crimes ali previstos.

 

IV - Países poderosos e o TPI

 

Percalços há e estão expostos a olho nu. Os EUA posicionam-se radicalmente contra a criação do TPI. Criticaram duramente os países que aprovaram o projeto e lideram os demais países que votaram contra sua criação - Israel, China, Iêmen, Líbia e Catar - o que poderia ser quase uma confissão.  O Presidente Clinton, nos seus últimos dias de governo, chegou a assinar o documento de Roma sob o pretexto de que assim, no futuro, os EUA poderiam influir nas modificações que considerassem necessárias, entre elas  que os militares americanos e os funcionários civis do governo estariam fora da jurisdição do tribunal. Este ato, contudo, não foi submetido ao Congresso americano como seria necessário. O governo George Bush tem se mostrado radicalmente contra a Corte.

Diante da circunstância em que surge o TPI, torna-se importante recapitular ensinamentos de Hobsbawm no artigo “The future of war and peace” - publicado na Counterpunch, de 9/11/2002.

No artigo em questão, o consagrado historiador inglês constata que existe hoje, como existiu através de todo o século XX, uma total falta de autoridade global capaz de controlar disputas armadas.  Observa que embora a globalização tenha provocado mudanças significativas engendrando uma nova ordem internacional, os estados - no presente como no passado - continuam controlando seus territórios política e militarmente, neles mantendo a  autoridade.

Atualmente existem, oficialmente, cerca de 200 estados soberanos mas, na prática, apenas um número reduzido deles tem peso político e, entre estes, os EUA é sem dúvida o mais poderoso.  No entanto, nenhum Estado ou império foi suficientemente grande, rico ou poderoso para manter controle total sobre o mundo político, ou mesmo estabelecer uma duradoura supremacia militar sobre o globo. Uma superpotência não pode compensar a ausência de autoridade  na falta de convenções relacionadas ao desarmamento mundial ou controle de armas. Os maiores estados não aceitarão voluntariamente seu desarmamento.

Uma certa  autoridade pode ser encontrada em algumas instituições, notadamente nas Nações Unidas, em diversos tribunais internacionais e em poderosos organismos técnicos e financeiros - como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização de Comércio Internacional. Mas nenhuma destas instituições  possui poder efetivo além daquele que lhe é concedido pelos acordos entre os estados, ou graças à proteção oferecida por estados poderosos, ou aceitos voluntariamente por eles. Lamentável como se constata, não parece que isto se modificará em futuro previsível.

Desde que apenas estados poderosos possuem poder, o risco é que instituições internacionais sejam ineficazes ou lhes falte legitimidade universal quando tentarem lidar com transgressões como crimes de guerra. Mesmo quando cortes estabelecidas através de acordos multilaterais (o TPI acordado pelo Estatuto de Roma em 17 de julho de 1998 e proclamado em 11 de abril de 2002 em Nova York, por exemplo), proferem decisões, estas não serão necessariamente aceitas como legitimas e obrigatórias, desde que uma nação poderosa esteja em posição de discordar delas.

Um consórcio de estados poderosos pode ser suficientemente forte para garantir que alguns transgressores de algum Estado fraco seja trazido a frente destes tribunais, talvez consiga  até tolher um pouco a crueldade em conflitos armados em algumas áreas. Este é um exemplo, no entanto, do tradicional exercício da  influência possível dentro do sistema internacional de poder.

 

V - Breve conclusão

 

Começa o tribunal com um problema político que só o tempo poderá resolver, mas, aparentemente, um primeiro modelo está em vigor e se o panorama mundial um dia se desanuviar, poderemos estar convivendo com um instrumento capaz de indicar algumas soluções para este século que se inicia.

 

Referência Bibliográfica:

 

HOBSBAWM, Eric. Counter-Punch, war on Afghanistan, February 27, 2002.



* O autor é advogado e escritor, mestrando em Direito Político do Instituto Metodista Bennett e recentemente publicou o romance “Acima do Estado - a violência política no mundo globalizado”.


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